Office in a Small City por Edward Hopper

Das afinidades familiares

Outra noite, com amigos. Fomos os últimos.
Chovia, e começávamos a nos desejar – eu, que nunca sorria.

1

Meu pai, depois de sepultado, passou a parecer-se ainda mais comigo. No sofá da sala, era o meu duplo, um espelho de terra: o pequeno rádio repetindo-lhe os informes municipais, outra vez o breve repouso antes de tornar ao trabalho. Terra nos cabelos. Na barba por fazer.

“Você não pode me voltar assim”, digo-lhe com impaciência. “Afinal já o enterrei, paguei pelos funerais, tive de suportar toda a falsidade dos que vinham consolar-me, cheguei mesmo a chorar, em uma tarde de escassos sinais, revivendo uma canção cantada que me trazia lamentavelmente a infância.”

Ele faz um gesto para que eu me sente ao seu lado, como quando era menino e permanecia em sua órbita, buscando usufruir ao máximo daquela preciosa companhia, antes que partisse outra vez para o trabalho, que eu nunca soube ao certo qual era.

Daquela vez, no velório, analisando seu semblante de morto, reconheci uma estranha sensação de beleza. Talvez fosse, em parte, uma impressão de alívio. Sempre tive vontade de perguntar-lhe por que tinha o menino, por azar sensível, de sofrer sua indiferença, às vezes a humilhação ou a vergonha, não sendo senão sua réplica obscura, sua sombra feita ao mundo com a mulher que não amava, a quem mais tarde trataria de ignorar, nunca odiar, o que seria uma espécie de reação ao amor, até uma variante de amá-la, e ele não podia desviar-se tanto. Acaso imaginavam que eu devesse passar por minha vida, passar por mim mesmo, feito uma sombra? Quanto tempo eu ficara ao lado do semblante inerte, quanto tempo essa minha estranha felicidade…

“Você não pode ficar aqui, veja minha situação. Preciso que retorne ao seu lugar, entenda. Tenho de voltar ao trabalho agora.”

Ele repete o gesto, quer-me mais próximo. Mas tenho de voltar ao trabalho, que no fundo não sei qual é. Bato a porta irritado, esperando que, ao menos uma vez, lhe ocorra agir com bom senso, fazendo-se retornar à solidão menos incômoda de sua sepultura, onde, um dia, ao seu lado, também eu estarei imune aos problemas municipais, mais parecido com ele, parecido como ficam todos quando não estão deitados em sofás, quando não precisam mais retornar a qualquer trabalho.

2

Meu bisavô de cem anos reconhece meus esforços, embora não compreenda perfeitamente o que se passa. “Seu pai errou”, diz meu bisavô de cem anos, “em acreditar que você não serviria para nada. Ao menos, você sabe quem é.” Meu bisavô de cem anos abraça-me lentamente, tocando-me a face com o crânio calvo, de manchas. “E tem se saído muito bem nos negócios”, acrescenta, com um sorriso emocionado, meu bisavô de cem anos. Eu o abraço com sinceridade, retribuo o sorriso. Não quero que meu bisavô de cem anos saiba: encontro-me irremediavelmente falido.

3

“Eu não podia imaginar, naquele tempo”, digo à minha prima, enquanto nos despedimos na estação, “que estivesse destinado à felicidade. As coisas vão bem. Só esperava, no fundo, que você fosse minha. Mas não estou magoado.” Alguns anos atrás, eu lhe dissera o mesmo. Outras situações e oportunidades. Ela nunca disfarçou, por sua vez, embora não o confessasse, que em mais de uma ocasião me houvesse espreitado apaixonada ou ansiosa. Após uma festa de nossos quinze anos, minha irmã foi quem observou, preocupada: “Ela só via mesmo você. Comia sua cara com os olhos. Você, que nunca sorri.”, Outra noite, com amigos. Fomos os últimos. Eu a acompanhava até sua casa. Chovia, e começávamos a nos desejar – eu, que nunca sorria. Ela acena de rosto turvado, vidro de imagens incidentais. Desvio-me sutilmente de seus olhos e só me volto alarmado pelo ruído de sua voz repentina, no momento da partida, enquanto se desvencilha dos outros passageiros. “Parem, preciso descer! Com licença. Soltem-me! Não vou a parte alguma. Quero ficar com ele. Quero minha vida de volta, será que não entendem? E todo o tempo em que não nos pertencemos. Deixem-me…” Acompanho sua descida desastrada, sem saber ainda o que fazer, mas, certamente, antes mesmo que se aproxime de mim na plataforma, desta vez, quem sabe, encontraremos um meio de, se possível, se ela não mudar de ideia, talvez, quando souber que eu, após todos esses anos…

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

27. Ante seus olhos, quase um silêncio – próximo

25. O engenheiro e os fungos – anterior

Imagem: Edward Hopper. Escadas na Rua de Lille, 48, Paris. 1906.

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