Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Nossa juventude em fatias de espaço-tempo

Uma festa opaca e branda.
Orientada por outra magia.

paul-klee-o-balao-vermelho-1922-1A morte da Maga assinalou, para nós, o fim de uma era. Nosso espaço-tempo, em fatias. Tínhamos todos mais de trinta agora. E ela, sendo uma de nós, representava outra memória sobrevivente da década anterior, nossos vinte anos. Para além disso, uma menina acima do peso, distraída pela curiosidade e atravessando inocente um tempo de verdes, intacta na fazenda dos avós, onde a atualidade parecia eterna.

Nossos impulsos gargalhadas excessos e solidões pareciam renovar-se nas festas sem pretextos que a Maga, solitária e ativa, arranjava em sua casa. Com isso, ela queria estender, ela fez estender nossa primeira juventude a um futuro sem limites, que seria sempre nosso de alguma forma. Todas as festas em sua casa bonita, desde as noites frescas com sinos dos ventos nos recebendo à entrada, tilintando sorrisos invisíveis na brisa, trechos estreitos entre cornisos, porções de sombra, mesmo à noite, guardadas por palissandras e sibipirunas, marcaram nossas vidas, nossas fatias de espaço-tempo. Para mim, especialmente, já eram parte das coisas que-eu-mais-tinha à época – porque ali eu conheci pessoas estranhas e comuns, inspiradoras e entediantes, dóceis e arrogantes (umas fingindo ser dóceis, outras pondo-se arrogantes por receio de parecerem fracas), como em qualquer outro núcleo se desenvolve o inesgotável fluxo de formas físicas que se mostram, toques e aromas arranhando leves impulsos ou desejos irrefreáveis, histórias de vida, fontes fiéis ou falseadas, sugerindo a subjacente desordem das relações humanas, alimentando reciclando conservando a comédia necessária dos encontros sociais.

Tudo muito inusitado. Irmão vindo do Rio. Médico da família. Suspeita de eutanásia. No dia de seu funeral, mesmo aqueles que não simpatizavam muito com ela (e os medíocres que riam dela às escondidas, fazendo piadas de gordinhas) sentiam-se gratos por todos aqueles encontros, quando as canções e outros sinais próprios de cada fase, diluindo nossa memória entre variações do álcool, faziam crer que poderíamos continuar assim como éramos, que só dependia de nós, principalmente de nossa motivada anfitriã, que nossa juventude jamais terminasse. Alguns ali, mesmo em momentos festivos como aqueles, aproveitavam para fazer negócios. Outros, para reabastecer seus egos. Eu parecia o único capaz de registrar tudo, e alguns esperavam isso de mim. Agora, tudo se foi. O movimento ininterrupto do globo entre nuvens, encobrindo um ativo gigante adormecido, havia destinado nossa amiga olhos claro-magnéticos ao passado irrecuperável do planeta. Em algumas horas, ela era tão antiga quanto os ancestrais onívoros da última glaciação. Sim, isso mesmo, e não se trata de apropriações poéticas. O tempo é plástico. O espaço é instável. Uma longa viagem-vertigem na qual todos os mortos se equivalem. Morte é separação. Sua memória, por enquanto. Para mim, por enquanto. Um dia, todos seremos as pessoas que morreram. Sem consciência futura. Apartados da realidade perceptível. Pensei na Maga despersonificando-se sob a terra. Viver, depois apodrecer. Horrível que seja assim. Mas sempre natural que seja. E a natureza não existe para me agradar. Alguns de nós haviam perdido parentes com mais idade nos últimos anos. Algo mais aceitável, menos chocante. Algum consenso sobre isso. Mas talvez a morte seja sempre prematura na opinião do morto. Lembro-me de que me fiz especialmente ansioso pelo próximo-último encontro na Maga, sem qualquer motivo aparente. Ninguém sabia que seria a última vez. Ninguém sequer suspeitava que ela fosse morrer. Os boatos sobre um namorado que ninguém conhecia pareciam ter distraído todos do câncer agressivo que a assaltara e que ela, conscientemente, aceitou, sem lutar. Como a oportunidade de ouro para deixar o mundo. Para não precisar mais viver.

Aquilo parecia sim o fim de uma era. Mas estranhamente não sugeria o início de outra. Enquanto isso, ego sob controle. Sempre. A Maga foi um centro, como nos sistemas cósmicos em processo, de forte intensidade gravitacional.

… Mario Bunge, filósofo da ciência, disse que, para quem estuda Biologia, a morte não é um mistério. Pode não ser. Mas não é o caso. Isso não importava muito, que não podia impedir nossa tristeza…

No velório da Maga, estavam todos abatidos. Sem exceções. Essas horas mornas suspensas em nossas vidas, trágicas em nossa perspectiva, começaram no fim da tarde e estenderam-se por uma parte da noite. O gigante adormecido, senhor dos dias úteis, dos dias inúteis e dos calendários que os contêm a todos, havia passado por ali, passado por nós. Mas como as coisas acontecem quando acontecem? Por trás de um senso comum que antecipa e geralmente acerta em seus palpites de ordem lógica, os acontecimentos parecem nascer de uma espécie de anarquia imperceptível, que ninguém, absolutamente ninguém, pode controlar. E toda essa gente, todos nós, que enchíamos a casa da Maga de barulho e bobagens, me fazia pensar em sua morte como um mínimo exemplo de uma aniquilação absurda, permanente e em larga escala, que era a morte de todos os que vivem. Era apenas a sua vez. Centro de outro encontro. Nenhum de nós queria ir embora. Mesmo os nossos conhecidos mais displicentes mais inconsequentes mais egoístas. Era uma última reunião um último arranjo uma última festa, sem música sem movimento, quase em silêncio. Uma festa opaca e branda. Orientada por outra magia.

A Marjorie estava conversando com umas amigas, perto do caixão – a Rose Levy, a Tatiana Siqueira e a Gisele Porto, se bem me lembro. E eu saí para respirar a noite fresca, o que ainda era a vida lá fora. Um lugar bem planejado: gramado entre passarelas estreitas, arbustos arredondados, árvores pequenas, plantas com flores amarelas e roxas pontuando o jardim, pequenos lagos artificiais, cruzados por pontes de alvenaria branca, que nos permitem atravessar com serenidade essas porções de espaço e de tempo entre uma parte e outra, entre um meu pensamento e outro, entre uma lassidão mental minha… e outra. Avistei a Queen ali perto, encostada a um muro. Sozinha ao lado de uma coluna baixa, fumando. No topo dessa coluna delicada e sem enfeites, uma lâmpada redonda, luz amarelada, quase cor de âmbar. Cheguei mais perto, e um grilo parou de cantar. Ela estava de braços cruzados, uma perna dobrada apoiada ao muro. Blusa escura, não sei de que cor, mangas arregaçadas até os cotovelos, jeans justa, azul-desbotada, desenhando suas pernas esguias, botinhas pretas com laterais de lona. Reflexos de um spot sobre os laguinhos em seu rosto, movimentos de luz muito discretos, água quase parada. A Lucienne-Queen tem uma facilidade natural em fixar-me os olhos. Como se quisesse trocar comigo um código, um pensamento flutuante, mas espesso e duro. Eu sei o que você está pensando. Não, não sei. Eu sempre sei. Não sabe. Isso tudo é só sugestão. Mas nos força a acreditar. Queen, me diga. O que a Maga te contou? Ela me olhou neutra, com olheiras. Cabelos lisos, caídos sem força, cortados reto e fendidos ao meio, destacavam sua testa pálida e bonita. Eu não falava muito com a Maga nesses últimos tempos, querido. Não eram muitas conversas, ela não chegou a ser minha confidente, entende? Nem eu dela. Entende? Sei. Entendo. Se a Queen não quisesse me contar nada, tudo bem. Mas eu queria tentar. Ela se calaria, de uma maneira ou de outra, pela razão que alguém tem para se calar, que é, em primeiro lugar, o seu próprio interesse – assim como eu jamais contarei a alguém sobre a Joss Stone, jamais, e é claro que todos compreenderiam que eu não contasse, pois a defesa de alguém, de seus interesses próprios, aberta ou clandestinamente, partem de uma motivação bastante simples de se entender. Comentei com ela que o Hugo Rebouças estava chorando muito no lá dentro. Uma sequência de três soluços fortes, como um fractal de pranto entre pausas breves para retomar o fôlego, pausas que simulavam outro soluço no vazio, como uma criança ofendida. Por que você acha que o Hugo teve esse surto incontrolável, essa crise louca agora mesmo? Sei lá. Porque ele deve ser louco. Um idiota. Mas, Queen, ela nunca deu nenhum sinal dessa doença dela e… não falava nada sobre alguém mais, como a gente vinha pensando? Não. Não mesmo? Não mesmo. Fui pega de surpresa, como todo mundo. Um vento muito leve passou. Ela não tinha obrigação alguma de me revelar o que fosse. Ninguém tem essa obrigação. Mas ela pode contar porque quer, por vontade de contar, e é por isso que conversamos e perguntamos tanto uns aos outros: para saber mais sobre todos. Alguns até esperam que se pergunte sobre algo pessoal, pois a vontade de contar, sob pretextos assim, aumenta. Será que a Queen sabia sobre o namorado misterioso da Maga, sobre a Maga ter alguém em segredo? Minha intuição nunca foi grande coisa, mas eventualmente parece mostrar-se algo mais aguçada, pelo que percebo. Nesse momento, lembrei-me de algo que a Mônica Rosa dissera uma vez sobre não poder confiar muito na Queen. Eu sentia que ela, a Queen, estava escondendo alguma coisa. Só porque me olhou mais de uma vez sem piscar sem sorrir sem se mover. Só virando o rosto, para soltar um pouco de fumaça.

Voltávamos do funeral da Maga. Em casa, entramos quietos. A Marjorie foi ao armário da copa, abriu um vinho triste. Sentei-me próximo a ela, à mesa menor. Dois ou três botões, soltei um pouco minha camisa. Desgaste compartilhado. Memento homo… – isso sempre nos ocorre, em qualquer idioma. Ela comentou de uma e outra pessoa. Certa ondulação calma em sua voz. Isso e uma entonação própria que, no passado, me encantavam por sua feminilidade firme. A ela também, por saber-se capaz disso. Agora, não me importava. Eu não fingia me interessar. Então ela se levantou macia e me pediu como há tempos nada me pedia. M’abraça…

Projeto esvanecendo-se

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20. Liberdade à força – sequência

 Guia de leitura

Imagem: Paul Klee. O balão vermelho (detalhe superior). 1922.

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