Office in a Small City por Edward Hopper

Inconsistência dos retratos

Lamentando, de certa forma. Ou sorrindo em silêncio, alguma ternura ou Sempre vivenciamos muito mal nossos verdadeiros tesouros, daí por que um dia acabamos por perdê-los.

Janela do vagão, vento em meu rosto, fios de meus cabelos grisalhos, eu procurando concentrar-me no que lia, mas a cada cinco minutos voltava o livro ao colo e perdia meus olhos na paisagem de colinas que se alternavam até deixar entrever o conjunto maior de montanhas. Em alguns trechos, a ferrovia parecia seguir no limite das encostas, e eu via, do alto, uma vasta porção de árvores dentro de um abismo esverdeado e sombrio. Curvas limitando a velocidade da composição: era a serra a mostrar-se.

A notícia da morte de meu tio Renato, após todos esses anos de eu não vê-lo, tornavam-me alvo de novas e antigas memórias, talvez inevitáveis, por vezes surpreendentes. Sozinho, representando uma parte da família, haveria de chegar à pequena cidade, conforme anunciara a previsão, com o céu encoberto, característico da região quando próximo o inverno.

Boa parte de nossos parentes vem do meio rural, do interior do país, de cidades minúsculas e merencórias, casas com barracões de ferramentas e animais ao fundo, varandas com degraus e vasos de plantas com o zelo daqueles que sonham ficar por muito tempo onde estão. Gente de roupas usadas até o remendo. Sépia de retratos cada vez mais difusos, entre tardes silenciosas, no conhecido universo dessas ruas abreviadas, por vezes sem saída, onde a umidade compõe nos muros mais velhos manchas e formas que nada significam.

A casa de meu tio Renato, essa mesma que eu visitava na infância e tal qual da última vez que a vira, ainda em minha juventude, era hoje a primeira de uma série de outras também muito simples, cujo conjunto configurava a perspectiva da rua estreita e, no momento, deserta. Ocorreu-me, de uma maneira irônica, mas triste, que teria de perguntar mais tarde qual seria o seu endereço agora – pois os túmulos, como as casas, têm registros, quadras, ruas, números. Detive-me para ver. Ali estava a mureta em que nos sentávamos. Também o portãozinho baixo, mosqueado por escamas de ferrugem, como desentranhado dos sítios arqueológicos em minha antiga memória de hoje, onde um menino continua envelhecendo as tardes. Lamentando, de certa forma. Ou sorrindo em silêncio, alguma ternura ou compaixão por mim mesmo. Sempre vivenciamos muito mal nossos verdadeiros tesouros, daí por que, um dia, acabamos por perdê-los.

Surpreendeu-me que todo um renque de casas vizinhas houvesse desaparecido, tornadas entulho, sendo o terreno agora preparado para receber uma construção de maior porte. Externamente, a parede lateral da pequena casa de meu tio havia perdido o reboco e expunha sua clara simetria de tijolos, na maior parte esfolados, despidos de sua antiga crosta de umidade, aparentando assim um anacrônico estado de recém-fabricação, como se alguma máquina os houvesse brutalmente arranhado ou houvesse o pesado equipamento se detido precisamente ali, na última película, antes de destruí-la, à parede ou à casa, como teria se dado com suas irmãs de mesmo endereço.

Escolho dar a volta, preservar o silêncio. Mas, ao passar pelo vitrô dos fundos, ouço meu nome pronunciado com entusiasmo, voz e sorriso simplórios de meu tio Renato, rosto sempre mal barbeado, trejeitos de alegre ignorante, tendo-me reconhecido de imediato.

“Plínio!”

Abre-me a porta da cozinha, recebo seu abraço forte e carregado de sentimentos, arrematado por carinhosas palmadas nas costas. Minhas memórias assaltam-me desordenadamente.

“Plínio! Então você veio!”

“Tio, eu não podia imaginar…”

“Hilda! Irina! Venham cá, vejam só quem está aqui, vejam só! Nino, corre aqui!”

“Tio, eu…”, digo constrangido. “Não sei o que dizer. Sabe, eu vim porque… recebi a notícia de que o senhor tinha morrido.”

“Quê! Eu, morrido?”, gargalha gostosamente. “Por que eu havia de morrer? Hein? Essa sim! Foi a maior!”

“Soube pela Companhia Ferroviária. Eles me comunicaram ainda ontem. Mesmo estando aposentado, eles têm esse cuidado com os…”

“Cuidado?!”, dispara entre risadas soltas. “Eles não sabem é nada, boa essa! Não passam de uns trapalhões… Ah, ah, ah…”

Tia Hilda, maçãs do rosto rosadas, sorriso de covinhas, robusta enquanto delicada, com seu conhecido vestido caseiro.

“Plínio, querido, quanto tempo! Por que não veio mais? Por que… não veio antes?”

Penso estar dizendo, porém sem nenhuma certeza de ouvir minhas palavras sufocadas: “Tia Hilda, a senhora não mudou nada.”. Como de fato não mudou, pois é a mesma, tal como me recorda tê-la encontrado há duas décadas, eu agora repetindo em meu silêncio confuso: não, não pode ser!

Irina espera a vez de abraçar-me. Mas, de onde ela está, já me sorriem seus olhos cinzentos, que muitos chamam azuis, definição pouco adequada e enganosa, enquanto me demoro com tia Hilda.

“Irina, você linda como sempre. Praticamente a mesma! Como quando éramos adolescentes. Mas… você não tinha se casado?”

“Não. Não ainda. Mas, me conte, por que essa roupa escura? Até que fica bem em você, mas… não combina com o nosso ambiente aqui.”

Depois de abraçar-me, percorre com os dedos os dois lados de meu colarinho sob o casaco, como reorganizando-os ou tentando desamassá-los, um gesto carinhoso e fleumático. Eu a olho de frente.

“É incrível, Irina! O tempo não passa para você. Há algo errado. Desculpe, alguma coisa me parece errada aqui.”

“Plínio…”, Irina sorri, estreitando seus olhos quase translúcidos. “Você agora está sendo indelicado. Não era de seu feitio.”

Eu me desculpo mais uma vez, sorrio também, tento descontrair e ser amável como eles. Mas algo se agita em mim como uma brisa fria, perturbando e frustrando de certa forma a razão de minha viagem, a razão de eu estar ali. Percebo que em nenhum momento mencionam meus cabelos grisalhos, como se neles não reparassem, como se sempre eu houvesse sido assim. Enquanto me questiono, enquanto me intrigam desencontradas sensações, meu primo caçula irrompe porta adentro, agitando os cabelos muito lisos, salta ao meu pescoço.

“Plínio! Você voltou!”

“Nino!”, digo eu, agora atônito. “Não pode ser! Você é ainda uma criança!”

“Tava com saudade, Plínio. Você não voltou mais, pra brincar com a gente…”

“Mas… Há quase vinte anos e… Não pode ser! Você deveria ser um adulto…”

“Adulto? Do meu tamanho?”

Ataca-me uma intensa sensação de surdez, após um zunido súbito e decrescente que me atravessa a consciência, como a desativar algum sentido e quase provocando vertigens – provavelmente algum efeito remoto da longa viagem de trem, entre as montanhas.

“Não, não é isso, amigão, me desculpe, eu já entendi. Me diga, onde está o seu pai, que eu não vejo há séculos? Rapaz, você é mesmo a cara dele.”

Tia Hilda, tão alvoroçada quanto todos, mune-se de utensílios para brindar-nos com um café.

“Irina, ainda pinta?”

“Oh, mas ela é hoje uma grande artista!”, antecipa-se meu tio Renato. “Vá mostrar-lhe, vá…”

“Pai, deixa o teu sobrinho descansar um pouco. Uma viagem tão longa… A serra deve ter congestionado os ouvidos dele.”

De fato, eu acreditava que a cansativa viagem, a mudança de clima e de altitude me haviam influenciado de alguma forma, daí as minhas impressões confusas, a ponto de julgar que estavam, esses meus parentes, todos como da última vez que os encontrara, sem contar o embaraçoso e imperdoável engano com relação à morte de meu tio. A viagem de um dia e uma noite, há pouco terminada, parecia agora parte do sonho que eu não recordava ter tido enquanto dormia.

Após o café, entre brincadeiras e outras amenidades, um banho põe-me refeito para a tarde que se inicia. Irina mostra-me o barracão improvisado, que lhe serve de ateliê, parte alvenaria, parte madeira, onde ela preserva alguns de seus trabalhos. Percorro, admirado, uma sequência de telas, em diferentes alturas e posições, todas centradas em modelos humanos. Ocorre-me então uma lembrança: um tio-avô dizendo-nos certa vez que tínhamos todos, os de nossa família, essa ascendência de pessoas sensíveis, inteligentes, ainda que muitas vezes desastradas, outras vezes declinando à insensatez, pois uns tocavam instrumentos, outros dominavam idiomas, e ele achava possível que surgisse, um dia, dessa mesma linhagem, algum artista de grande talento. Toda vez que me lembro disso, atribuo tal profecia avulsa não tanto à habilidade de Irina, mas principalmente à sua densa e singular maneira de observar a vida e os cenários da vida, com isso fazendo convergir os elementos, evocados por nosso parente mais velho, sobre minha prima desenhista, essa jovem a um tempo sorridente e nublada, precocemente grisalha, com olhos de vidro.

“Irina, é magnífico! Você se tornou uma exímia retratista.”

Ela, apenas agradada, sem se impressionar com meu fascínio: “Nem sempre foi assim, acredite.”.

Não, nem sempre. Recordo nossas antigas descobertas. Irina tinha grandes dons para o desenho, mas a pintura ainda lhe faltava. Adolescentes, visitávamos trilhas das colinas mais próximas, que ela prometia retratar um dia, tal como relato agora uma das lembranças mais doces e mais precisas que me guardou uma daquelas tardes, pois ainda hoje identifico o aroma da groselheira silvestre quando ouço Irina dizendo, enquanto me fascinam seus olhos profundamente cinzentos, de um azul não revelado ainda aos homens: “Se você quiser me beijar… eu não conto a ninguém.”.

Despertei sobressaltado, um repuxão na perna; lembrava-me agora, com absoluta nitidez e num golpe de consciência, que havia realmente acolhido a notícia da morte de meu tio. Revejo palavras escritas. Também a lembrança, sem qualquer dúvida, de que Nino havia se transferido para a capital do estado, a trabalho, lá se casara e formara família, mais tarde voltando para levar a mãe consigo, tia Hilda então debilitada por distúrbios respiratórios. Irina havia se casado, mais tarde se divorciado, sem ter feito filhos, e finalmente se mudado para uma cidade mais ao sul, onde tinha umas colegas artistas.

Percorri uma última vez o interior da casa, desapropriada pelos trâmites do presente, enquanto tentava eu próprio descrever algo de meu sono e de minha vertigem: as melhores palavras esquivam-se de ser ditas, porque sempre uma incerteza as leva. Surpreendia-me agora que, num momento qualquer, eu houvesse posto em dúvida a simples sequência de fatos que delinearam e definiram diversos anos de nossas vidas, bem como os indivíduos, enquanto aos poucos vão nos deixando este e aquele, a quem vamos chamando mortos, para que nos ajudem a demarcar o passado, para que não subvertam o vasto plano de silêncio sob nossos pés e não nos contrariem a razão, tentando mudar as leis ou escapar ao tempo.

Uma poeira fina, provavelmente erguida de construções vizinhas, acumulava-se nos parapeitos das janelas e no soalho danificado. Empurrei a velha porta do ateliê, e lá estava, entre vigas e traves mal arrumadas, andaimes desmontados e ferramentas dos pedreiros, a tela que me faltara entrever daquela vez: o retrato alegre dos que ali estiveram como família – o rosto sempre mal barbeado de meu tio Renato, as maçãs rosadas de tia Hilda, os cabelos muito lisos de Nino e, entre os modelos, a própria artista, Irina trespassando-me com olhos carinhosamente cinzentos –, sorrindo ao futuro de seus melhores anos, meus parentes imobilizados em cuidadoso flagrante, que é a única maneira de se vencer a roda do tempo, entre as tintas sóbrias e harmoniosas de minha prima Irina, entre o desconcertado fluxo de meu breve registro.

Inconsistência dos retratos

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Imagem: Carolyn Pyfrom. Jenny junto à porta. 2006

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