Office in a Small City por Edward Hopper

Foi então que…

No começo, tudo são esperanças, e as palavras as alimentam.
Mais à frente, nos espera o mundo. Imune às palavras.

Giorgio de Chirico. A comédia e a tragédia. 1926.Mas talvez eu esteja enganado sobre a primavera. Talvez seja tudo a minha solidão, o fato de voltar-me Vanessa e atingir-me com a mesma intensidade. Eu diria que naquele momento seria capaz de qualquer coisa por ela. Qualquer coisa. Mesmo imaginando um sacrifício absurdo, assim é o que sinto. Se alguém não está pronto a sacrificar-se, morrer por sua paixão, não está vivo o bastante. E nada é mais forte do que a paixão. Nada. Nem o ideal que se escolhe. Nada. Nada! Espalmei a mão sobre a mesinha logo após o último nada, sem me dar conta disso – ou dando por isso tarde demais. Eles me estranharam por um momento. Mas continuaram conversando.

Houve muitos silêncios constrangedores. Para todos nós. Pior ainda era quando eles retomavam algum assunto particular, que não me dizia respeito absolutamente, e então era como se não fossem terminar nunca mais.

Mas eu me dispunha a suportar qualquer coisa pelo prazer de arruinar-lhes o programa. Era o mínimo que eu podia fazer. E eles nunca mais esqueceriam esse domingo, essa tarde em que eu – eu! – teria surgido do nada, como um espectro sem futuro, especialmente para atormentá-los. Adivinhava o ódio que me dedicariam mais tarde, o que pouco me importava e ainda me enchia de satisfação. Podia ver Vanessa roendo as unhas, sua frustração de mulher, enquanto Copérnico tomava o ônibus de volta, ele por sua vez premeditando, como um animal instintivo, que desceria ao banheiro do primeiro posto de parada e se masturbaria sumariamente, pensando nela, sonhando com ela, tendo ficado por passar-lhe a incendiada chaninha a limpo. (Certamente eu iria com eles até a rodoviária, para as despedidas, como já se supõe.)

Penso em morrer por qualquer coisa, pois minha vida não tem sentido em si mesma. Morro sim! Em nome de uma causa qualquer, mesmo que eu não a compreenda perfeitamente. Morro por minhas paixões, enquanto vocês morrem de velhice.

Vi, no horizonte da avenida em perspectiva, um grande cogumelo atômico desenvolvendo-se na amplidão do céu, agigantando-se em suas formas espantosas e suas cores infernais. Gostaria que isso acontecesse de uma vez por todas, naquela mesma tarde, assinalando o fim de todos os hipócritas e todos os medíocres, dos mais saudáveis aos mais indiferentes, destruindo para sempre as possibilidades de vida humana neste planetoide superpovoado de idiotas. Que prazer eu teria em apontar-lhes o horizonte e dizer-lhes: “Vejam! Vejam só! Então vocês não sabiam que a humanidade podia suicidar-se?”. E podia vislumbrar a expressão de horror no rosto deles (Vanessa arregalando pela última vez seus olhos bonitos), como também no rosto de todos os conspiradores daquele café. “Ora, não me digam, vocês, que não sabiam…” Enquanto eu, somente eu, rebentaria numa gargalhada escandalosa, vil e incontrolável.

Nada disso aconteceu, e nem é preciso dizer. À parte a ausência de tais eventos catalisadores, mesmo a pressentida catástrofe nuclear seria um suplício leve demais para todos os conspiradores deste mundo. E a verdade é que o fim do mundo nunca chega, apesar das esperanças dos místicos adventistas. Acho que eles são um pouco como eu, apegados a palavras. No começo, tudo são esperanças, e as palavras as alimentam. Todos acreditamos que as palavras são sementes, são armas, instrumentos, e que mudarão o mundo, de certa forma ainda impreciso, não tão sólido, não tão real, não tão imperioso. Mais à frente, nos espera o mundo. Imune às palavras.

Então apareceu um bêbado, sujo e maltrapilho, proferindo blasfêmias e palavrões, dizendo coisas sem nexo, e chegou avisando, com voz arrastada, que o governador estava logo ali, na outra esquina, inaugurando um posto de saúde. Evidentemente ninguém acreditou, e o vagabundo seguiu em seu caminho, cambaleando avenida afora. Depois, passou um cortejo fúnebre na rua adjacente, por pouco não cruzando com um ônibus de excursão que se dirigia a algum estádio, com faixas e bandeirolas, repleto de torcedores alucinados. Aquela maldita esquina parecia atrair ironias.

A voz roufenha e sonolenta de Copérnico outra vez:

“Aquele seriado foi ótimo.”

Toda vez que eu o ouvia, sentia brotarem-me ideias mórbidas. Não sei por quê, dessa vez inventei uns vermezinhos simpáticos, como num desenho animado, perguntando: quem terá sido este?, enquanto jantavam suculentos miolos dentro de um crânio humano que eu imaginava o de Copérnico. Vermes, insetos ou o que o valha, um desses minúsculos organismos que passeiam cegamente pela vida, enquanto nós também, à nossa maneira… Melhor nem continuar.

“Eu sempre gostei de seriados”, mentiu Vanessa com um olhar inteligente.

“Este outro parece que vai ser melhor.”

“Não! Não pode ser!”

“Parece mesmo.”

“Você viu as cenas?”

“Por isso mesmo! Por isso mesmo!”

“Vi. Estou ansiosa. Se não me engano, vai começar na segunda-feira, não é?”

“Eu odeio seriados!”

“Se Deus quiser.”

Nada disso adiantou. Apesar de meus esforços, eu não conseguia mais introduzir-me na conversa. Eles me interrompiam aleatoriamente e falavam por cima de minhas palavras, como se eu nem estivesse ali, como se eu já houvesse evaporado, de acordo com o desejo inconsciente deles, como também consciente. (Inconsciente-evidente: alguém precisa inventar logo essa expressão.)

Ouçam, desistam dos seriados! Nosso país está do avesso, tudo caindo aos pedaços. A classe média vai sendo levada à miséria; e os miseráveis, à fome. A escravidão está voltando de maneira mais sutil, embora óbvia. Parem de assistir a essa quantidade de seriados imbecis que ninguém aguenta mais! Acordem! Olhem a vida ao redor! E a morte! Realizem-se!

“Então, quando começar o primeiro capítulo, sei que você vai lembrar de mim, não é, Niquinho?”, disse ela tocando-lhe o braço afetuosamente.

Niquinho! Não é, Niquinho? Ah, mas que insuportável! Que nojo, que nojo! Até um nome ridículo como o dele, eles conseguem suavizar. E aquela entonação melíflua, aquela simulação de intimidade… Sem saber, ela alimentava ainda mais meu ciúme doentio, minha inveja, meu ódio crescente. Uma onda de calor agitou-se em meus intestinos – a diarreia mostrava suas garras novamente. Eu já me sentia capaz de uma atitude drástica, como virar a mesa inteira em cima deles, provocando uma sequência de ruídos escandalosos e assustadores, e ainda quebrar-lhes copos e garrafas na cabeça.

Quando Vanessa inclinou-se, pude ver-lhe um seio solto entre o decote, o que incrementou minha confusão cada vez mais frenética de ideias, planos e desejos desencontrados. Foi então que me ocorreu brilhantemente o que faria em seguida. Foi então que resolvi matá-los.

A conspiração dos felizes

46. E aquela tarde suave, tão bela… – sequência

44.  Somos cópias produzidas pela repetição – anterior

Guia de leitura

Imagem: Giorgio de Chirico. A comédia e a tragédia. 1926.

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