Office in a Small City por Edward Hopper

Bruno, o fantasma, e a medusa e…

Toda juventude, todo desejo e sua respectiva consumação, todo encontro e encantamento, toda intimidade, experiência e êxtase estejam submetidos às mesmas leis de ausência que atravessam toda atualidade.
Parece incrível. E é verdade.

Bruno não tinha vinte anos quando deixou sua cidade. Uma de suas últimas aventuras quase acabou por envolvê-lo em sérios apuros, porque o pai de sua jovem conterrânea, baseado em boatos fundamentados, entendeu que os encontros noturnos excediam os limites do namoro convencional e, por meio da própria filha, mandou avisar que, se alguma de suas suspeitas fosse confirmada, iria matá-lo.

Por via das dúvidas, e antes que o homem tornasse a transmitir-lhe o claríssimo recado, Bruno decidiu abreviar seu perigoso romance com a menina, cujos bilhetes tardios, tão perfumados quanto sinistros, ainda o fizeram ceder e arriscar-se a ansiosas entregas.

A mais bela encontrou-o na cidade grande. Experiente e privilegiada, tinha cabelos maravilhosos de deusa (Júlio, a princípio, viu-a como uma medusa, outra bobagem tão ridícula como a de comparar mulheres a deusas) e rosto de beleza assustadora. Bruno, pela primeira vez, sentiu o equilíbrio de forças, dominando-a com a mesma intensidade com que era conduzido, por pouco não cedendo aos precipitados planos que ela lhe sussurrava à hora da cama e à parte do mundo. Após inúmeras tentativas de enfeitiçá-lo, por fim viu em seu rosto um silencioso sorriso.

“Então? Decidiu?”

“Decidi.”

Mesmo essa sedutora corça não fora bastante para arrebatá-lo. Bruno prezava sua liberdade acima de qualquer

Mas por que lhe conto isso? Bruno é hoje apenas um fantasma. Sinto sua falta às vezes e passo a ele através de seus casos, suas mulheres, suas falas, embora suspeite que não se trata apenas de recordação: impressiona-me que toda juventude, todo desejo e sua respectiva consumação, todo encontro e encantamento, toda intimidade, experiência e êxtase estejam submetidos às mesmas leis de ausência que atravessam toda atualidade. Parece incrível. E é verdade.

Viera de carona com um amigo, uma noite tranquila. A trajetória, porém, longa e retilínea, infligira-lhes fadiga e ansiedade, dilatando-se em cada nova placa demarcadora, quilômetros contados, calculados, esquecidos. Entre os vilarejos solitários que se repetiam, logo desgarrando-se outra vez da estrada, alguns postes de iluminação vertiam uma claridade amarelada sobre cada impressão de abandono, até que emergisse de tais cenários um boteco ainda aberto, cujo movimento e ruído faziam ver que os homens se dispunham ao redor de dois contendores furiosos, trocando socos mal dirigidos, caindo e se levantando, ferindo com seus gritos a madrugada, o subúrbio adormecido, e era esse o primeiro sinal de vida.

“Até que enfim”, disse Bruno ao amigo, “um lugar onde existe gente.”

Coisas que contava. Irônico, mas gratuito. Nada intencional. Pobre de mim, que tento resgatá-lo em vão e não sei viver outra coisa.

Na primeira noite, Júlio reviu um sonho do qual imaginava quase se haver  esquecido: o rosto de Quita aproximando-se do seuNa calma desse sonho claro, esforçava-se por mudar o curso das coisas. Vontade de beijá-la, deixar-se beijar. Aconteciam-lhe, bem diante dos olhos, os delicados fios que a presilha-estrela lançava à liberdade do dia. Uma impressão intensa o arrebatava, e era como se nada mais valesse a pena se não pudesse voltar atrás. E não podia, claro. Não somente a manhã de relva, mas Quita tão próxima. Tê-la perdido para sempre. Ter-se desviado de outro destino, no qual ela desejara secretamente iniciá-lo. Curioso que o sonho retornasse após muitos anos, especialmente nessa primeira noite de sua nova vida, o rosto da colega como naquele passeio antigo, com a mesma idade, embora Júlio visse a si mesmo com sua idade atual, o que mais o intrigava. Via com extrema nitidez os cabelos dela contra a luz, quase sentia o roçar desses perdidos fios tão finos, esses fios tão finos do passado. Quase sentia sua pele e seus lábios, superfícies profundas. Então, tudo se dissipava.

Qualquer palavra que se diga é, no fundo, uma tentativa de justificar-se. E quando se busca tanto as palavras, Augusto, é porque de antemão suspeitamos que não é possível dizer o que se pretende dizer. O silêncio, você diz. Silêncio. O silêncio é uma palavra.

 Os últimos dias de agosto

13. Algo entre dois silêncios – sequência

11. Adeus, Júlio Dias – anterior

Guia de leitura

Imagem: John William Waterhouse. Estudo para náiade. 1893.

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