Office in a Small City por Edward Hopper

Síntese de cristal e sombra

Rembrandt registrava, na evolução de seus autorretratos, um rosto imune aos adjetivos, de um homem também inclassificável, que nunca se deixara abater.
Seria possível imitar aquele olhar e estendê-lo ao longo da vida? Que tipo de perdas o enrijeceriam?

Rembrandt van Rijn. Autorretrato. 1659A ideia sobrevive, não os homens. Lutar pela vida é também uma ideia que se sustenta, paradoxalmente. Júlio tinha de novo a impressão de que a vida real, o cotidiano com os ônibus urbanos, os digitais nas avenidas e todas as coisas práticas, e as escadas e os elevadores, e um estudo sobre a melhor maneira de se aparar as unhas sobre a cama, e a sua coleção de discos, e o trabalho de todas as formigas da Terra, e as tentativas de salvamento das tartarugas marinhas, e a possível ascensão da cidadania, era tudo da mesma ordem, não era a vida, mas um lado óbvio, legível, que apenas se cumpria e se podia facilmente decifrar (outro termo bastante exagerado no caso), com isso desorientando os homens, apontando-lhes um avesso das bússolas. Por tudo isso, acreditava-se limitado a ser um homem pela metade, a quem faltasse reestruturar, antes reorganizar os quebra-cabeças que lhe montaram grosseiramente através dos anos, de peças encaixadas à força e perdoando-se as lacunas, sentia-se uma espécie de corcunda ou mutilado mental. Normalmente, quando ele via um cego ou um paraplégico, ficava constrangido por poder andar, por poder ver, e muitas vezes, dissimuladamente, chegava a atravessar a rua para não cruzar com um deles, na mesma calçada. Sentia o mesmo quando deparava com pessoas de inteligência precária, como parecia acontecer-lhe cada vez mais. Isso não ocorria com relação a Estela, de quem há pouco se despedira, a caminho do trabalho. Mas não, não se impressionava com os aleijados que pintavam com os pés ou com os cegos que tocavam piano, pois lutar pela vida era (repetindo a si mesmo) óbvio e necessário.

Por outro lado, quando revia homens como Rembrandt (impossível dissociá-lo dos autorretratos), sentia-se frente a outra espécie de aprendizado, algo tão estranho à maioria, um plano mal pressentido sob as sombras, sob o cristal dos detalhes mais fulgurantes, com o que outros homens não poderiam forjar exemplos, como facilmente faziam com os cientistas e com os inventores. Os olhos de Rembrandt falavam por si mesmos, embora nada contassem, e eram justamente a síntese da sombra e do cristal, e não poderiam ser adaptados aos álbuns de figurinhas ou por partidários dos bons princípios, que nos tornam a todos inofensivos. O pintor, que intensa e lucidamente via, no decorrer de sua trajetória, perdera a esposa, a quem amava, e o filho, também artista, seu grande companheiro. Mais tarde, desprezado inclusive pelos colegas, declinara ao esquecimento e à pobreza, enquanto registrava, na evolução de seus autorretratos, o rosto imune aos adjetivos, de um homem também inclassificável, que nunca se deixara abater. “Mais um indivíduo”, criticou-se Júlio, com um movimento de cabeça e voltando o cigarro à boca. “Adequado ao que você procura, só isso.” Não só: parecia-lhe mais próximo à verdade, impróprio às manipulações, uma dosagem de resignação e força, rebeldia e consciência, bem diferente do que pregavam os políticos e os padres, e bastante confuso para as réguas dos moralistas. Desafiador, em última hipótese. Seria possível imitar aquele olhar e estendê-lo ao longo da vida? Que tipo de perdas o enrijeceriam? No caso de Júlio, a ideia da morte e sua certeza eram o que mais o desmotivavam, não por medo ou por julgar-se, como todos, especial, mas por entender, de antemão, qualquer luta perdida. Recordava os avós mortos e o último rosto que o olhara do espelho, pela manhã. Todo rosto no espelho lembra o anterior e aproxima o seguinte, cada rosto mais próximo do último. Detinha-se numa esquina, entre o trânsito humano, pensava: mais um pouco de tempo se foi. E agora? Observava o congestionamento nas ruas, rostos e corpos percorrendo os dias. As pessoas não se repetirão. É preciso compreender o que se passa. Ou não? Por que seria preciso? Viver era mesmo necessário? Não. Mas havia a vida. Se era indiferente abrir mão dela, por que não prosseguir? Além do mais…

Prometera não mais justificar-se. Menos ainda com dialéticas de adolescente. Por pouco, não se comovera como um idiota, como quando, nos últimos degraus do pátio da escola, ele se tornara um menino chorão, após haver fracassado nos esportes e em outras provas da exigência alheia, também depois que os colegas o haviam aconselhado rudemente a morrer. Não queria mais pensar em nada. “Fui até onde pude. Vocês venceram. Não quero mais pensar em nada. Não quero pensar em minha morte, muito menos em minha vida. Em nada.” Ainda assim, prosseguia, confusamente. Mesmo sem esperanças. Instintivamente. Cinzento por toda parte. “Estranho… Sempre penso em Rembrandt.”

Os últimos dias de agosto

97. Classificados, respeitados, esquecidos – sequência

95. Johann Fust e a máquina de enganar – anterior

Guia de leitura

Imagem: Rembrandt van Rijn. Autorretrato. 1659.

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