Office in a Small City por Edward Hopper

Não fale grego assim comigo

Quase ri de mim mesmo ao me lembrar disso.
Cheguei a rir, na verdade. Senti vergonha e pena de minha ingenuidade.

Scott Harding. Ami
Via agora Vanessa e Copérnico, belos e saudáveis. Como poderia eu dizer-lhes que, além da viagem na memória, não se alcança o passado? Os dias são a nossa vida. Esse dia, nós três juntos, era o dia. Os dias são os senhores de nosso tempo. Fora deles, não nos servem os calendários. O dia em que comecei a escrever um poema para Vanessa mostrara-se de uma grande felicidade. Essa felicidade só podia assaltar-me naquele dia, naqueles minutos em que me propus escrevê-lo. Eu nunca o terminei, muito menos o enviei, claro. Mas enquanto o produzia e imaginava seu destino, vivi um prazer particular, especial, algo que nunca mais se repetiu da mesma maneira. Por vivermos em mundos diferentes, criei um primeiro verso metafórico que buscava expressar a distância que nos separava, como se fôssemos estrangeiros em um mesmo país. Começava assim: Não, não fale grego assim comigo… E não passou de uns primeiros versos, que escrever bons poemas não é coisa que se faça em um único dia. A montagem da estrutura dessa obra poética singular foi se complicando, e eu não fui capaz de concretizar nada muito sensato – ao contrário, o pretensioso poema parecia ganhar tons sempre mais patéticos. Quase ri de mim mesmo ao me lembrar disso. Cheguei a rir, na verdade. Senti vergonha e pena de minha ingenuidade. Por pouco, não repeti em voz alta, ali mesmo, esse verso nostálgico, adaptando-o ao momento, tendo Vanessa como plateia, musa e destinatária: Não, não fale grego assim comigo

“Nosso amigo agora está escrevendo”, disse ela com fina ironia e, felizmente, cortando meu fluxo de pensamento.

“Escrevendo?”, fez ele sem entender.

Eu já esperava que ele não entendesse na primeira.

“É, escrevendo”, respondeu Vanessa.

“Escrevendo o quê?”

Ele perguntava tudo a ela, como se eu não estivesse ali. Ou como se eu não soubesse falar. Inacreditável.

“Contos”, eu disse, e ele tornou a olhar para mim.

“Contos? Ah, que bom! Então, virou poeta?”

Escrevo contos, logo sou poeta. É a lógica dos medíocres.

“No momento, estou trabalhando em uma novela”, confessei com certo sarcasmo.

“Ah, é? Que bom! E como vai chamar?”

Era incrível. De repente ele se mostrava interessado na porcaria da minha novela. Ou talvez fosse apenas um truque para irritar-me. Provavelmente. Que bom, por quê? O que é bom nisso?

“Tenho um título provisório, mas não decidi ainda”, disse eu com surpreendente serenidade, como se fosse mesmo um escritor de ofício, e fosse obrigado a escrever livros com regularidade, e tivesse de encontrar logo um título, e uma grande editora necessitasse, com urgência, transformar meus textos em edições de primeira estante – isso, claro, até que se fizessem deles filmes e seriados.

“Ah, é?”, disse ele. (Ele sempre repetia esse ah-é.)

“É.”

“E qual é?”

O homem importuno.”

Mentira, claro. Ocorreu-me esse título de repente, imaginando Copérnico como personagem principal. Estávamos olhando um para o outro. Ele deve ter pensado o mesmo em relação a mim. Um cretino.

“Engraçado”, disse ele. “Você tem cara é de pintor.”

Poderia ter dito artista plástico, mas pensou que eu não fosse perceber a ironia. Não, eu estava sendo malicioso demais. Copérnico não tinha capacidade para ser irônico, nunca teve. E nunca foi à custa de ironias que eles se divertiram comigo, todos sabiam disso.

“Ah, é?”

“É.”

Desta vez, fui eu. O ah-é dele contagiava, que fatal! E quase não resisti quanto a perguntar-lhe como era a cara de um pintor. Mas evitei a tempo.

“Engraçado”, ele repetiu, maçante.

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Imagem: Scott Harding. Ami.

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