Office in a Small City por Edward Hopper

O gineceu reconquistado

Nem sempre sabemos ao certo o que buscamos.
Mas é algo que os covardes fingem ter encontrado para nos manter próximos de seus limites.

Noite de lua clara. Romão, Cândido e Clemente iam ao concerto. Eu queria apenas estar sozinho, longe do som infernal que se espalhava pelo descampado, que parecia irradiar-se pelo mundo. Com toda a franqueza que eu próprio pudesse conceder-me, eu não queria nem esperava nada, nada mesmo, e talvez ficasse outra vez à mercê das constelações que tanto me consolavam, só por faltar-me o sono. Percebendo que eu não me sentia bem, Verena disse a eles que iria depois.

“Que foi?”

“Não sei. Nada. Realmente não sei. Nada.”

“Não quer ver o concerto? Podemos ir juntos. Andando devagar. Conversando meio à toa. Quer?”

“Não. Obrigado mesmo. Vá você. Estou cansado hoje”, disse eu sem me levantar de onde estava.

“Cansado de escrever?”, ela riu.

“Cansado, só. Não sei do quê.”

Verena agachou-se à minha frente, do mesmo modo que fazem as crianças, sem se preocupar com a própria postura.

“Alguma coisa aconteceu, não é?”

“Não, nada.”

“Tudo bem. Claro que não precisa dizer.”

“Pra você eu diria, sim. Mas não há nada a dizer. Só quero estar sozinho um pouco.”

Sorri como pude, tentando ser algo convincente, fazendo ver que eu estava muito bem, pois nem o tufinho de cabelos, que eu pressentia arrepiado pela aragem noturna, era páreo para incomodar-me ou mover-me a um gesto sequer.

“Bom, eu não quero atrapalhar…”, disse Verena, enquanto se levantava.

No mesmo instante, eu a segurei pelo pulso, gesto impensado e absolutamente instintivo, creio.

“Não, não atrapalha nada. Pode ficar, se quiser.”

“Você quer ficar sozinho…”

“Pode ficar, se quiser. Só não quero ver o concerto.”

“Não parece que seja só isso, ainda não acredito. Mas se prefere assim…”

“Como, não acredita?”

Verena finalmente deixou-se sentar de frente a mim, no chão da barraca, com isso causando-me tanto um arrepio de constrangimento quanto uma faísca de alegria, e tão próxima que me tocavam os seus joelhos, o que também provocava em mim as mesmas coisas.

“Não tem que dizer, muito menos a uma estranha. Só eu não acredito que você não queira ver o concerto.”

“Ora, não é um público muito exigente. Esses concertos não são tão maravilhosos assim.”

“Não, eu quis dizer, não acho que seja esse o motivo de você querer ficar aqui.”

“Bom, talvez não seja, não só isso. Mas ajuda muito.”

“Você não deveria ter vindo, se não gosta dessas coisas, dessa música…”

“Achei que fosse diferente, pelo que me diziam. Sempre acho que alguma coisa vai ser diferente. Mas, como tantas outras coisas, aliás, acabam nunca sendo o que eu espero que sejam. Ou como dizem que são. Um público sempre exagera tudo. As pessoas sempre exageram tudo. Gostam de tudo. Acreditam em tudo.”

Com um gesto leve, ela desviou uns fios de cabelo que lhe caíram à testa. Coisas à toa. Coisas sempre à toa. Nenhum desses detalhes tem importância. Os poetas contam tudo, enfatizam minúcias. E nada disso tem valor.

“Você parece ser do tipo que se deixa levar pelos outros, não é não?”

“Quem, eu? Eu, levado pelos outros? Imagine! Tenho até um poema que diz…”

“Os poemas são para os outros. Você não quer escrevê-los de verdade. Só continua sofrendo com isso.”

“Como? Que ideia é essa? Mas é o que eu mais quero… Afinal, o mundo está caminhando para uma…”

“Você precisa ser reconhecido por sua poesia. Ser elogiado, aplaudido. E tudo isso depende dos outros.”

“Bom, eu acho que todo artista deve…”

“Deve, se quiser. Não deve, se não quiser. Ninguém deve nada. Você pode ir embora, se não se sente bem. Não precisa fazer o que lhe dizem.”

“Ora, é claro que não”, gaguejei, envergonhado de ela poder desnudar-me o pensamento daquela maneira, como se, por trás de seus olhos claro-cinzentos, escondesse um equipamento de raios X. “Mas é sempre assim que funciona: penso que vai ser uma coisa, acaba outra. Talvez o mundo não passe mesmo de uma grande malha de ilusões, nada mais. Do que é que você está rindo?”

“Me lembrei de uma coisa.”

“O quê?”, perguntei, um pouco preocupado. “Pode me contar? Ou prefere…”

“Posso. Quando se falava em assinar um dos primeiros trabalhos sobre a formação do universo, o cientista George Gamow chamou um seu colega, chamado Hans Bethe, além de seu parceiro Ralph Alpher, para que os seus três sobrenomes, na sequência adequada, formassem as iniciais do alfabeto grego. Achei incrível essa!”

“Você… estuda Física?”

“Não.”

“Como sabe disso?”

“Como se sabe de qualquer coisa. Li sobre isso uma vez. Achei curioso que homens considerados tão geniais não pudessem controlar a si mesmos. Também, às vezes, penso que a vaidade é o que move o mundo.”

“Muito… interessante.”

“Cedo ou tarde, a verdade aparece. E as coisas se tornam ridículas.”

“Eu acho que… Não sei. Bom, achei interessante mesmo.”

“Mas não adianta se importar com o que vão pensar, você não tem culpa. O mundo não é sempre o mesmo, não é o mesmo em toda parte, nem para cada um. As pessoas envelhecem. Os países envelhecem. Os problemas envelhecem. A poesia envelhece.”

“Pode ser. É, pode ser que não. É que a vida me parece tão pequena…”

“A vida?!”

“A minha vida, eu quero dizer.”

“Ah, sim. Pensei que… Olha, acho que o concerto já vai começar. Esses ruídos macabros (gesto com os dedos ondulando no ar) devem ser os músicos afinando os instrumentos”, sorriu.

“No fundo, o que eu gostaria…”

“Então eu vou aproveitar que você… Ah, me desculpe! Você estava dizendo alguma coisa.”

“Não, tudo bem, não tem importância.”

“Fala.”

“Não sei se você vai me achar um… Não sei o que vai pensar de mim, mas…”

“Também não sei o que vou pensar de você.”

“Eu gostaria de nunca mais voltar ao escritório, nunca mais. Só que não vejo outra saída. Sabe, eu gostaria que as coisas não fossem como são, mas parece que nenhum de nós pode mudar nada. Mesmo que todos estejam sempre fazendo coisas. Dizendo coisas. Mesmo que eu escreva milhões de poemas.”

“Não, por favor, não faça isso.”

“Eu gostaria de me deitar, dormir profundamente. E acordar em um mundo onde não houvesse telenovelas nem missas. Nem fome, nem doenças, nem crimes. Nem entrevistas com jogadores de futebol…”

“Uau… Difícil imaginar.”

“Se eu pudesse, faria a vida de todos mais simples e mais bela. Não haveria mais aquelas vinhetas da televisão, por exemplo, com aqueles prefixos musicais, a cada intervalo.”

“Interessante. Parece mesmo utópico.”

“E ninguém mais procuraria ver filmes de terror nem ouvir duplas sertanejas.”

“Um bom começo. Mas para mudar alguma coisa, nós precisamos agir. Desligue a TV. Não vá à missa. Peça demissão.”

“Bom, não é só isso…”, eu disse quase engasgando, atordoado pela objetividade dela, o que era um grande sinal de coragem. “Não queria que você soubesse… Mas eu…”

Tentei lhe dizer o que se passava comigo. Procurei ser o mais claro possível, julgando que assim lhe comunicaria minha conflitante situação interior com discernimento, clareza, objetividade, servindo-me de palavras apropriadas, que eu então resgatava de toda a literatura que absorvera ao longo da vida, que era a minha extensa e estupenda vida. Mas nada disso funcionou na hora: fugiram-me todas as expressões, minha língua tropeçou, eu todo tropecei em mim mesmo, tentei continuar, não consegui e comecei a chorar, entre tantos destoantes sentimentos, cheio de vergonha. Ela me abraçou com jeito, beijou-me os olhos e a boca.

“Pode ser que você não veja agora, mas deve ter uma saída. Pode ser que você não entenda ou não saiba o que quer, mas pelo menos já desconfia do que não quer”, passando a mão por meus cabelos. “E olha, guarda este segredo: a vida não é tão pequena assim.”

Solucei mais intensamente. Um pranto que estaria esquecido no fundo de tudo o que me conduzia até então, até ali, e que eu vinha tentando enganar com aquele meu cotidiano opressivo, insuficiente. Abracei Verena com força, como se assim pudesse salvar-me. Ela correspondia, afagava-me ainda os cabelos, descendo a mão sobre minha face, até que por fim me pusesse outra vez calmo, se bem que um tanto envergonhado.

“Você… Você é uma estranha.”

Vi os seus olhos cintilarem, seu sorriso desenhando-se como se há muito nos conhecêssemos, com isso proporcionando-me uma sensação de harmonia, confiança e verdadeiro afeto, aquele seu rosto em meio a imprevisíveis e desastradas viagens, entre o inesperado de consecutivas situações sem futuro, agora fazendo de mim seu privilegiado admirador sensível, grato merecedor de sua presença e de sua coragem. Verena estava sempre pronta a desaparecer.

“Talvez a gente esteja buscando a mesma coisa”, disse ela. “O que nós nem sempre sabemos ao certo. Mas que os covardes fingem ter encontrado para nos manter próximos de seus limites.”

Quase sem perceber, experimentei outra vez seu beijo, seu pescoço e seus ombros. Sentindo que eu me demorava entre a necessidade de tais carícias, Verena perguntou-me ao ouvido: “O que você quer?”. E quase me veio, sem pensar, sem que fosse preciso procurar muito, algo como se outro falasse em mim, que era a voz do que eu era de verdade. “Florescer.”

Sem que disséssemos uma palavra mais, senti que meu sangue reagia ao contato de seu corpo. Eu a abraçava como se algo me conduzisse ao que não conhecia, ao que me instigava a romper, soltar-me de mim mesmo, sendo eu ainda. Devagar, deixando-se despir e ser beijada, Verena concedeu-me o delicioso desafio de defrontar-me com sua nudez. Eu só conhecia prostitutas, mas estranhamente nada disso me ocorreu naquele momento. Vivia uma nova experiência, que praticamente era a mesma. Senti que era absorvido pela nascente mais íntima de seu calor, invadindo e sendo invadido, um misto de aceitação e luta. O gineceu reconquistado, a intimidade das flores selvagens, eu florescendo, por fim.

Sentia ainda o gosto de sua saliva, quando ela disse:

“Então? Sou uma estranha?”

“Eu amo você”, falei com voz trêmula.

Verena sorriu.

“Não tenho certeza. Nem você. Mas sei que hoje é verdade.”

45. Adeus, Águas Claras – sequência

43. Por que deixar rastros? – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Tom Thomson. Vidoeiros e cedros, outono. 1915.

por

Publicado em

Comentários

Comentar