Office in a Small City por Edward Hopper

Triste do mesmo jeito

Minha cabeça só ficou nisso o dia todo, o tempo todo.
Tudo em que eu pudesse pensar acabava subvertido pela possibilidade de encontrar essa figura apaixonante e vulgar que era… ela.

“Que problema vocês têm com isso! Diz que ama, é tão bom. Te amo! Te amo muito! Tão bom dizer isso…”

“Sei. Ela não quis saber se eu fui bem na prova. Não perguntou onde eu morava, nada. Não falou nada sobre outro dia, sobre outro encontro… ‘Você é linda demais’, eu repeti quando ela saiu do carro.”

“Ahn. Sei, sei.”

“Não, mas ela não era linda demais. Ela me atraía demais. ‘Posso te encontrar na faculdade amanhã?’ ‘Claro. Todo dia a gente se encontra lá. Tchauzinho, querido. Brigada pela carona. Amei, viu?’ Me acenou dobrando as pontas dos dedos duas vezes, como se fizesse um movimento de teatro de bonecos, sabe, quando a gente abre e fecha a boca deles. Assim, olha.  Bonecos, sabe?”

“Sim, sim, claro que sei.”

“Aí ela seguiu pela alameda meio suja até a portinha de entrada. De lá, fez o mesmo gesto e disse: ‘Vai… Pode ir.’, e ainda esse movimento dos dedos, ela parecia estar controlando um desses bonecos. Achei melhor obedecer. Sorri, respondi de longe com o mesmo gesto, imitando o que me parecia ser um gesto charmoso, meio infantil, que mais tarde entendi que só ficava bem em mulheres.”

“Já vi homens fazendo isso. Bom… Tudo bem. Não sei.”

“Achei melhor ir embora, pra não ficar ali, bancando o babão apaixonado, o que eu nem tinha como disfarçar. Mas nisso tudo, eu um pouco, um pouquinho só, agindo como se aquilo fosse normal, como se toda noite eu deixasse alguma garota em casa e já estivesse entediado com essa rotina, que péssimo ator, que encenação inútil. Suspirei, dei a partida. Fui embora.”

“No dia seguinte…”

“Ela desapareceu. Não estava em aula. Não estava lá fora. Não vi ela chegando. Até cheguei mais cedo, pensando em todas as possibilidades. Nem sombra dela na confusão do intervalo. Esperei o sinal pra retornar às aulas, fiquei andando por qualquer lado, esperando dar tempo a que todos voltassem às classes. Passei em frente da classe dela. Passei de novo. Outra vez, de lá pra cá. Depois, em sentido contrário, disfarçando, esticando os olhos, tentando ser natural… Todos me viram, lógico. Ela não estava lá. Na saída, na confusão da saída, fiquei ainda procurando por ela, com os olhos. Minha cabeça só ficou nisso o dia todo, o tempo todo. Tudo em que eu pudesse pensar acabava subvertido pela possibilidade de encontrar essa figura apaixonante e vulgar que era… ela. Tudo acabava corrompido por aquela imagem, ela, por aquela memória recente. Tudo, tudo tinha sido absorvido por essa necessidade de amor. Ou por essa maravilhosa, deliciosa conquista ou…”

“Que coisa, hein? Você estava caidinho. Afinal, achou essa… Achou a moça afinal?”

“Pois então. Eu lá fora, nas escadas da entrada, vi que um carro acabava de sair de sua vaga, no mesmo quarteirão, pouco acima, logo ali, pouco acima de onde eu estava, e o carro já ia virando a esquina, um casal, um sujeito de barba e cabelos muito visíveis, despenteados, como se fossem inchados para os lados, sabe o tipo? E no outro assento, era ela.”

“Ai. Que triste. Nem gosto de pensar. Não queria estar na sua pele.”

“Então. Você vê? Depois eu fiquei revendo a cena toda na minha memória, aquele carro com o cabeludo dentro, virando a esquina e… Pra ser sincero, eu não tinha certeza se era ela. Não mesmo. Parecia ser. Parecia muito. Mas ela não estava na escola. Não devia ser ela. Será que eu estava apenas forçando em mim mesmo um sofrimentozinho, uma autopiedade, querendo que fosse ela? Pensei nisso. Depois, fui convencendo a mim mesmo de que não era ela. Mas e se fosse? E daí? E daí se fosse? Ela não era nada minha, não me devia nada…”

“Mas não é assim que as coisas funcionam, você sabe. É triste do mesmo jeito.”

“É… É triste do mesmo jeito. Tem razão.”

“Será que você não queria ver ela ali, no carro? Será que não queria se torturar um pouco com isso, como você mesmo disse, sabendo que ela… que ela…”

“Não sei. Eu não gosto de ficar inventando muita coisa desse tipo direcionada a mim mesmo. Acabo me sentindo culpado de tudo. Até do meu próprio sofrimento. Não. Assim não vale.”

“Tá bom, tá bom. Eu também não quero ser a chata nessa história. Continua.”

“No outro dia, encontrei com ela. Gente ao redor, intervalo tumultuado. ‘Oi. Procurei você ontem’, eu disse. Beijinho no rosto. ‘Oi. Eu tava na biblioteca, com um colega, fazendo um trabalho. Não teve jeito, tive de enforcar as aulas’, e nisso ela sorriu lindamente. Já viu, não é? Odiei a mim mesmo. Sofri com isso. Remoí minhas amarguras. Por que eu não pensei na biblioteca?!”. Danilo dá com a testa na palma da mão aberta, duas vezes. “Justo eu, que adoro bibliotecas, que adoro livros. Odiei a mim mesmo, sim, como diriam os russos, odiei a mim mesmo, miseravelmente. Seria um lugar perfeito se…”

“Porque você não associou a Ana Lúcia a uma biblioteca. Não pensou que ela ..”

“Porque você não associou a Ana Lúcia a uma biblioteca. Não pensou que ela pudesse estudar alguma coisa, frequentar um lugar desses. E não, não seria o lugar perfeito pra nada, que isso, deixa de ser bobo.”

“Pode ser. Pode ser isso mesmo. Não era a cara dela, nada me fez pensar na biblioteca. Ela só estudava na marra, movida pela ameaça de uma nota baixa e devastadora. Ou sob pressão dos colegas, da convivência, estudar em grupo, essas coisas. Eu imaginava que, apesar dessa pretensa meiguice civilizada, ela se revirasse na cama com uma agilidade furiosa. E nesses primeiros dias, o que me incomodava era que ela nunca estava propriamente em algum lugar. Sala de aula, bancos do pátio, escadaria da entrada… Ela sempre: ou tinha acabado de chegar ou estava pronta pra sair. Parecia afável com qualquer pessoa, oferecendo, despreocupada, os sinais traiçoeiros de sua generosa voluptuosidade.”

“Sei.”

“Mas, enfim, eu estava lá, na frente dela. Tremendo de saudade dos beijos daquela noite, tão próxima e tão forte na memória, dos apertos todos daquela noite mágica, quase sentia tudo de novo, me envolvendo ali mesmo, pensando, ao mesmo tempo, sobre o que estaria passando pela cabeça dela, se estaria sentindo o mesmo, ou como conseguia ficar assim tão indiferente, se estaria rindo de mim por causa disso, enfim, sei lá. Antes da horrível e tradicional falta de assunto, eu perguntei: ‘Por que não me procurou? Podia te dar uma carona.’. ‘Não, que isso! Nem precisava se incomodar. Fui de carona com meu colega.’ ‘Seu colega?’ ‘É, mas ele não é da minha classe. O André, aquele de barba, que tem um cabelão despenteado, sabe?’”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

15. Big Bang, celenterados e filhas mulheres – sequência

13. Lemuel – anterior

Imagem: Gustav Klimt. A expectativa. 1909.

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