Office in a Small City por Edward Hopper

Invisíveis no intervalo

Ele a conquistou, é evidente. Ele a fez sorrir. E gostar mais ainda dele.
Como é bom, como é útil, meu Deus, ter uma arma.

Ele a segura pelos ombros. Com carinho.

“Ana, sabe, posso te dizer?” Coragem. “Tenho muita saudade daquela noite.”

De frente um ao outro, mas já reativando uns passos lentos que os farão voltar à trajetória anterior – corredor da faculdade, percurso repetido do intervalo, quando de repente (com carinho, claro) ele a detém.

“Que noite?”

Coragem. Não é uma grande tragédia afinal. Mas é como saltar de um penhasco. Sim, como se… Como, que noite?!

Solta os ombros dela, foi só um impulso. Outros estudantes se deslocam pela mesma passagem, ao redor, nas duas direções, ritmos variados, ninguém ali parece percebê-los além de um irrelevante obstáculo avulso. Mesmo assim, Danilo se retrai.

“Aquela noite… que eu te dei carona. Que nós…”

Seguindo outra vez, corredor adiante, até a saída do arco menor, quando começa a rampa descendo à cantina.

“Ah… Sei.”

“Quando deixei você na sua casa…”

“Minha casa?”

“Sim, isso. O predinho ao fundo da alameda estreita, eu me lembro.”

“Ah, não. Não é a minha casa, eu não moro ali não.”

“Não mora naquela rua?”

“Naquela rua, sim. Mas eu moro dois quarteirões mais pra frente. Depois que você foi embora, eu fui a pé. Pertinho.”

“Mas você entrou ali…”

“Fingi, só. Não entrei. Fui até a porta e esperei você ir. Pode ver que eu não destranquei, fiz tchau dali mesmo.”

“Mas… por que fez isso? Não tem medo de andar sozinha num lugar solitário como aquele?”

“Tô acostumada, conheço o bairro todo, não tem problema. Para de pensar nisso, tá bom? Tudo bem?”

“E por que fez isso?”

“Eu não queria que você visse a minha casa. Por isso. Tenho vergonha.”

“Imagine, Ana, por que isso?”

“Minha mãe é pobre, minha família é pobre.”

“E o que tem isso? Eu também sou.”

“Não é não. Não é a mesma coisa. Você tem até carro. Eu tenho irmãos pequenos. Minha mãe faz tudo sozinha.”

“E o seu pai?”

“Largou a minha mãe quando eu era pequena. Só vi em fotos. Nunca voltou. Depois de um tempo, minha mãe largou mão também, desistiu dele de vez.”

“Olha, Ana. Eu não me importo com nada disso. Quer dizer, me importo sim, de outra maneira. Quero ajudar no que eu puder. Eu quero… Olha, Ana. Eu quero te dizer uma coisa. Você pode pensar o que quiser. Pode dizer não, se quiser. Pode até me bater, se quiser.”

Ela ri seu sorriso lindo.

“Ai, como eu queria te bater, menino.”

“Não, não precisa rir, desculpe, eu só…” Olhar que copiou da telenovela: “Vem comigo, Ana Lúcia.”.

Pronto: está dito. Saliva, garganta entupida. Rosto com tons disformes de constrangimento. Mas está dito. Lá embaixo, o mar agitado, ruidoso, entre rochas escarpadas e pontiagudas, o corpo avançando no espaço, assistido pelas falésias, despencando entre os rochedos de Acapulco. Que lindas metáforas, fala a verdade. Que exagerado.

“Vem comigo, entende?”

“Com você? Aonde?”

Ela não teria entendido? Estaria só brincando com ele? Como fica o coração de quem salta de um precipício, de um paredão daqueles? Perde o fôlego? Para por um tempo? Atinge a plenitude? Que remissões românticas, que vocabulário ele tem. E que lixo obsoleto essas associações todas. Aonde pensa que vai com isso, rapaz? Seja gente, de uma vez.

“Vamos… ficar juntos, sabe? Vamos… Sabe, afinal são tantos e…”

“Tantos o quê?”

Sim, ela deve estar se divertindo. Não, ela parece não ter entendido mesmo. Tantos o quê? Explique-se melhor, explique direito. Ela espera, está esperando, diminui o sorriso, interrogativa, com isso pressionando-o a empregar as palavras certas, as palavras claras, um pouco mais de coragem quanto a isso, que esclareça francamente sua ideia. Talvez ela não tenha paciência para sutilezas, se bem que as tais sutilezas dele soem tão desastradas quanto suas gafes mais diretas.

“São tantos homens… E eu, sabe, tantas mulheres… Então… Por que não nós dois?”

Agora sim, ela o descontrai com uma risada muito feminina. Aí está o sorriso encantador (encantador!), de novo, em meio ao riso espontâneo e enigmático dela – um sorriso que poderia vender margarinas, detergentes e convênios funerários. Mas que coisa, como ela pode ser assim?

Balcão da cantina, os joelhos deles tocando-se por causa das banquetas todas próximas. Ele quer um sanduíche natural, ela só uma empadinha, brigada, muito pra mim, não quero acabar gorda, guaraná para os dois, nada de canudinhos, que isso é coisa de adolescente, copos médios, a máquina os completa rapidamente, tchsssblurp!, chegam sempre antes da comida os refrigerantes, pronto, a empadinha aqui, o seu demora um pouco ainda, mas já vem.

Ana toma um gole, guaraná geladinho, volta a olhar para Danilo.

“Continua falando, adoro isso. Fala. Fala…”

“Falar que… que eu quero que você venha comigo? É isso? É isso então. Isso.”

“Não, mas fala. Fala direito. Fala mais. Quer que eu vou com você pra onde? Pra quê?”, os olhos dela agitam-se, cintilando, duas joias vivas.

Quero que você fique nuazinha, quero lamber e morder você do pezinho até o pescoço, beijar a sua boca até não poder mais, quero pegar os seus peitinhos, encher a mão na sua bunda linda e… Não. Absurdo contar com essa coragem toda.

“Quero que você fique comigo. Sozinha. Num lugar secreto.”

Muito melhor. Já serve. Rapaz educado. E foi muito, muito corajoso afinal.

“Mmmm…”, Ana de lábios presos, olhos atentos, como se cheirasse um bolo saído do forno. Mas sem alarde. Silenciosa. “Quando?”, ela fecha e abre os olhos, transe de um instante, quase imperceptível, sem sorrir. E como desamassando o colarinho dele, desce a mão por seu peito, por cima do tecido, a voz dela agora em volume mais baixo, mexendo num botão da camisa dele. “Quando?”

“Não sei”, ele treme. “Podemos combinar.”

“Podemos combinar.”

“Ana, se eu pudesse, sabe? Pegaria a minha arma e mataria um por um, todos eles. Um por um. E fugiria com você.”

“Ahahah… Ai, que delícia! Adoraria ver. Eu ia dizendo: agora aquele ali; agora esse outro aqui… Ahahah… Cara, eu amaria ver isso…”, diminui o riso, morde com vontade a empadinha.

“Mataria um por um, com todas as balas que coubessem na minha arma. Nossa! E teria mais no bolso, entendeu?”

Ela se atrapalha, quase engasga, boca cheia, mas engole logo.

“Ahahah… Você me mata… Não, não, essa foi sem querer. Me mata de rir”, sua respiração vai voltando ao normal. “Ahn… Arma? Sua arma, é? Ops! Não, não. Me conta essa”, sorrindo de novo, linda, muito curiosa, limpando a boca em um guardanapo de papel – fica uma manchinha.

“Minha arma mesmo”, ele com seu orgulho viril, saboreando essa emergência feliz de sua coragem, de sua ousadia em convidá-la, em contar-lhe isso, em confessar-se capaz de gestos decididos, capaz de matar, vejam só que amante intrépido, que protetor indômito. E como, de repente, se sente bem! Um minuto atrás, não se acreditaria capaz de dizer-lhe nem a metade daquilo tudo, teria vergonha de lhe pedir emprestado um lápis. Ele a conquistou, é evidente. Ele a fez sorrir – e rir, vá lá. E gostar mais ainda dele. Com isso, ele se sente admiravelmente bem. Como é bom, como é útil, meu Deus, ter uma arma.

“Escuta, você vai me mostrar?” Lábios soltos, a boca não se fecha. “Vai me mostrar a arma?” Mão no peito dele, desamassando outra vez a camisa, que não estava amassada. Malícia pura.

“Claro. Se você quiser…” Gole no guaraná, suspiro gelado. Um caubói.

“Faz assim. Me encontra na quinta-feira. A gente combina. Mesmo, mesmo.”

Seria um truque? Por que na quinta-feira?

“Quinta-feira? Mas não vai ter aula quinta-feira.”

“Quinta-feira…? Por que não?”

“Vai ter jogo do Brasil.”

Ana Lúcia coça a cabeça. Tinha se esquecido.

“É mesmo. Que desgraça.”

Não parece um truque, ela está sendo sincera.

“Ana, escuta. E se nesse fim de semana a gente…”

“Segunda. Da outra semana, pode ser? Fim de semana não posso. Não mesmo. Nem pensar.”

“Bom… Tudo bem, claro. Pode ser. Você não gosta de futebol, não é? Que coincidência. Nem eu.”

Sim, grande coisa não gostarem de futebol. Feitos um para o outro. Só falta um ascendente em Câncer.

“Nem de futebol nem dessas outras coisas de heróis de fórmula um, de campeonato lá no fim do mundo, seleção disso e daquilo… Acho tudo isso um saco!”

“É, eu entendo…”, ele concorda, manso, só porque ela é bonita. “Eu também acho que…”

“O cara chuta no gol e fica milionário, fica famoso, todo mundo começa a amar esse besta ignorante que nem sabe falar direito. Depois, mandam a gente estudar pra ser alguém na vida. Uns imbecis! No nosso país, ninguém presta.”

“É, você tem razão sobre esses nossos heróis. Mas, também, nosso país é um conceito abstrato que não tem muita relação com…”

“Eu odeio esse país! O-dei-o!”

“O que eu quis dizer é que nem sempre…”

“Odeio tudo nesse país! Entendeu?”

“Calma, eu sei, você é que não entendeu, eu estou tentan…”

“Odeio tudo o que existe aqui! Entendeu? Odeio essas praias idiotas, essas florestas idiotas, essas montanhas idiotas, esse cristo idiota…”

Claramente alterada. Mas não gesticula. Não se vê de longe. Só o rosto muda de cor.

“Você está falando do Rio de Janeiro…”

“Foda-se o Rio de Janeiro! Foda-se essa gente besta que fica babando com essa natureza besta, o que é que nós temos com isso? A onça-pintada e a arara e o mico e essas porras todas, eu quero que… Olha, eu quero que isso tudo…” Então ela sorri de repente, interrompendo-se, solta uma risadinha rápida como se resolvesse encerrar o assunto, em definitivo. E é isso mesmo que ela sempre faz: encerra a coisa toda de repente. Não adianta tentar voltar ao tema, está encerrado. E pronto. Danilo já conhece e entende como funciona essa manha dela, esse mecanismo metafísico, o que significa esse sorriso fixo por algum tempo, após a risadinha interrompida. Tem um sorriso lindo, a danada. Lindo, definitivamente.

“Olha o natural! Seu?”

Agora?! Nem está mais pensando nisso. Foda-se.

“Eu te entendo, Ana. Também penso assim às vezes.”

Morde o sanduíche, demora a escapar de um fio de queijo. Nunca tinha pensado assim antes. Entende nada.

“É, eu sei, eu acredito. Sei que você me entende. Desculpa, viu? O que eu falei.”

“Hum! Hum-hum! Tudo bem.” Boca cheia, gestos no ar, uma vergonha. Quem não perdoa uma mulher gostosa?

Acaba a empadinha dela. Guaraná também. Rápido com esse sanduíche, vamos.

“Acho que só você acredita em mim. É isso. Só você me entende, viu?”

Acreditar, vá lá. Quanto a entender, cada vez menos.

“Ana, eu… Se você…” Não sai nada. Engole como pode um último naco engordurado que quase lhe obstrui o esôfago.

As banquetas se deslocam, sempre ruidosamente. Pronto, ela quer voltar. Levantam-se. Caminho de volta. Despedem-se em frente à porta da classe dela. Ana se aproxima com um beijo breve e suave, um toque rápido na boca de Danilo, quase sem tempo para que alguém veja, quase sem tempo para que ele próprio o saboreie, que pena, mas é sempre bom. Volta a lhe sorrir de frente. Fica assim então. Fica combinado, então, de se verem em segredo. Fica combinado para a semana seguinte então. Fica combinado, então, de ele levar a arma.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

26. Um puta abraço, os dois – sequência

24. Um único tiro – anterior

Imagem: Tomie Ohtake. Sem título. 1994.

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Comentários

9 respostas para “Invisíveis no intervalo”

  1. Avatar de Danilo

    Legal este capítulo, mostrou um pouco mais da personalidade do personagem principal que na minha opnião é muito instável e muito rebelde tbm, por que tanto ódio? Já a personagem Ana, essa desperta meu interesse, muito charmosa, gostaria que ela existisse para que eu pudesse conhecê-la rsrs. Mas voltando ao que interessa, outro texto muito bom, gostei novamente de como o texto vai se encaixando, as brincadeiras e o mistério… Parabéns Perce! Grande abraço.

  2. Avatar de suelen freitas
    suelen freitas

    Muito interessante, gostei pelo fato de ser algo cotidiano, mostrando ao leitor como mulheres inteligentes e capazes de manipular um homem se rendem ao “poder” de um homem que se julga poderoso por estar armado. Abraços. susu

  3. Avatar de Amanda

    Muito bom Perce!
    Me deu vontade de comer pastel de carne-queijo hehe

  4. Avatar de Hecton Domingos

    Perce,

    Eu não tenho know-how pra comentar sobre suas interessantes histórias. O que mais gosto no decorrer delas é que as mulheres são intelectualmente e têm um charme bem sutil e gostoso de apreciar. Li ela quando saiu… ontem mesmo, li novamente. Curti muito.

    Um forte abraço.

    LEOMÁRIA MENDES SOBRINHO,

    É tão… tão… tão desagradável ler um comentário repleto de uso do caps lock. Só gostaria que você soubesse disso.

    Ah, comprar remédio controlado sem receita médica faz mal à você, moça. Não faça isso.

    Beijinhos (if you’re really hot, of course.)

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro Hecton
      Os autores não contam com isso, com o know-how dos que os leem. O melhor de tudo é conquistar o leitor pela estética, pelo prazer da leitura, pelos desfechos possíveis, pela capacidade de fazer pensar, sentir. Se possível, criar um texto que dê vontade de ler de novo, saboreando parte por parte. É um desafio inspirador.

  5. Avatar de LEOMÁRIA MENDES SOBRINHO

    A MENTE HUMANA CRIA, SONHA E TRANSPORTA REALIDADES QUE NÃO EXISTEM PARA O MUNDO EXISTENCIAL.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      É verdade. Um forte exemplo disso são as religiões. Mas o que torna o ser humano interessante é justamente essa capacidade de imaginar.

  6. Avatar de LEOMÁRIA MENDES SOBRINHO

    A MAIORIA DOS PAIS PENSAM QUE OS ADOLESCENTES ESTÃO APTOS A VIVEREM INDEPENDENTES NESTA FASE DA VIDA, NA FACULDADE, PORÉM NEM TODOS O ESTÃO.DEVEMOS VIGIÁ-LOS E ORIENTÁ-LOS PASSO A PASSO , PRINCIPALMENTE AQUELES QUE AINDA NÃO VIVERAM O SEU PRIMEIRO AMOR, ONDE COLOCAM AS SUAS MAIORES ESPECTATIVAS , O CORPO E A ALMA.CASO CONTÁRIO, NO FUTURO, NÃO PODEREMOS MAIS FALAR NA PALAVRA “FAMILIA”, POIS TORNAR-SE -Á DOLOSO DEMAIS PARA NÓS EM NOSSA SOCIEDADE.

  7. Avatar de LEOMÁRIA MENDES SOBRINHO

    OLÁ PERCE? ESTA ESTÓRIA É TÍPICA DOS ADOLESCENTES INFRATORES.ELES FANTASIAM UMA REALIDADE À SUA VOLTA. A CURIOSIDADE FEMININA QUE DELIRA PELO FALSO PODER MASCULINO ATRAVÉS DAS ARMAS, ONDE ANTES VIRA EM FILMES DE TV OU CINEMA, ONDE O HERÓI SEMPRE ESTÁ ARMADO E É GALANTEADOR E OUSADO.A SENSAÇÃO FEMININA DE TER AO LADO UM HERÓI FICTÍCIO, CRIADO EM SUA MENTE E COLOCADO NA FIGURA DE UM COLEGA DE FACULDADE, PESSOA DISPONÍVEL NO MOMENTO, POR TE-LA UM INTERESSE PESSOAL.E NA FIGURA DO HERÓI, O RAPAZ SE SENTE INDEPENDENTE E PODEROSO À PONTO DE FAZER QUALQUER COISA PARA CONQUISTAR A GAROTA, O QUE NO FINAL , SOMANDO OS DESEQUILÍBRIOS, PODERÁ RESTAR UMA TRAGÉDIA.A PSICOLOGIA JÁ TRADUZIU ISTO EM INÚMEROS CASOS REAIS, AONDE TEMOS DIVERSOS EXEMPLOS NA SOCIEDADE DE CRIMES E VIOLÊNCIAS.

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