Office in a Small City por Edward Hopper

Não são fotos como as outras. 1

Sol e moedas brilham. Dia de intensa claridade.
Nunca o bastante para atenuar-lhe a escuridão.

Tome. Não são fotos como aparentam à primeira vista. Trago-as também em minha memória de palavras. Sei o que lhe ocorre, isso de um quadro e mil palavras, vá lá. Não, nunca foi assim. Se eu nada dissesse, você se perderia. São imagens de primeiros dias, inseridas em minha rotina, parte de meu caminho para o trabalho, se é que me entende. Títulos provisórios, prescindíveis. Mas que as identificam, só isso. No início, podia distinguir meu diário do indivíduo que eu era. Também não pensava em recriar-nos a ambos, é verdade. Não sei ao certo o que aconteceu.

Especialmente a cega

Hoje eu a vi outra vez. Na mesma calçada onde os aleijados e os velhos pedintes se multiplicam.

No começo, eu sofria a acusação das mãos estendidas, buscava em meu íntimo uma resposta, uma razão para que sofressem. Não me ocorria nada menos ingênuo do que as explicações alheias, umas perfeitas, outras plausíveis, outras aceitáveis, até descobrir que estavam todos enganados. O verdadeiro motivo de seus sofrimentos revelava-se diariamente com nítida e espantosa simplicidade, e era o que os fazia sofrer. Via um leproso enrolado em trapos (o motivo de seu sofrimento era a lepra), pensava: que brinquedos terá tido na infância? Quem teria sido sua primeira namorada? E uma mulher com elefantíase. Um retardado mental. Um homem sem pernas. Outro sem mãos. Alguns, lacerados por mais de um mal, acumulavam desgraças: tipos que não pareciam possíveis, mas eram de fato – não apenas possíveis. Um deles dedilhava de maneira dissonante e desafinada uma pequena harpa de colo, um instrumento muito precário, quase infantil, o que fazia ver que não o contentava merecer esmolas em troca de seu dia, porém era preciso realizar algo, que era sua música, e assim tornar-se menos indigno – por que não dizer mais digno afinal? Pois, sim, surpreendentemente era isto: ele ainda queria dar-nos algo em troca.

À margem de outras mais relevantes, de minha infância emerge a imagem que me constrange hoje: quando subia com minha mãe a ladeira próxima à nossa casa, passávamos por um hospital infantil que era também uma entidade assistencial a crianças deficientes. Era comum verem-se, entrando ou saindo, meninos paraplégicos, em cadeiras de rodas, muitas vezes de minha mesma idade. Minha mãe aconselhava que eu agradecesse a Deus por ter pernas saudáveis, por poder andar. Eu nada lhe perguntava, mas intrigava-me que Deus me houvesse privilegiado e não a outros, não a todos. Sonhava, à noite, que passava sozinho diante do hospital e via, nas janelas, uma série de cabeças decepadas, cabeças de crianças decepadas por Deus, e isso me enchia de horror.

Mas era da cega que eu contava, era ela a figura que muito me incomodava. Essa mulher gorda e fedorenta, morena e meia-idade, agita um desgastado prato de estanho, com isso fazendo girar umas moedas ordinárias. Sua súplica parece ilustrada por sons metálicos, ferindo o rumor do tráfego, o calor das horas. Placa de material leve pendurada em seu pescoço:

AJUDE A QUEM NÃO VÊ
A LUZ DO DIA

Sol e moedas brilham. Dia de intensa claridade. Nunca o bastante para atenuar-lhe a escuridão.

Nos primeiros dias isso me perturbou, confesso. Fiz secretas minhas lágrimas de buscar o chão à frente de meus pés, os meus que podiam andar. Talvez devesse tomar outro caminho, concordo. Mas não podia evitá-la. Se não a visse todos os dias, acabaria por vê-la onde não estivesse, em qualquer rua ou esquina. Ela existia. Era o bastante para que eu a visse em qualquer parte. Para que a reencontrasse à frente de meus olhos, meus olhos negros como o dia.

A placa e o dia de luz. A pele grossa, curtida de sol, própria a resistir às intempéries e permitir que vivesse muito ainda, exalando odores intoleráveis.

Pensei que me comoveria toda vez que passasse por ali. Primeiro, um soluço contido. Mais tarde, o que me apertasse a garganta. Senti que já pensava nela sem me alterar e avaliando sua presença cotidiana. Habituado ao caminho, irritava-me o som rascante das moedas. Sequer dava alguma atenção aos inválidos que esmolavam ao longo daquelas calçadas. Na esquina principal da praça. Na mureta do largo. Junto à grade do viaduto. Escadarias do teatro. Conheço bem o caminho. Passo como os outros, um cidadão integrado a seu mundo. Nenhum remorso. Nenhum dó. Um ser humano finalmente normal.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

9. Não são fotos como as outras. 3 – sequência

7. Não são fotos como as outras. 1 – anterior

Imagem: Anna Uhr Delia. Sofrimento (baseado em um desenho de Käthe Kollwtz).

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