Office in a Small City por Edward Hopper

Lisette Maris. Caminhar, como faço agora (6/15)

Às vezes é preciso viver sem esperanças, sem esperanças mesmo, continuar.
Caminhar, como faço agora. Crescer, fatalmente.

Wassily Kandinsky. Paisagem de inverno. 1909Gosto de acordar muito cedo e flagrar as casas fechadas, dentro das quais as pessoas se encontram ainda na faixa nevoenta que separa do sono os calendários. A manhã mal instalada, focos frescos e sombras remanescentes, tudo se parece com o inverno. O inverno é que não se parece com nada.

Recordo Damares desiludida. Eu, pobre de fantasias e de fé, sem poder animá-la, penso às vezes que é preciso viver sem esperanças, sem esperanças mesmo, continuar. Caminhar, como faço agora. Crescer, fatalmente. Atravessar a vida em um mundo de classes e poder, contribuindo, como todos, com a rotina que provará minha cumplicidade, minha covardia, meu quinhão na fraude da existência. Continuar, pobremente. Acreditando ou não. Caminhar sob o inverno.

“Ela propôs que saíssemos juntos. Sábado à noite. A Feira do Largo, sabe?”

“Parece interessante. Aceite.”

Diego evita olhar-me de frente, mas parece interessado na conversa. Dalma, de olhos cintilantes, fogo branco trespassando o ar suspenso de orvalho: sua objetividade me surpreende.

“Você nunca me falou assim ant…”

“Não há tempo para hesitações. Treze anos de inverno, convenhamos. O que espera que eu lhe diga? Os medíocres acomodam-se aos desígnios dos deuses. Os fortes abrem caminho a seu destino. Há os que desistem, mas são poucos. Não importa o que seja a Feira do Largo. Aceite. Vá.”

A mesma sensação me assalta. Pouco atrás, ocorreu-me pensar em cada criança nascida morta, também nas que sobreviveram ao inverno intenso. Que a vida valia pelo que era, nada mais. Que a vaidade de um Galileu ou de um Francisco de Assis, buscando, com a implantação de seus exemplos, passar à história, em nada se associava ao que eu queria para mim. Que os planetas sem vida não me afastavam do fascínio pelos mares e que todo o universo não era senão eu próprio imaginando o que via. Que eu começava finalmente a compreender o mundo, que ele todo me pertencia, cabia em minha rua e em meus encontros. Sentia também que, com isso, e no instante seguinte, já começava a perdê-lo.

“Outalinc part que v cê manest fars minonr mais aci mes.”

Não ouço o que ela diz. Sim, a mesma sensação. Em certas noites, de minha cama impregnada de sono, tenho a impressão de que todo o ambiente flutua sobre ondas de balanço suave, que meu corpo gira lentamente sem que eu tenha controle sobre ele, quem sabe seja um obscuro sintoma, quem sabe já não navegamos surdamente, quem sabe não despertarei amanhã para minha jaqueta e meu gorro justo, e não deixarei minha casa ancorada com a nostalgia dos mares que não conheço. Sonho às vezes que esta casa parte de onde se encontra, navega não importa a que destino, então dou com um livro para colorir, que trago da infância, o fundo do mar em várias páginas abertas: do caldo de um passado espesso, emerge dessas ilustrações, entre os restos de uma nau antiga, cardumes e colônias de caravelas, arraias sorridentes, águas-vivas e simpáticos polvos, a pérola perdida, o camafeu caído sob os corais e a franja das actínias, outro resquício e pequeno tesouro submerso, em meio a tanto que foi meu, o que há de submerso em mim. E falta colorir.

Diego acrescenta gravetos à fogueira que mal nos aquece. Dalma devolve-me olhos claros, que prenunciam outro breve sorriso. Resvalo sobre minha coragem, volto-me a ela.

“Como vou saber se estou no caminho certo?”

Seu breve sorriso.

“Você não vai saber.”

Lisette Maris em seu endereço de inverno (6/15)

 Lisette Maris 7. O doce ferrão de sua primavera secreta – próximo

Lisette Maris 5. Enquanto temos carne, ossos… e sangue – anterior

Guia de leitura

Imagem: Wassily Kandinsky. Paisagem de inverno. 1909.

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