Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. Ester (10/13)

O vestido é negro, justo. Suas formas são justas, sua nudez é justa. O segredo é um poder.

O que me atraía, além de seu corpo: alguma perversidade natural, mal disfarçada no movimento de seus olhos castanhos? Ela sempre soube que tinha em mim um homem qualquer. Se algo além de meu corpo (melhor dizendo, meu corpo em relação ao dela) a cativava, é algo que jamais saberei.

Conheci Ester no balcão de uma cantina – pelo menos, foi quando nos vimos. Não sei, mesmo hoje, se cheguei a conhecê-la como se espera conhecer alguém. Costumávamos almoçar ali, separadamente, quando não existíamos. Da primeira vez, iniciou-se uma conversa por acaso. Ela era educada, levemente arrogante. Da segunda, toquei seu ombro antes de me sentar – era morno, convidativo. Na terceira, beijei-lhe o rosto, pele clara e bem tratada. E nos dias que se seguiram… Não, não havia nada menos casual do que nossos encontros na cantina. (“Estamos apenas conversando, não é?”, eu lhe dizia, tentando sinceramente, e antes de tudo, convencer a mim mesmo. Mas ela disparava, à queima-roupa: “Não há nada de inocente em conversarmos aqui. Você sabe disso. Não é?”.)

Usava os cabelos presos, no dia seguinte. Um ar de quem me esperava, de quem, estranhamente, já me conhecia há mais tempo (“Você parece cansado. Trabalhou muito hoje?”) e confiava em mim. “Muito.” Ainda que sorrisse discretamente, sempre reservada e cautelosa, estava mais à vontade nesse dia, como se houvesse assimilado minha presença em sua mesma mesa e compreendesse que eu não era mais um estranho, não oferecia perigo. Quando cheguei, beijei-lhe, de leve, a boca. Ester fixou-me surpresa, mas sem reação. Seus olhos alteraram-se por um instante, esgazearam-se, esses que quase sempre me revelavam, mal e mal dissimulando, um fundo sobre o qual se movia sua personalidade inflexível. Ester era invejosa. Nociva.

Sua irmã, a quem odiava, havia buscado a morte pelo excesso de sedativos, sendo resgatada dias depois. Ester prestara-se a todos os esforços para trazê-la de volta, não porque houvesse de sentir falta de uma inimiga tão próxima, mas para assistir à continuidade das frustrações da outra, apenas interrompidas pelo gesto desesperado, à dor consequente de seu fracasso. O que mais desejava era que ela vivesse – e sofresse mais essa humilhação. Também não se entendia com a mãe, naturalmente, porque eram muito parecidas. Com a diferença: a mãe rogava a Deus que a afastasse, a si própria, das intenções mesquinhas, das secretas vilezas. “Será verdade?”, pergunta Ester. Ela lembra que sua mãe mentia muito.

Sua mãe não podia ter sido tão ruim, ainda que houvesse gerado Ester e recorresse a Deus. De resto, não me interessavam pormenores de sua família, nem como haviam cultivado o egoísmo nem como haviam acumulado fortuna. Sentia-me à vontade em sua sala.

“Não temos mais idade para namorar em cantinas”, disse eu conhecendo-a melhor, antes pressentindo seu potencial de sensualidade, prestes a abrir-se ao próximo toque.

“Aceito o risco. O apartamento, pode ser. Alguém na extensão?” “Não, só uma interferência. Tem medo?”, ela se diverte. “Não. E você?” “Estou acostumada.” “Ao quê? Às interferências?” “Que lhe interessa? Quero que venha.”

A sala é impessoal, mas aconchegante. Provo o vinho sem nenhum constrangimento, embora pressinta no olhar dela, ainda nas pequenas atitudes, o teor de uma surda conspiração. “O segredo é um poder”, ela me ensina. Nosso diálogo disperso vai aos poucos se diluindo ainda mais, perde-se entre os pobres disfarces que ainda tentamos, por algum motivo, sustentar. Por fim nos encaramos com a mesma malícia, uma malícia que o silêncio só faz crescer. “Você me acha atrevido?” “Ainda não.” Pego-lhe um seio por cima do tecido. Ambos assistimos a esse avanço. Abro-lhe a blusa, descendo uma alça apenas, um seio à mostra. “Assim, você parece uma romana”, brinco. Os dois seios. “E assim?” “Assim… você parece mais minha.” Ester afasta os cabelos das têmporas. Seu bracelete imita uma serpente. Abraça-me. O pescoço, meus dentes. Seus lábios, a língua. Pretendo dizer-lhe, mas contento-me em desfiar as palavras sob meu silêncio de murmúrios, não mais do que imagino dizer-lhe: “Depressa, Ester. Tire essa blusa, essa roupa, vamos, sei que você também tem fome e sede.”. Alguns de seus gestos e movimentos esquivos dão a ela um matiz de nervosismo. Talvez a imaginasse, a conspiração, e sua felicidade nervosa, atravessada de sorrisos breves, quase inventados, fosse apenas uma sensação de vingança.

Ela me habituou à sala, ao quarto, ao apartamento e aos encontros. “Você nunca sente medo?”, pergunta-me, seios à mostra. “Não.” Mostra-me suas coisas, desde os objetos. Abre o armário, sem saber que me abre também portas às palavras, seu guarda-roupa variado, quase um poema

o vestido de linho, o short em alberne
a saia plissada, a minissaia jeans
a calça em elanca, as malhas justas
crepe, crepom, microfibra
a regata risca de giz
o sutiã meia-taça, as meias-calças
os mocassins em couro
as sapatilhas, as sandálias
o mais que fosse gris, creme, lilás
pérola e pêssego
seda-palha e o que variasse em todos os tons
dentre as peças, separa um vestido de alças,

sua mais recente aquisição, quer saber se gosto. “Quer ver em mim?” Claro, mas não lhe disse que, para desnudar, é preciso vestir, que as vestes são o aperitivo para o que buscamos comer, antecipam o sabor especial e inconfundível da nudez. O vestido é negro, justo. Suas formas são justas, sua nudez é justa. Duas tiras finas sobem dos seios para prendê-lo aos ombros, destacam o pescoço, os próprios ombros nus, os olhos traiçoeiros e imantados.

Ester apaga o cigarro. Nessa tarde quente, amenizada pelas persianas, o suor já não brilha como antes na extensão de seu corpo. Mas suspeito que ainda se guarde nas curvas e abismos que nossa forma comporta. Ela se vira, deita-se de bruços. Sua nudez parece maior. Percebe que meus dedos se demoram nas reentrâncias, além de lhe apalpar a carne. “Que foi?”, sorri com malícia. “Quer brincar de médico comigo?” Sinto que meu peso é compensado por suas nádegas, sinto também que outro extremo de mim encontra sinais de sua entrada secreta. É somente com um gemido curto e dissimulado que Ester corresponde a meu avanço lento, cuidadoso, sentindo que me instalo aos poucos e por inteiro em meio às suas porções mais robustas, permitindo-me invadir assim o que é, de outra maneira, sua rija intimidade, sua reservada maneira de também ser mulher. Quando minhas mãos se firmam em seus flancos, penso ter controle completo sobre seu corpo. Quando sobem e lhe prendem os pulsos, julgo consolidado o poder. Mas não é verdade, e nada disso a faz submissa: é Ester quem me domina.

Confessa-me (será verdade?) que há muito não experimenta o orgasmo, não se delicia com novas descobertas nem se aventura a qualquer brincadeira erótica com o marido.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem:  Willem de Kooning. Anjos cor de rosa. 1945.

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