Office in a Small City por Edward Hopper

Eu tenho um diário

O que me estranha é sermos sempre nós os que vivemos.
E todas as civilizações extintas não valem mais do que o nosso dia
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Edward Hopper. Hotel junto a uma ferrovia. 1952Júlio se preocupava com coisas pequenas e também se preocupava com coisas grandes. Sabia que um detalhe da natureza, uma minúcia bem considerada, podia atenuar um grande mistério. Sabia também que toda a obra de um filósofo podia estar apenas enfatizando questões confusas e não tão importantes, além de, com sua linguagem rebuscada e rica em vocábulos intencionalmente empregados para impressionar o leitor, criar perigosamente inúmeros outros entraves para a evolução do conhecimento.

Agradava-lhe imaginar que, enquanto voltava da escola com sua mãe, pelas ruas de terra, cuidando da encardida lancheira com espaço para uma banana, que era sua merenda, e uma garrafa plástica, que à água impregnava com um sabor característico, enquanto de fato tais pequenos gestos ocorriam em seu primeiro ano de estudos e em sua pequena vida, Jorge Luis estava em Cambridge, John e Paul gravavam faixas de seu novo trabalho, Che sucumbia a uma bala, e talvez já se houvesse planejado o tiro que deitaria Martin na terra dos brancos. Tantos e tantos homens sobre o planeta de muitas nações, cada um deles, em todas as idades, cada transformação e tragédia, mas era sempre ele quem existia. Descontando-se a atual estatura do observador em questão e substituindo-se algumas cercas de arame por muros de hoje, tratava-se do mesmo dia. Muros e cercas, tramas de arame ou blocos espessos, sempre a área delimitada, o limite ou sua sugestão. Parece não ser o mesmo dia, mas é. Nem parece a infância de uma mesma vida. E foi. Aquele dia era hoje. Hoje é tudo o que aconteceu. Como também o que estava ainda por acontecer. Está bem, temos de ir aos poucos.

“Temos de ir aos poucos, Pablo.”

“Sim, como sempre. Todo pequeno gesto, desde um insignificante levantar-se e andar, pode ser o sintoma remoto de uma plenitude.”

“Ao mesmo tempo, concresciam as torres gêmeas de Manhattan. E a jovem nação israelense expandia seu poder por regiões fronteiriças. Você não tem culpa, Júlio.”

“Mas não se trata disso, Cândido. Não espero que se erradiquem os conflitos, sem eles não haveria vida. O que me estranha é sermos sempre nós os que vivemos. E todas as civilizações extintas não valem mais do que o nosso dia.”

“Confusões dispensáveis. Não precisamos de tantos sinais de percepção.”

“Cada gesto guardava obscuramente uma intenção posterior de realização. A concretização de um ideal não reconhecido claramente como ideal. O gesto maior e o menor, partes de uma mesma escala de valores. A mão que rege a orquestra, a que conduz o punhal.”

“Tem certeza disso, Pablo?”

“Não me olhe assim. Não estou afirmando nada.”

“Pois parece seguro.”

“O desconhecido impulso que leva o cientista a dedicar sua vida à investigação, os adolescentes tentando entender o funcionamento do motor de um carro ou de um barbeador. Existência e infinito são quase a mesma coisa. Quase a mesma palavra. Basta que o espaço exista, para ser infinito.”

“Por que isso agora? Não foi você mesmo quem falou em confusão?”

“Como pode não ser? Imagine um muro nos confins do universo. O que há do outro lado? Nada? O vácuo é uma extensão do espaço. Além do muro, só pode haver mais espaço.”

“Talvez não estejamos preparados. Só isso.”

“Viu? Não é tão complicado. Ao contrário. É escandalosamente simples. Pablo tem razão. Ainda que tudo se desintegre, o espaço permanece. O espaço permanece. Em contrapartida, não é possível que alguma vez o espaço e o tempo não tenham existido de alguma forma.”

“Está bem, isso é Lavoisier. Aplicado à Física. Que loucura. Já estamos nos perdendo de novo, meu amiguinho.”

“Dois ou três milhões de anos… Admita, faz diferença, isso de um milhão de anos. O susto da inteligência, você sabe. Foi um golpe duro. Mas temos outros três milhões de anos para deixar a casa em ordem. Ora, não me diga que acreditou naquela história de que o mundo acabaria e que as grandes profecias e outras tais ameaças…”

“Claro que não.”

“A vida como ela passa, dia após dia, é um grande desperdício, você sabe. Por que não tenta fazer algo para compensar toda essa inútil…”

“Por que o faria, Cândido? Já basta o que por hoje vejo.”

“Voltar vestido com o gosto das lavanderias ordinárias e saber que não se pode lavar o mundo. Conhecer as cidades e o tempo, adivinhar as sepulturas, o próprio silêncio. E nada conseguir contra si mesmo. É preciso tentar. Ou vai se contentar com o dia-hoje e o número-nome que lhe querem?”

“Saiba que os poetas, os pintores e os músicos deixaram rastros. Pegadas nas quais os homens sensíveis reconheceram sua herança. Encontraram seus semelhantes, assim compreendendo que não estavam sós. Isso não apenas pode tê-los ajudado muito. Quem sabe tenha salvado suas vidas? As mesmas necessidades renasciam em pessoas diferentes.”

“Espere aí. Acabo de me lembrar… Algo que eu, há tanto tempo… Algo que pode parecer belo e terrível, mas… Vou contar-lhes de uma vez: eu tenho um diário.”

Os últimos dias de agosto

102. O mito do animal-mestre – sequência

100. Explicação do surgimento da mancha sinistra – anterior

Guia de leitura

Imagem: Edward Hopper. Hotel junto a uma ferrovia. 1952.

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