Office in a Small City por Edward Hopper

Caminhavam mais lentamente…

Logo pela manhã, a visão de um belo corpo feminino.
E os trens funcionando perfeitamente bem.

Frederick Usher de Voll. Praça Madison.Caminhavam mais lentamente, mãos nos bolsos; cada um, a seu modo, lutando contra a pressa e o hábito, uma resistência consciente e difícil.

“De onde vem a sua coragem? Você já pensou nisso?”

“Não preciso de muita coragem”, Estela com estranha naturalidade.

“Coragem não para os grandes obstáculos ou eventuais tragédias”, Júlio estreitando os olhos contra o vento. “Coragem para atravessar um dia qualquer, sabe, sem chuva nem contratempos.”

“Estou ouvindo. Continua.”

“Mesmo com dinheiro a receber. Nenhum problema de saúde. Logo pela manhã, a visão de um belo corpo feminino. E os trens funcionando perfeitamente bem.”

“É só alguma depressão. Mas não precisa se impressionar muito. Qualquer terapeuta recém-formado pode resolver isso.”

“Depressão, saturação, não sei bem. Aos poucos, perdi o gosto por coisas que antes me atraíam, mas acho que isso era necessário, necessário que acontecesse, digo. Quando vejo numa livraria as edições nas vitrines, nas estantes de parede e nas giratórias, penso: haverá algo que não tenha ainda sido dito?”

“Quem sabe? Por que me diz isso?”

“Sinto o mesmo com relação aos cartazes de cinema, os discos…”

“É estranho que você procure sempre o que não quer encontrar. Será que o que você procura existe?”

“Se o que eu procuro existe? Pensando assim… Não sei se o que eu procuro existe. Mas minha procura existe. Também não sei se saber disso ajuda. Parece confuso?”

“Não muito. Que estranho… Você será tão estranho como parece?”

“Acho todos estranhos.”

“Sei. Mas isso não passa de um critério seu, não é? Você pode ver como quiser. Estranhos ou não, todos nós temos riquezas interiores, potenciais e… Não acha?”

Júlio concordou, por comodidade. Apalpou os cigarros no bolso.

“Às vezes me preocupa”, ele como se olhasse muito à frente, “que sinais assim, de exaustão e desinteresse, ocorram com tanta frequência ainda na minha idade. Mas só às vezes. Digo, só às vezes isso me preocupa.”

“Que idade?”

“Vinte e cinco, quase. Não sei se isso conta. Há pessoas que não se entediam nunca, o que é um grande mistério pra mim.”

“Você parou de estudar?”

“E não vou voltar, garanto. Você, ainda estuda?”

“Não, mas penso em voltar. Mesmo na minha idade. Acho que isso não conta. Estou bem perto dos trinta, sabia?”

“Sério? Pensei que estivesse mais perto dos vinte.”

“Ahn…”, sorrindo, simpática. “Você sempre se engana.”

.

Trecho do romance Os últimos dias de agosto, quando os personagens Júlio e Estela, entre seus primeiros encontros, começam a se conhecer, ao seguirem juntos para o trabalho. Estela é uma personagem da manhã, em contraposição à personagem Vanda, que é noturna.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

4. Quita, a estrela distorcida. Bruno, mal resgatado – sequência

2. Páginas claras, penumbra – anterior

Imagem: Frederick Usher de Voll. Praça Madison.

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Comentários

Uma resposta para “Caminhavam mais lentamente…”

  1. […] do romance  Os últimos dias de agosto. Estela aparece pela primeira vez no bar de motivos siderais, mas Júlio não a notara, não a vira de fato, tendo apenas sido resgatado por ela quando não tinha mais condições de controlar seu estado de embriaguez. A partir desse episódio, todas as aparições dessa personagem são associadas às manhãs ou ao di…. […]

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