Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 3378. Objetos quase vivos

Todos esses objetos, funcionais ou apenas decorativos, integram a coleção dispersa da casa de nossa mãe, onde vivemos fases importantes de nossas vidas, na maior parte tristes.

Uma estante estreita, na prática uma só prateleira emoldurada por duas tábuas menores e uma superior, serve de guarda a uns objetos muito familiares. Eu os reconheço imediatamente, que foram parte de nossas infâncias, de nossas vidas. Meu irmão e minha irmã estão comigo, um de cada lado, só um pouco atrás de mim. Os objetos, na estante, se deslocam ligeiramente, como se tivessem vida própria, esbarrando-se uns nos outros, sem motivo algum.

“Isso é impossível!”, digo surpreso. “Eles parecem vivos. Parecem ter vontade própria. Não pode ser.”

Meus irmãos não se mostram incomodados. Quando me volto à estante, depois de constatar a incompreensível calma que eles sustentam, vejo que os objetos se substituíram, não são os mesmos. Uns permanecem. Outros desaparecem e então retornam à prateleira, a cada vez que tento fixar minha visão nesse estranho e tão conhecido móvel. Todos esses objetos, funcionais ou apenas decorativos, integram a coleção dispersa da casa de nossa mãe, onde vivemos fases importantes de nossas vidas, na maior parte, tristes.

A estantezinha vibra, se agita, como se um surdo terremoto a sacudisse, somente a ela, sem afetar mais nada ao redor, desafiando todas as leis naturais, o que me causa uma visível perplexidade, um profundo mal-estar, a mim que nunca acreditei em nada fora do alcance da razão.

“Não é possível”, digo aos meus irmãos, e giro minha cabeça para cada lado, em busca de seus olhos, de uma palavra, uma reação. “Isso não pode estar acontecendo. Vocês não percebem? Deve ter um rato aí dentro.”

Minha irmã diz que não há rato nenhum. Que não há nada ali. São apenas quatro tábuas estreitas, uma estante aberta, uma prateleira com pequenas molduras, não há onde um rato se esconder de nossa vista. E ela está certa.

A própria estante se transforma, deixando de ser um retângulo, assumindo formas curvas, depois voltando ao que era, sem nenhum critério, nenhum padrão nesses processos de despropositada metamorfose. Quando me distraio e torno a firmar os olhos no que tenho à minha frente, vejo que há um mapa rodoviário sob três dos objetos, uma página arrancada a um guia de viagens talvez, servindo de chão para eles, e tenho a impressão absurda (maravilhosamente absurda) de que esses tais objetos se curvam para examinar o mapa, para conferir as estradas que se apresentam ali, tão claramente, sinuosas, em traços azuis e vermelhos, como veias e artérias expostas sobre a terra.

“Quem trouxe essa mapa?”, pergunto, irritado, aos meus irmãos. “Qual de vocês trouxe esse mapa?”

Eles se declaram inocentes, em silêncio e entre gestos leves de cabeça, algo interrogativos também, sem nenhuma necessidade de se explicarem, o que faz ver que são de fato inocentes.

“Então… O que esse mapa está fazendo aí?”

“Você não entende”, diz minha irmã com um toque de impaciência. “Eles estão planejando fugir.”

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Imagem: Pablo Picasso. Aficionado (detalhe). 1912.

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