Office in a Small City por Edward Hopper

(O sol na primavera desperta odores pestilentos…)*

Sinto a necessidade do registro, contra a crença geral de que todos os idiomas serão extintos.
Talvez eu guarde, entre meus sonhos, uma resposta proibida.

* Título convencionado para identificar o manuscrito que segue, reproduzido, tanto quanto possível, sem lacunas e integralmente.

O sol na primavera desperta odores pestilentos, mefíticos, sei. Gases e oxidações de densidade quase palpável, que parecem emanar dos poros da terra ou de nós mesmos, deslocam-se com a frequência das brisas, envolvem-nos a todos como um plasma, unem os barracos. De minha janela, que é uma larga fresta irregular entre as tábuas, olho pela última vez, e de uma restrita perspectiva, a Favela.

Primeiro vislumbrei atirar-me ao mar, onde a água queima a pele, dissolve os olhos e entra ao cérebro, sei, uma morte de poucos minutos. Optei pela terra, a trilha e o sol: com isso, pouparei os transportadores e servirei à fome em algum outro Vale, onde não me conheçam.

Sinto a necessidade do registro, contra a crença geral de que todos os idiomas serão extintos. Sei de outros Vales, dialetos e derivações por vezes surpreendentemente complexas. E escrevo neste idioma que mal me assessora, cuja gramática me desafia. As palavras sobem de minha inesgotável memória, o que faz supor que eu tenha sido algum tipo de estudioso, conhecedor de minha língua, hoje subvertida, hoje mutilada, em desuso, também que eu tenha sido vítima de técnicas sofisticadas, sutis e eficientes, que só não macularam essa região abissal e inefável na qual se armazenam e procriam as palavras. Naturalmente isso não lhes interessou, não interessou aos que… – a quem? Não me lembro mais. Já naquele tempo, suspeitava-se do destino das línguas, da literatura. Tudo não passava de ociosidade, impotência, brinquedos lúdicos, líricos e vãos. Contra uma realidade imperiosa, sem limites.

O fato de me servirem certas expressões, mais do que guardar os únicos seis livros já vistos neste Vale, faz de mim uma espécie de feiticeiro entre os mais próximos, sei. Também não se leva em conta minha idade, pois não há mais experiências úteis à Favela nem ao indivíduo, assim como não há história, calendários ou relógios. Certo, conheci o cárcere, a tortura. Mas isso foi há uns oitenta anos, creio, quando eu tinha vinte, vinte e cinco… Em outra fase (a velhice) melhor se assimila, se compreende e se aceita, a realidade. Os Vales. Abismos. As infinitas trilhas, os extensos horizontes de barracos: a Favela. Claro que não tenho esperanças. O que isso mudaria?

Todos sabem que a Favela é plana, infinita. De altas colinas se avistam os Vales intermináveis, abrindo-se a outros não menos largos e inconcebíveis, assim sucessivamente. Não temos mapas, não há como mapear a Favela. Não há um norte ou um sul, como inventaram os antigos, não há pontos de referência. Uma trama de trilhas rasteiras ramifica-se por onde se vá, dos montes às praias, dos Vales aos Aterros. Todos os nômades, em seu juízo, inclusive os mais velhos, confirmam isso. Porém, uns mais insensatos juram ter ouvido sobre a existência de uma fronteira cabal que demarca definitivamente a proliferação dos Vales e de onde partem gramados de um verde jamais visto, bem como jardins lindamente arquitetados. Assim como os antigos sonhavam com os campos elísios, à margem dos mapas, onde os homens podiam ter juventude eterna, creem esses fanáticos em tais planícies amenas, no fim da terra, cuja extensão comportaria mansões arborizadas, palacetes e propriedades suntuosas, e onde, espantosamente, estariam concentrados todos os bens da humanidade. Outros supõem que a Favela é apenas um lado do universo: que há outro, fora de nosso alcance, onde prosperam o comércio, a frugalidade, as festas. Para mim, isso não passa de reminiscência, necessidade coletiva, sei, sintomas de atavismo e herança de um passado a que nunca mais teremos acesso.

Não é difícil refutar a verossimilhança dessas planícies, com esses jardins, essa vida leve, quase etérea. Primeiro, porque não haveria Aterros, lixo: de que se alimentariam os habitantes? Vales e populações subsistem graças aos Aterros, outrora em suas proximidades, sei. Como todos os Aterros se estendem de Vale para Vale, todos os Vales acabaram, finalmente, unidos. Desde então, só o que preenche a terra é a vasta, infinita Favela. Não nego que possam ter existido desertos, savanas, tundras e estepes, regiões inóspitas. Mas toda a teia climática vinha sofrendo alterações abruptas, catastróficas, e felizmente tais regiões desapareceram, abrindo espaço à expansão dos Vales e à fértil multiplicação dos barracos.

Antigamente, lembro-me, os Aterros eram chamados vulgarmente Lixo. Os homens de uma outra época, especialmente os poetas, falavam em meio ambiente, sociedade, futuro e quiseram uma vez privar-nos do Lixo. Os favelados reagiram: disso depende até hoje nossa sobrevivência. Os Vales devolvem resíduos a seus Aterros, tais restos são nossos, retornam para nós de alguma forma, sei, na natureza nada se cria. Basta lembrar que todos os Vales se originaram e se desenvolveram junto aos Aterros. (Certa vez, um nômade, afetado pela senilidade e pela confusão, disse-me que, no passado, foram rios, não Aterros, o que beneficiou o surgimento das populações. Um absurdo: as águas, tanto as dos rios quanto as dos mares, são ácidas, nocivas, fatais. As chuvas são a única fonte saudável dos líquidos que armazenamos, tanto a negra quanto a púrpura.) Mesmo os Aterros famosos como o Don, o Dniester e o Danúbio são motivo de lendas regionais, teriam sido rios em outros tempos (séculos? milênios atrás?), há fósseis pantaneiros, sei, e vestígios de lixo aquático. Fato ou não, o essencial é que hoje esses Aterros nutrem grandes Vales, inúmeras populações, inconcebíveis barracos e suas famílias.

Ouço as chamadas, sei: transportadores oferecendo carne. Dois corpos masculinos, uma mulher de meia-idade, uma criança razoavelmente robusta. Não, nada para hoje, respondo. Nem carne nem lixo. Dei por iniciado meu jejum sem remissão, minha vertiginosa viagem rumo à última hora. Um dos transportadores insiste à porta, eu o ameaço, grito-lhe que desapareça. Ele mal compreende meu dialeto, mas assustam-no os gritos, o olhar, pois os favelados não estão habituados à violência. Praticamente não há violência, crime ou guerra. Os mortos que os transportadores trazem são vítimas do sol e das inesgotáveis formas de epidemia. Não há pelo que lutar, somos todos muito parecidos, de escassos pertences, submissos gestos, objetivos imediatos e precários. Não nos falta alimento, que os Aterros são vastos, renováveis, férteis. Hoje, mais do que nunca, somos semelhantes. De tal forma que ninguém se destaca, ninguém lidera, somos a encarnação antes utópica de uma sociedade justa, igualitária, de mesmas oportunidades e riscos para todos. Feiticeiros, assim como eu, são tidos como mais um favelado apenas, sei, nada surpreende ou entusiasma. É justo, assim deve ser. Por outro lado, ninguém é tão inferior que não possa sobreviver até a idade adulta. A resistência imunológica nos preserva, nos multiplica, enquanto a morte faz parte dos dias, da trajetória de sol e estrelas, aliás, como sempre tem sido, embora sem ser notada.

Como já disse, não nasci favelado. Recordo vagamente o tempo em que as crianças possuíam brinquedos, praças e parques. Havia escolas (desnecessárias, claro), cidades, avenidas, automóveis… É corrente dizer-se que nada nunca muda. Mas essas recordações, tão mal resgatadas, fazem crer que alguma vez houve mudanças, ainda que eu não possa compreendê-las. Se houve mudanças, reflito, houve o que chamavam história: épocas distintas, Vales diferentes uns dos outros, com seus específicos costumes, arquitetura, crença. Curiosidade, sei. Não importa que tenha sido assim, já que tudo desemboca no presente. Heráclito (eis minha enigmática memória) afirmava que as transformações são a única constante, inclusive que o sol de cada dia não é o mesmo, mas novo e outro. Houve muitos trapalhões assim no passado. Tudo de que me lembro haver lido era fantasioso, personalista, sem substância, ridículo. Apesar disso, um impulso sem palavras me aproxima de achados desse tipo, como os livros que guardo.

Antigamente havia livros, não me lembro para quê. Que eu saiba, não existem mais, salvo se preservados por descuido em algum barraco, algum canto obstruído de objetos. Eu os coletei ao longo da vida. Uma vida, sei. E nunca soube de outro favelado que os guardasse, mas suponho que não seja eu o único, pois a Favela, dizem, não tem fim. Os meus são seis. Poderiam ser sete ou três ou… – obras do acaso. Esquecidos em remotas gavetas, barracos onde estive por um motivo qualquer, livros que por sorte encontrei, por instinto furtei, por nada retive e mantive em segredo. Nenhum deles veio do Aterro, claro. Lá não durariam uma só tarde. Todos os papéis resgatados dos Aterros são usados inclusive como papel higiênico pelos mais asseados. Mães criativas preparam sopas e caldos com papelões espessos, substanciosos, chegam a um certo sabor.

Minha coleção consta, não pela ordem, de um estudo místico e caótico, obra de um insano, talvez: Uma breve história do tempo, assinada por Stephen W. Hawking; Os dez dias que abalaram o mundo, um tal Reed; Antologia poética, Pound; Die Blendung, Canetti, em… alemão, acho; Novo Testamento, vários autores; um volume violentado, a que faltam a capa e as primeiras páginas, trata da condição especial das mulheres, suas conquistas, relações matrimoniais, sexualidade, conscientização em classes sociais e situações diversas; por fim, um encarte ilustrado com delícias da arte culinária, parte de um periódico. Sei, são todos muito antigos. Nenhum deles tem a menor importância hoje. E não acredito que tenham tido alguma vez, pois o mundo sempre foi um lugar miserável.

Quando me defrontei com o primeiro deles, algo como uma rara faísca percorreu minha memória, quase a certeza de haver lido muitos livros antes de ser preso — o que pode ser apenas um vago delírio. Eu os tinha como preciosidades. Passei a rastreá-los em cada barraco, pelos Vales vizinhos. Entre um e outro, encontrá-los e furtá-los, passaram-se muitos anos. Quando os percorri, conheci e assimilei, perdi o interesse. Também, tive medo de ficar louco. Pensava nos autores, seu trabalho, a loucura… Parecia-me incrível que alguém se esforçasse e escrevesse infinitas frases e páginas, que outros as reproduzissem e as imprimissem e ainda as traduzissem e as editassem em volumes que eram transportados, conferidos, vendidos, mesmo sendo previsto, desde sempre, que o sol e o tempo já nos tinham a todos condenados.

Sinto que me demoro, que me demorei demais. Exceto por um fluxo obscuro de sangue em circulação e talvez esse ponto indecifrável e sequioso por trás de meu pensamento, na verdade não havia nenhuma razão para que eu me deixasse arrastar até aqui, até hoje. Foram infinitos sóis e trilhas, triagem de Aterros, doença, convalescença, sono.

À parte tudo o que considero, sonho às vezes com uma neblina azulada e fresca, trazendo, entre aromas, ondulações contínuas, envolventes como um afago: uma canção. Nos primórdios, sou eu quem ouve a voz da primeira mãe que canta entre as ervas e os rios, sou eu quem formula os calendários e as tábuas planetárias, após dedicados e exaustivos esforços, eu quem mapeia os continentes e suas costas, calcula distâncias, traça os primeiros polígonos. Sou eu quem espreita o horizonte, ao lado de uma mulher, ao vento. Quem dera encontrar palavras que me posicionassem novamente diante de antigas terras e reinos, das sombras e luzes oscilando ao redor, quem sabe a solidão de uma cidade esquecida e minha própria sombra percorrendo tudo. Os poetas que se perderam. As portas que se fecharam. Melodia, sei. Música, isso. E minha avançada memória sopra palavras sonoras como Schumann, Schubert, Mahler, Brahms… Desperto com tais fios de êxtase repetindo-se em meus ouvidos, até que o sol de um ou dois dias os faça desvanecer como das outras vezes, obrigando-me aos ruídos da verdadeira vida.

Tais sensações em sonho, a singularidade dessas sutilezas e sua sonoridade, remetem-me a divagações também ociosas sobre a realidade concreta, em contrapartida algo como uma pedra porosa minando música, ideias. Talvez eu guarde, entre meus sonhos, uma resposta proibida. Algo que me roubaram, mas não sei como. Talvez haja uma chance. Talvez eu crie. No fundo de mim.

Incapaz de atinar com o sentido disso, não passo além de sua constatação. É possível que, em alguma parte da Favela, outro esteja, não sei de que maneira, registrando a sequência de tais ondulações, a música fresca e azulada, a neblina de seu sonho. Uma fresta.

Uma fresta. Não tinha dado por ela, deve ser recente. Filtra um fino foco, antes uma lâmina de sol oblíquo. Porém, intenso. Quero crer que seja um sinal. Um sinal… Ora, vamos. Sou um velho idiota, sempre fui idiota, sei. Acreditava nos poetas, acreditava nas pessoas. Admirava a escalada da ciência e a busca perseverante dos místicos. Hoje, que posso dizer? Que sou contra os cientistas, sou contra os místicos, contra tudo o que nos ilude e nos desgraça. Hoje, nem é preciso dizer algo. Basta estar vivo. Basta. E partir.

Sei, estou pronto. Basta partir. Não há o que queira levar. Não devo resistir mais do que dois ou três dias sem comer. O sol na primavera desperta odores pestilentos, mas não é o que principalmente nos fere, o estranho sol dessa perigosa estação, de nossos dias, um sol implacável, corrosivo, sem amenidades, como o tempo.

Vejo-me, as trilhas. Rumo a qualquer parte. Lembro-me de que uma vez um nômade sifilítico jurava ter visto um aparelho voador, metálico, inconcebível, de ruído ritmado, portando uma auréola giratória, que podia elevar-se no ar ou baixar ao solo, deter-se no céu feito uma vespa ou uma libélula. Mas os nômades são como os visionários, os profetas, místicos que, subvertidos pelo desgaste e pela frustração de suas viagens, imaginam esses engenhos horrorosos. Falam também da lagarta metálica e velocíssima que atravessa certa região (não tão distante que não comporte influências de nossa língua), ao fio de um elevado em concreto, bem acima dos barracos, que vai do nascente ao poente, de um horizonte a outro, uma linha infinita, ao que parece. Há mais de um testemunho e idênticas versões dessa espantosa arquitetura e seu engenho fugaz. Os favelados dessa suposta região, assim como todos nós, não se impressionam, não se importam com isso, nada perguntam ou consideram. É apenas parte de seu mundo, como o sol, a chuva ou qualquer outra irregularidade. Mas a lagarta, confesso, manteve-me intrigado por algum tempo. Os testemunhos não podiam coincidir tanto, e os nômades, mesmo os mais confusos, não pareciam estar mentindo. Quem sabe exista mesmo o elevado, a lagarta. Quem sabe seja algo além de nós, mas uma real resposta ao sol. Ora, sei: eu, que nunca fui supersticioso, não vou agora render-me a conversas de nômades, ingenuidades e crenças. Mesmo que eu depare com a absurda lagarta, que diferença isso fará? Sou muito velho para a fantasia e a fé. Com uma fresta, uma lâmina de esperança, busco apenas consolar-me, sei, quando sinto que não estou bem.

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Imagem: Willem de Kooning. Escavação. 1950.

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