Office in a Small City por Edward Hopper

Eram eles os doentes, não eu

Sentia-me perfeitamente lúcido, o que era admirável.
De uma lucidez cristalina e reveladora, num dia tão cinzento.

Henri de Toulouse-Lautrec. Exame na faculdade de medicina. 1901.Talvez não fossem pensamentos, mas sensações. Tanto pior. Intuir a ilusão do real aniquila eventuais teorias fornecidas pela razão. Mesmo sem a febre, eu me sentia doente. Intuição, verdades sentidas. Para tentar definir tais sensações, é preciso vencer a neblina das palavras, o que não é fácil. De resto, duvido que eu tenha essa capacidade. Cheguei a pensar que não havia nascido para trabalhar, mas para ver, embora isso fossem apenas palavras. Romper, por exemplo, a ditadura das ideias classificadas, rotuladas, em ordem alfabética e numeração de catálogo, o código das noções distintas. Em que ponto a Química esbarra (funde-se) na Física – e vice-versa? Até onde a poesia é prosa; a zoologia é arte; a música, profissão; a fé e a bondade, instrumentos da própria ganância; a sinceridade, outro disfarce das grandes mentiras? Até quando veremos tudo em estantes, tanques, alvéolos? Também não creio que se transmitam experiências pessoais além de certo grau de assimilação. Somos muito facilmente levados por teorias que mal conhecemos; cultivamos a fraqueza, ou a comodidade, quem sabe, de confiar em mestres e doutores, só porque alguém nos disse que eles eram isto e aquilo. Expoentes da ciência falam em viajar ao futuro, voltar ao passado, como se só dependesse de fabricarmos a máquina apropriada, quando, muitas vezes, não logramos sequer decifrar uma ligeira lembrança do fundo de nossa infância. É uma vergonha que cientistas tão renomados cultivem tais fantasias. Dizem coisas como: imagine um indivíduo à velocidade da luz… Ora, se isso não é possível de fato, que importa a etapa seguinte? Está bem, essas são também ideias minhas, tolices minhas. E não me dou conta da extensão do que deixo escrito. Se alguém vier a ler ou não, o que pensará destes rascunhos, tudo isso me é indiferente. Fácil entender: o fim de todos os fins não tem importância nenhuma. Muito bem.

Depois do almoço, andando à toa e sem pensar em nada, aconteceu-me uma decisão extraordinária: eu não voltaria ao escritório. Não voltaria. Pouco me importavam as consequências. A reação imediata que produziria minha atitude em função disso desintegrava-se em minha ampla visão de tempo e mundo. Se fosse o caso, telefonaria uma desculpa. Claro que não fiz nada disso. Apenas, bravamente, não voltei.

Vendo tantos indivíduos transitando pelo centro da cidade, chegava a acreditar que eram eles os doentes, não eu. Por que não? Sentia-me perfeitamente lúcido, o que era admirável. De uma lucidez cristalina e reveladora, em um dia tão cinzento.

Pelo vidro de um bar, o caixa fazendo o troco, contando as cédulas. Só isso. Não acreditará quem apenas lê estas palavras que tudo tenha sido tão positivamente real. O que não deixa de ser sonho. Pois o real não se vive, por ele apenas se passa, para então tê-lo armazenado na memória, caso a memória funcione a contento e, mesmo assim, no caso de valer a pena. Para além da memória, não existe nada. Pois um dia uma última pessoa que presenciou um determinado evento histórico fechou os olhos para morrer. Assim, ninguém mais pôde compartilhar sua memória de tal evento, apenas alcançou ouvir dela o que, fiel ou distorcidamente, testemunhou. Ninguém pode nada além disso. O mais são registros – é outra coisa, claro. O caixa acaba de fechar a gaveta. Acabou. Já não é. Só em minha memória essa imagem, com seus ruídos, ainda se repete, como acabou de dar-se, porém em nenhuma outra parte. Como sempre, talvez eu tenha exagerado. O real nem chega a ser um sonho de tão pouco.

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Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. Exame na faculdade de medicina. 1901.

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