Office in a Small City por Edward Hopper

De um passado em tons de cinza

Não é tão tarde.
Mas seu inconsciente já faz contas de como poderá vencê-lo, e isso ignora as horas, o mostrador digital ou qualquer outro marcador de tempo que se tenha jamais construído.

Emmanuelle Vial. Porta (detalhe inferior)Enquanto o ouvia, àquele homem de calva que tão bem guardava memórias de sua cidade e de seus familiares, Júlio não conseguia evitar também rápidas reminiscências, que o tempo de uma lembrança não transcorre realmente, como a harmonizar-se com nossos outros relógios, os que controlamos aqui fora, mas flui de um lado a outro num único impulso, assim já se dando toda a sequência, ainda que aparentemente em ordem.

“Fui amigo de seu falecido tio… De seu avô, tempo de exército…”

Por trás daqueles óculos, dentro daquele crânio rosado, toda uma história poderia revelar-se, uma história pessoal, nunca menos importante que os eventos coletivos, como visivelmente se pode constatar, por meio de qualquer pessoa. É por isso, pensava com clareza, que voltei a procurá-lo. Por isso, estou de novo à sua frente. Com esperanças obscuras de que me passe, entre uma palavra e outra, algo de que não mais me recordo e que talvez seja a pista de que ainda não disponho, a peça que me falta, que falta, que me falta, que me falta, calma, calma, que lhe falta para quê?

“Parece que foi ontem… Quando despejaram seus pais da casa junto ao bosque…”

O camundongo que provocara toda a correria no barracão das ferramentas acaba morto por Júlio. No fundo, desejando que ele escapasse dali com vida, quando fingia querer acertá-lo para participar da perseguição, num lance de sorte e de azar, fora dele o golpe certeiro. “Quase nos escapa esse demônio”, conta o avô às mulheres da casa. “Mas o nosso Júlio aqui deu conta dele. Está virando um homenzinho.” Um homenzinho. Tornando-se homem. Claro. Estava aprendendo a matar.

“Você ainda desenha? Lembro que todo mundo gostava dos seus desenhos.”

A escola de pintura. O menino que o ensinara a fumar. Aos onze anos, entre outros colegas, discutiam como pequenos intelectuais, em torno do chafariz de carranca, o recanto entre as árvores, ele em meio àqueles promissores artistas, o artista que poderia ter sido. O dia nublado, quando pedira ao pai que o fotografasse junto aos seus desenhos mais importantes. Uma criança séria, em preto e branco, desenhos que que à época lhe eram tudo, agora não mais. Era notável que sempre houvesse perdido tantas oportunidades.

“Quem diria! Você, esse rapaz independente, quem visse você naquele tempo, aquele menino frágil…”

Pensava que os anos de sua infância eram muito antigos, enquanto para seu pai configuravam a exuberância da juventude. Que não se podia deter a engrenagem das transformações. Que a morte era um fato único. E embora pudesse dizer: as casas onde meu pai morou, as surpresas que teve, as tentações que o levaram, nada se alterava. E só havia uma morte para seu pai. Não, não. Estava perdido outra vez. Aquilo não fazia sentido. Ou fazia tanto sentido que não estava preparado para compreender.

“Lembro que ele fazia perguntas estranhas, às vezes.”

“Como? Estranhas? Que tipo de perguntas?”

“Coisas como: por que tudo tem que passar? Por que lutamos por tanta coisa mesmo sabendo que vamos perder tudo? Coisas assim, sabe?”

Pretendia encerrar a conversa antes que se constatasse constrangido. Muitos atribuíam a seu pai uma aura de loucura, o que muitas vezes o envergonhara. Mas quem engendra perguntas dessas serve-se de uma invejável lucidez. Enquanto procurava recordar em que sentido corriam as águas do rio em sua cidade, estreitava os olhos imperceptivelmente. Se pudesse ver-se, teria diante de si uma expressão derivando ao ódio, porém intimamente não se tratava disso. Recordou-se do sonho com os mortos, dizia-se como antes: “Estranho. Sempre pensei que essas águas fluíssem no sentido contrário.”.

Não é tão tarde. Mas seu inconsciente já faz contas de como poderá vencê-lo, e isso ignora as horas, o mostrador digital ou qualquer outro marcador de tempo que se tenha jamais construído.

Os últimos dias de agosto

94. E o lugar será outro – sequência

92. Lapsos de cegueira e lucidez – anterior

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Imagem: Emmanuelle Vial. Porta (detalhe inferior).

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