Office in a Small City por Edward Hopper

E a máquina de escrever?

Em companhia de mulheres, a rendição ronda os ombros de todos ali como delicados fantasmas.
Essas criaturas podem, com um beijo bem dado, afastá-los de qualquer magnífico ideal humano.
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Ilya Repin. Máximo Gorki. 1905Adultos, hein? Jesus, Fernando Pessoa e os Beatles não eram tudo, quem diria. Não foi tão doloroso assim afinal. A juventude se recupera rápido de tais abismos metafísicos, logo isso tudo se torna ridículo e chega a ser motivo de escárnio com relação a novos fãs, se é que ainda haverá, no futuro, fãs desses mesmos indivíduos, desses mesmos nomes e imagens. Dessas mesmas marcas, enfim, tenha a coragem de dizer – pois, no futuro, nem as religiões que existem hoje serão as mesmas. Mas, antes disso, antes que o ponteiro passe a outro quadrante ou que o vento mude de direção ou que transcorra pelo menos uma década em função de algum crescimento obrigatório, qualquer desses pensamentos pode levar um desses rapazes a crises de silêncio e até a depressões bastante desconfortáveis, admita-se.

Valdinei, Souto, Morghini, Verne: todos eles, esses que irão evangelizar o mundo e reeditar os poetas malditos com seu próprio dinheiro, na verdade preferem os bares que melhor inspirem seus incontáveis, bem-intencionados, inadiáveis, criativos, plausíveis, belíssimos planos.

Valdinei é, de longe, o mais inteligente. Danilo o admira, mas lamenta que ele não use sua capacidade apenas para a arte, pois parece que só brinca de escrever algo, seus olhos logo se voltam para o mundo dos negócios; a matemática o leva ao dinheiro; suas conclusões são perspicazes e claras; sua precoce visão de mundo surpreende a todos. Danilo chega a questionar, vez ou outra e para si mesmo, se ele não mente sobre seus ideais só para não perder a companhia dos amigos. Mas não. Valdinei não é disso. Ele se mudaria de cidade (como de fato o fará em pouco tempo) sem nenhum apego, sem nenhum constrangimento por suas decisões, não é lento como Danilo ou como Verne, que ficam enaltecendo e lamentando estrofes de maus poetas, inclusive a tonalidade da luz dos postes em determinadas ruas por onde vagabundeiam, antes e depois do bar.

Um dia, perdem contato.

E voltam a se falar (por pouquíssimo tempo também) ao serem informados, por fontes diferentes, da morte trágica de Valdinei em meio a um dia de trabalho, quando o avião em que viajava se despedaçou no ar após ter sido tocado de raspão por um pequeno jato executivo em sentido contrário.

Souto sorri rápido, e sorrir fácil é a sua marca. Quando distraído, parece estar sorrindo ou prestes a sorrir, boca fechada, mas sempre pronta a retomar o estado de humor de antes. É apenas natural, chega a ser sua defesa permanente, talvez, e não que fosse mais feliz que alguém ali, descontando-se a não aceitação de sua felicidade legítima, caso ela seja real. Mas tais tentativas de análise não se prestam a demorar-se muito nele. Não é tão problemático nem tão profundo. Ri de qualquer piada, ri de pouca coisa. Dá gosto ver.

Morghini, comentários amargos, sempre propenso a reclamar de algo, esse seu cacoete como se emitisse um tsc-tsc, mesmo sem motivo aparente. Ele parece mais velho que os outros. É um ano mais velho que os outros mesmo. E parece mais velho que os outros mesmo. Melhor dizendo, parece bem mais velho, mais do que um ano apenas. Mais rabugento. Mais cansado das coisas chatas que alguns deles fingem ser bonitas ou boas ou necessárias, principalmente quando conversam com meninas, porque, em companhia de mulheres, a rendição ronda os ombros de todos ali como delicados fantasmas, que essas criaturas podem, com um beijo bem dado, afastá-los de qualquer magnífico ideal humano.

Verne, sua barba delicada e bonita, quase loira, mas ainda castanha, ele é branquinho como um anjo, bobinho como um anjo, precisa do apoio dos amigos para não cair em ciladas, o que parece suceder por toda parte e ameaçar a todos quase rotineiramente. “Olha lá, ela acabou engravidando, o cara se fodeu, tá vendo?” Exemplos trágicos, isso não pode acontecer comigo, cada um se cuida em segredo. Verne precisa de nós, cai fácil, fácil, na conversa dessas sonsas decotadas. Outro dia o flagraram se engraçando com uma mulher mais velha, descasada, um filho. Agora ela quer alguém para arcar com a coisa toda, trabalhar e sustentar honestamente tudo o que um outro não quis, é ou não é? Nem é bonita o bastante, e isso conta, é lógico. Falsa boazinha, não engana a nenhum deles. Mas consegue encantar o anjo de olhos claros – que achado para ela! “Verne, sai dessa enquanto é tempo, velho, pelo amor da Janis, tem tanta mulher no mundo…” Alívio na semana seguinte. “Vocês tinham razão. Ela é meio complicada mesmo…” Ufa! Quem não sabia?

Exploram Cosmos, criticam Carl Sagan por causa do corte de cabelo dele e por ser americano, mas também o admiram. Fingem que entendem tudo e que gostam de tudo o que veem ali, o carbono-14 possui dois nêutrons adicionais, o hidrogênio 2 chama-se deutério, o que ocorre no Sol o tempo todo é uma reação de fusão na qual o hidrogênio torna-se hélio, uma bomba atômica natural, permanente, à qual devemos a vida, além disso, as luas de Júpiter… Mas a inspiração mesmo é esse astrônomo sorridente e apaixonado, de alguma forma um porta-voz de todos eles contra a mediocridade, um homem inteligente e simpático, que anda como caipira e não parece dar a mínima para exercícios físicos. Eles também podem ser tudo o que quiserem, basta ter ideal, determinação, entendeu?

Ideal é o que sobra a todos. Fragmenta-se como em um calidoscópio de boas intenções: salvar animais em vias de extinção na África equivale a derrubar o ministro corrupto ou a apoiar os direitos dos ianomâmi. Detalhes de algumas letras dos Beatles, interpretadas adequadamente, mostram que eles também pensavam nisso o tempo todo, em salvar o mundo, como estes outros, sem música, aqui.

Mas os Beatles já eram. E essas novas bandas… É essa que vai decolar, esses caras são bons, a próxima década é deles, quer apostar? Duram um disco. As rádios desertam de suas canções. É até uma vergonha voltar a falar nisso – e de tantas previsões erradas. Aí vem alguém que um deles mal e mal conhece, chega meio bêbado, debruçando-se na mesa, falando de um certo instrumentista do boteco tal que toca pra ca-ra-lho! – e todos o veneram, ao tal músico, só por causa disso.

Adultos, hein? Falando nisso… E a máquina de escrever? Ah, sim. Funcionando perfeitamente bem.

Marcas de gentis predadores

12. Mas como isso começou? – sequência

10. Fria manhã dos que se procuram – anterior

Guia de leitura

Imagem: Ilya Repin. Máximo Gorki. 1905.

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