Office in a Small City por Edward Hopper

Querida, eu posso escrever tudo

Rodolfo tentava recompor-se, em vão. Lorena cobria os seios com os braços, enrubescida.
Andressa, com uma calma maquiavélica, apanhou o telefone sem tirar os olhos de ambos.

Henry Asencio. Enlevo.Cena seguinte.

Rodolfo em sua casa, com Lorena. Lorena perguntou:

“Tem certeza que ela não vai voltar mais cedo?”

“Claro que tenho”, respondeu Rodolfo. “Fique tranquila. O cabeleireiro leva a tarde toda nisso.”

Rodolfo deitou Lorena no sofá, ansioso, ambos quase nus, quando o telefone tocou.

“Deixe que toque”, disse ele, beijando-a com volúpia, com ânsia. Lorena, sôfrega, hirta, enterrava as unhas nos cabelos dele, tendo ao fundo o insistente telefone, única testemunha de seu frenesi, de seu êxtase. De súbito, para espanto de ambos, Andressa surgiu do quarto, numa camisola curta e muito transparente, cor de sangue, arrastando os pés de sono, olhos tapados por uma venda negra que usava para dormir, em direção ao telefone. Ambos se ergueram, desconcertados, enquanto Andressa tirava a venda e os contemplava, quase surpresa. Rodolfo tentava recompor-se, em vão. Lorena cobria os seios com os braços, enrubescida. Andressa, com uma calma maquiavélica, apanhou o telefone, sem tirar os olhos de ambos.

“Ah, é você?”, disse ela sorrindo. “Bem, obrigada. Como vai? O Rodolfo? Muito bem, como sempre. Claro…”

Quase acrescentei: “Querida, eu posso explicar tudo!”. Mas nem Américo Cabral faria isso. Em tempo: isso de ambos quase nus não me desceu bem.

Na revisão, excluíram algumas comparações e acrescentaram descrições físicas de Lorena, recheadas de lugares-comuns e associações eróticas baratas. Bem, o dinheiro é deles. A camisola cor de sangue de Andressa foi substituída por uma camisola negra e opaca, provavelmente sem atentarem às alusões sugeridas pela ideia da transparência e do sangue, em função da circunstância em que Andressa e ambos se encontravam, porque nesse caso… – que tédio! E esse ambos, aliás, já estava se pegando à minha língua, outro perigo.

O rapaz da editora chamou-me à mesma sala.

“Há muitas falhas no texto… Você demora muito para concluir algumas páginas e… É um pouco difícil lhe dizer isto, mas… Os leitores acham que você não serve. Vamos lhe pagar pelo que produziu, apesar de tudo.”

Acho que ele estava esperando que eu me levantasse.

“Entenda, faz parte do trabalho. Talvez você devesse tentar outra coisa, quem sabe.”

Ele estava esperando mesmo. Deixei a cadeira, para alivio da contida ansiedade dele, fiquei de pé à sua frente, pronto a trocar qualquer última palavra.

“Ah, tudo bem, não me incomodo”, disse eu, disfarçando minha frustração, minha tristeza, minha vontade de chorar. “Na verdade, eu não poderia mesmo tentar ser escritor. É que preciso muito ganhar dinheiro.”

Que bom para nós todos que eu não tivesse de escrever nada daquilo, eu o diga em primeiro lugar.

“Lamento, mas… Boa sorte com seus… Com suas…”

Meus o quê? Minhas o quê? Ele não sabia o que dizer. Nem eu. Por que dizer qualquer coisa? Por que escrever qualquer coisa? Parecia incrível que alguém ainda quisesse ler romances como os do grande Américo Cabral, consumir todo aquele lixo reciclável de estereótipos e lugares-comuns, como se nada houvesse acontecido na literatura dos últimos cem anos. Afinal, quem entende os leitores? Acho que todos nós já nascemos um pouco avariados.

Não sei se o que é novo – ocorreu-me outra vez procurar o novo – vale a pena ou é menos intolerável do que o já visto. Tive um colega que compunha poemas com senhas, códigos e termos abreviados, à maneira dos sistemas de informática e baseados em sua linguagem truncada. Coitado: ele ainda não conseguiu dinheiro para editar seu primeiro livro.

Os primeiros homens romperam com a estagnação quando inventaram ferramentas que multiplicavam suas forças. Os computadores são as ferramentas do cérebro. E os sistemas são hoje um fator de… de…

Isso não é ficção. Vamos lá, força, homem! Use suas ferramentas. Ao que se propunha desde o início e apesar de tudo, afinal…

70. Antes que o dia em questão me encontrasse – sequência

68. Américo Cabral assombra em vida – anterior

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Imagem: Henry Asencio. Enlevo.

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