Office in a Small City por Edward Hopper

Não são estas as minhas certidões

Porque às vezes tenho pena de minha inocência. Tenho pena de meus sonhos.
Deixava meu nome inteiro. Meu nome completo, com esmerada caligrafia.

“Tem certeza?”

“Como, se tenho certeza? Claro. Sem dúvida.”

“Não são? Tem certeza mesmo?”

“Claro. Claro que não. Quero dizer, não são. Não são as minhas. Sei muito bem quem eu sou. E não são estas as minhas certidões. Tome, veja você mesma.”

“Tem razão… É, tem razão. Não são mesmo. Nesse caso, o senhor não vai poder ficar. Também nesse caso, não sei como posso ajudá-lo. Bem, pensando assim… O que o senhor esperava?”

“Não sei. De fato, não sei. Pensando nesses documentos todos… Pensando assim… Eu poderia jurar que viveria sempre. Veja, veja você mesma: fui um menino encantado, com meus sonhos. Eu acreditei, entende? Entende melhor agora? Tem certeza de que não são as minhas certidões?”

“Absoluta. Mas… foi o senhor quem disse isso.”

“Nenhum outro documento servirá? Diga.”

“Estou pensando. Tentando me lembrar.”

“E então?”

“Que tenhamos notícia, não. Infelizmente. O senhor não vai poder ficar.”

Saí desolado, pensando em tudo que era possível. Tudo mesmo. Pensei até em possibilidades muito antigas, que de nada mais me serviriam. Mesmo assim, não pude evitar evocá-las, por exemplo, que eu quase havia morrido na infância, de uma febre muito forte. Para viver até hoje. Para chegar a isso. Sobreviver, quando muito. Pensei em cada um dos automóveis que me atravessavam as ruas, as pessoas, em todas as direções, que me atravessavam os dias, pensei em quantos nomes e situações, como se eu pudesse mesmo, efetivamente, me atrever a pensar em coisas tão grandes como essas.

De tanto pensar em coisas que não se ofereciam muito a ser pensadas, ocorreu-me uma lembrança que talvez me ajudasse nessa situação abissal: as cartas. Sim, as cartas. Eu venderia as cartas. Todas elas, se preciso. Era isso o que, subitamente, magicamente, mais me animava no momento. Caminhei mais apressado, tinha que ir buscá-las o mais rápido possível, tinha que pôr em prática todas as ideias viáveis de que dispunha, que já eram poucas e escassas, dado meu cansaço mental de todos esses últimos dias. Dos últimos anos, talvez, que agora haviam desaparecido como se fossem dias.

Cheguei finalmente ao balcão de madeira, no endereço de uma antiga rua do comércio, quase feliz, com um envelope grande – dentro dele, todas as cartas. Quase feliz, como há muito não me sentia, e com razão: afinal trazia, comigo, as cartas! O experiente avaliador de textos, que me atendeu sem sorrir, demorou-se em algumas delas. Ele parecia conhecê-las até mesmo pela cor alterada do papel, pelo odor característico, tão repugnante quanto prazeroso, que deixavam a poeira e os ratos, eu também o sabia, pela textura ligeiramente oleosa que aparentavam algumas delas, as que ele separava com segurança, entendendo que mereciam ser lidas.

“Sinto muito. Não interessam.”

“Como? Não interessam? Como assim? Quem disse? Mas veja: são todas as cartas. Sim, isso mesmo. Todas as cartas que existem. Tudo o que escreveram, tudo o que escrevemos. Em algumas fases de minha vida, isso pareceu durar séculos. Há, entre elas, tratados de caráter universal que servirão à triste conscientização de todos nós. Imagine…”

“Sinto muito. Não é culpa sua.”

Estranhei que o velho alfarrabista me dissesse aquilo, que não era culpa minha. Ora, como poderia ser eu o culpado? Nem havia sido eu o descobridor daquelas manifestações todas. Nunca pedi que ideias e sentimentos viessem até mim, e as pessoas que me conheciam sabiam disso. Eu simplesmente não o podia evitar, por isso me perdoavam. Não havia senão lido o resultado de tantos códigos linguísticos que se agitavam dentro de tantos envelopes. Eu não lutava por elas. Não as defendia. Não queria pregá-las a ninguém, tal como se prega uma suposta verdade. Como poderia ser eu o culpado?

“Não é possível que não tenham algum valor”, murmurei abatido. “Principalmente essas que troquei com Valéria por tanto tempo. Umas, inclusive, perfumadas, exalando suaves aromas de… Bem, não me lembro ao certo. Nomes de flores ou substâncias exóticas. Sabe, algumas delas me fizeram chorar – devem valer alguma coisa, claro. Eu me lembro muito bem. Valéria e eu, só para o senhor ter uma ideia, fomos um dos erros mais lindos que se arrastaram pelo mundo. Por algum tempo, estivemos em certos lugares. Como todos nós, aliás. No presente, chega a ser mesmo inacreditável que Valéria e eu, que nós, por algum tempo, tenhamos estado em certos lugares. O senhor vê?”

“Eu compreendo, mas… Desculpe, elas não valem mais nada agora.”

“O senhor entenda que, quando usei o verbo arrastar, não estava de modo algum pretendendo ser pejorativo, não mesmo. O senhor pode ter pensado em répteis ou…”

“Não. Fique tranquilo. Não pensei nada disso.”

“Certo, mas, mesmo assim…”

“Não se preocupe.”

“Mesmo assim, tenho essa necessidade de lhe dizer. De me desculpar, enfim. De mostrar que não era minha intenção, sabe? Tenho até uma certa capacidade de dizer coisas. Mas não sei se isso é bom. Nós também, Valéria e eu, acreditamos, um dia, que pudéssemos voar.”

“Não. Fique tranquilo.”

“Não quero me desculpar por isso, sendo sincero. Eu de fato acreditei. Talvez mais do que ela. Isso foi um pouco triste.”

“Fique tranquilo, já disse.”

“Isso me tornou mais triste. Se eu não tivesse acreditado, quem sabe… O senhor pode ficar sentado, sim, fique à vontade.”

“Obrigado.”

“Não quero que se incomode comigo. Nunca tenho essa intenção, que alguém se incomode comigo, sabe?”

“Obrigado.”

“Talvez o senhor se sinta melhor assim. E é uma cadeira de balanço, não? Muito bonita.”

“Fique à vontade também. É que não tenho mais saúde para ficar muito tempo junto ao balcão. As pessoas se repetem.”

“Sim, compreendo. Sendo assim, antes que eu me vá de uma vez… O senhor poderia permitir que eu lesse apenas algumas cartas?”

“Pode ler, pode ler”, um gesto com a mão, como se me mandasse para longe. “Mas não quero que se entusiasme, por favor.”

“Umas duas? Ou três, apenas?”

“Pode ler. Não precisa fazer disso uma grande coisa. Estou cansado.”

“Pois então…” disse eu, com melhores sintomas, remexendo o envelope maior. “Vou encontrá-las num instante. Sei que estão aqui, porque, afinal, são todas as cartas… Algumas terminavam assim: Obrigado por tudo. Sinceramente… E meu nome. Por vezes, meu nome inteiro. Como se fosse preciso escrevê-lo por inteiro, o senhor vê? Sim, também acho engraçado. Só às vezes. Porque às vezes tenho pena de minha inocência. Tenho pena de meus sonhos. Deixava meu nome inteiro. Meu nome completo, com esmerada caligrafia. Tinha de ser legível, para não deixar dúvidas. Eu tinha medo de desagradar as pessoas. Só queria ser bom. E o senhor sabe como é difícil ser bom. As pessoas deveriam valorizar mais os que são bons, porque, de verdade, de verdade mesmo, são poucos. A maior parte apenas finge ser boa. No fim, conseguem tudo, não é? Esse é o problema. E outras terminavam assim: Obrigado pela atenção. Conte sempre comigo. E meu nome. Eu era verdadeiro. Podiam contar comigo. Talvez só não tivessem tido o cuidado de pôr isso à prova: não me procuravam, não me pediam nada. Mas eu era verdadeiro. Eu carregava isso comigo. Ainda carrego, isso não mudou. Não, não posso provar. Como posso provar? Eu carregava aquele tal pacote que o poeta cantava, lembra? Ele dizia: “Carrego comigo há dezenas de anos…”. Não, não me lembra o resto. Ora, o mais importante era isso. Só isso. Compreende? Poderíamos apenas ser sinceros. E nos despedir dizendo: Sinceramente. Talvez até tivéssemos coragem. Mas não sei se teríamos altura. Se teríamos pureza. Porte e merecimento para isso, para nos autorizarmos a carregar uma tal palavra, uma palavra enorme assim. Teríamos de carregá-la conosco, de fato. Aí está, percebe? Teríamos de carregar conosco. Olhe, sei que não adianta muito contar isso agora, mas um dia eu tentei vender a casa. Vender a casa, imagine. E isso foi muito difícil para mim. Não, não é outro assunto. Como poderia ser? Tenho essas cartas, bem aqui, olhe, que provam o que digo. Antes disso, procurei o supermercado. Foi difícil também. Lembro-me de muitas coisas difíceis. A menina que me atendeu ao caixa fez o possível para me ajudar, mas afinal era também uma pobre funcionária, apenas cumpria ordens, esse é o mal de todos nós, compreende? Estamos sempre cumprindo ordens. Esse é o problema. Estamos sempre às ordens. Eu mostrei a ela as embalagens quase novas, mercadorias de diversos tipos, farinha de trigo, açúcar, lata de óleo vazia… Ela me garantiu que estava se esforçando, mas que não podia receber de volta os produtos, mesmo os que haviam sido muito pouco consumidos. Não compreendo essa gente. O que eu estava lhe mostrando eram, de fato, os mesmos produtos que ela muito bem conhecia daquelas prateleiras. Mas ela não aceitava de jeito nenhum. Está certo que a lata de óleo estava vazia mesmo, foi uma distração minha, não fiz por mal, não tramei aquilo, o senhor deve acreditar em mim, espero, porque foi justamente o que aconteceu. Só que ela não podia dar nada por aquilo, nem mesmo umas poucas moedas. E o que me pareceu mais trágico é que ela não aceitaria ficar com meus produtos mesmo que eu os deixasse ali de graça! Nem isso, o senhor já imaginou? Não ficariam com meus produtos nem de graça. Como se não tivessem espaço de sobra para guardá-los novamente, esses supermercados gigantescos, dentro dos quais cansa caminhar. Na porta, quando ia saindo, dei de frente com Valéria. Ela estava ali, de pé, apenas me esperando, braços cruzados, mas não com numa atitude repreensiva, apenas curiosa, quase esboçando um sorriso, o que significava que ainda me amava, a seu modo. Devia ter saído de casa pouco antes, porque apareceu usando aquela sua blusinha simples, de alças, uma jeans justa e umas sandálias rasteiras, muito femininas, que de certa forma a faziam mais bela, misteriosamente. Eu a abracei sorrindo, como se nada de mais estivesse acontecendo. Contei-lhe que não aceitaram a devolução dos produtos que havíamos consumido em parte, mas que eu já havia pensado em outra coisa, aliás, disse-lhe muito enfaticamente que tinha um ótimo plano, ótimo mesmo, e que, desta vez, nada mais poderia dar errado. E não é que o anúncio surtiu efeito? Uns dias depois, bateu à nossa porta esse senhor educado e bem vestido, portando uma valise dessas de homens de negócios, homens que estão sempre prontos para novas oportunidades, prontos para enriquecer o quanto podem, sempre abertos e adaptados às transformações do mundo, que, como o senhor sabe, são muitas e tristes. Sempre atentos, como eu dizia, aos que estão desgraçadamente caindo, porque é assim que eles sempre mais se levantam. Eu respondia a todas as perguntas dele, confirmava seguramente o que havia anunciado, sim, que a casa era excelente para negócios, não se encontraria outra igual em um ponto como aquele, enfim, não havia como voltar atrás em uma oportunidade de ouro, como essa que eu lhe oferecia. Valéria cruzou conosco na entrada do corredor, olhou-me com ar interrogativo, como se não soubesse que eu estava vendendo a casa, pelo menos me pareceu assim, interrogativa, enigmática ou indignada, cabelos presos num rabo de cavalo, suada de trabalhar na cozinha por quase toda a manhã, cumprimentou com um sorriso rápido e formal esse meu convidado, mas, tão logo ele se virou, olhou-me novamente séria, sem dizer nada, por isso eu tive de piscar para ela, um sinal secreto, sorrindo como desde algumas horas atrás eu vinha fazendo, de posse de minhas mais novas esperanças. O comprador não percebeu, claro. Eu o levei até os fundos, para que conhecesse toda a casa, mas, o senhor pode acreditar: bem ali, na última extensão do quintal, inúmeras mesas dispostas alternadamente, sob a proteção serena de alguns quiosques, abrigavam uma quantidade de pessoas felizes, rindo e conversando, eu não sabia exatamente a respeito do quê, muito menos o que afinal as fazia felizes. Mas, como nem sempre me faltam presença de espírito e criatividade em horas desesperadoras assim, informei meu cliente, sem alterações em meu sorriso ou em minha voz (e mesmo diante de minha própria enorme surpresa), que era para ali que as pessoas iam quando estavam felizes. Tal como eu lhe havia dito, uma casa excelente para negócios. Sim, para onde vêm quando querem beber e esquecer. Quando querem acreditar nos próximos dias, quando precisam que os outros as olhem por muitos motivos, quando, enfim, todos nós nos sentimos gente só por vermos outros como nós, distraídos das horas, bobos de esperança. Quando querem esquecer, inclusive, do valor das coisas. Só mais um pouco, sei que estão aqui, vou encontrá-las num instante, já disse. Mas ele foi embora, não quis deixar seu cartão. Apenas cumprimentou-me, tão educado quanto antes, dizendo que não se importava em saber onde era que as pessoas se supunham felizes, o que lhe importava, sempre e em qualquer ano de sua vida, ainda que fosse o último, eram as oportunidades de bons negócios. O senhor entende? Mesmo que fosse o último ano de sua vida! Com isso, ele também quis dizer que minha casa não era um bom negócio, imagine! Sim, minha casa. Onde vivi tantas coisas arrebatadoras, que algumas vezes me comoveram tão intensamente. Por causa da alegria. Por causa do encantamento. Ou por causa da tristeza mesmo, como o senhor deve ter imaginado em primeiro lugar. Quando falo em chorar, não significa propriamente que eu seja um fraco, compreende? A vida é algo extraordinário em si mesma, ainda que os homens de negócios não me escutem, ainda que nunca me considerem, porque, para eles, a borboleta que pousou no chafariz de pedra ou o pássaro ferido que veio comer em minha mão não valem uma única lágrima que eu talvez pudesse… Que eu talvez pudesse… Não, não, desculpe, por favor, eu não pretendia chorar agora… Por favor, me desculpe, eu… Só um instante, já retomo o… Já volto a lhe contar o que eu… Logo me refaço e o senhor vai ver que… Oh, minha vida… Oh, que pena… Nem mesmo a minha casa… E tudo o que sonhei ali… Não, senhor, pode deixar. Pode deixar, agradeço. Agradeço, obrigado pelo lenço, não, não preciso mais. Eu não queria que… Não queria que se incomodasse comigo. Desculpe se… enxuguei os olhos… na manga da camisa e… Sei que isso não foi educado e… Sim. Sim, já me sinto melhor. Sim, de verdade. Obrigado assim mesmo, agradeço. Não sei por que isso acontece. Todos me dizem para continuar, ir em frente. Não sei por que sempre me dizem isso. Não sei por que vivem dizendo isso uns aos outros. Dizem também muitas outras coisas, não sei mais. Porque parece que somos proibidos de praticar a autopiedade, é o que dizem prontamente. Mas por que até nisso temos que ceder? Acredite em mim, não planejei nada disso. Sinceramente. São momentos que já conheço. São emoções furtivas, elas chegam de repente, não estou bancando o ator, isso não é um teatro, porque, se fosse, eu poderia, quem sabe, atuar um pouco melhor… Eu poderia, por exemplo, também fingir um grande negócio. Poderia enganar melhor os outros, passando-lhes muitas esperanças. Poderia fazer que todos se encantassem com minhas palavras. Poderia convencer Valéria a ter ficado comigo. Ela voltaria a se apaixonar por todos os meus fingimentos, tenho certeza. O senhor não me conhece, mas creia-me: não estou bem agora, mas vou me recuperar logo. Meu problema maior foi ter sido sincero, claro que agora é tarde demais. Não, não achei as cartas que pretendia ler… Não, não mesmo. Eu poderia jurar que todas elas… E que as minhas certidões… Mas, enfim, nunca sabemos até que ponto alguma coisa realmente importa, não é? Falamos tanto em política, sociedade, futuro. Mas parece que nunca saímos do presente. Todas as tentativas de salvar os pobres fracassaram. As pessoas, as famílias brotam da terra. Lutam sem saber pelo quê. Arriscam-se, o tempo todo, a serem destruídas. Muitas vezes, são mesmo destruídas. Como posso saber se não foi isso o que aconteceu comigo? Desde pequeno, eu via passar em frente de casa caminhões gigantescos transportando coisas como tonéis ou fornalhas ou máquinas ou qualquer imenso produto da necessidade industrial, e pensava: para onde vai uma coisa assim tão grande? O que vão fazer de tão grande que não possa ser menor? Que eu não consigo entender ou alcançar? Por que fazem tudo o que fazem se… Sei, o senhor precisa descansar. Trabalhar, digo. Sim, todos nós. Obrigado por sua atenção, de verdade. Já me sinto melhor. Sinceramente. Todos nós.”

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

A prometida história de fantasma – anterior

 O filósofo “francês” – posterior

Imagem: Albert Kotin. Sem título. 1966.

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