Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 1702. O velho anjo

“E os nossos velhos amigos continuam falando de você. Que você… sumiu.”
E os nossos velhos amigos… O que são amigos? O que são velhos amigos?

Um antigo colega de estudos vai ao meu lado, estamos caminhando em direção ao cemitério, não sei para quê. Faz um dia claro, mas sem sol. Talvez nublado. Não sei.

“Estou pensando em escrever um livro”, ele diz, enquanto seguimos por uma rua e outra.

Um livro? Por que escrever um livro? Por que ele quer fazer isso? – tudo isso são perguntas que me permito em silêncio.

“Eu nunca pensei em escrever um livro”, digo a ele. “Você entende? Entende isso?”

“Não sei se entendo.”

“Isso aconteceu comigo. Está me ouvindo? Não lembro como começou. Mas eu não pensava em escrever livros. Não mesmo. Isso aconteceu. Não sei como. Pelo menos, acredita que eu estou dizendo a verdade?”

“Acredito. E os nossos velhos amigos continuam falando de você. Que você… sumiu.”

E os nossos velhos amigos… O que são amigos? O que são velhos amigos?

Chegamos ao cemitério. Nem vi por onde entramos, mas já estamos dentro dele, entre os muros, seguindo por uma alameda estreita, orientada pela pedra, quase nada de flor. Não, meu colega não está mais ao meu lado. Perto de mim, pouco mais à frente, move-se um homem magro e velho, curvando-se, fazendo coisas, entretido com pequenas tarefas, tarefas próprias de chão. Tem asas saindo das costas, penas encardidas. Agora, estamos de frente, e vejo que ele se parece comigo, de alguma forma: pequenas rugas se cruzando, antes só horizontais, agora desenhando-se na diagonal, lembrando as plaquetas de um elefante.

“Onde estão os elefantes?”, ocorre-me perguntar.

Sinto vergonha de minha estupidez. Mas já fiz a pergunta, não posso desfazê-la. Tenho a impressão de que converso longamente com o velho funcionário, mas não consigo identificar o tema da conversa. Estamos conversando há algum tempo, pelo que sinto. Vejo na superfície horizontal de uma sepultura, bem ao nosso lado, um relevo gigantesco imitando um livro aberto, inscrição em língua desconhecida.

“Seu amigo disse que vai escrever um livro”, o velho anjo anuncia, calmo. E passa a manga pela testa, limpando o suor.

“Então…?”, eu lhe pergunto com voz neutra, tranquilo também, só um pouco triste. “Não havia nenhum valor em mim?”

O anjo me olha, cansado. Demora a responder.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

Sonho 1664. Hotel em outro lugar – anterior

Sonho 1741. Momento na galeria – posterior

Imagem: Gustav Klimt. Estrada para mansão. 1912

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