Office in a Small City por Edward Hopper

Treze descuida-se de um segredo

E como parecia desde o início acertado entre eles, com um mínimo de palavras e quase secretamente, seguiam em busca do lugar onde ficassem juntos, isolados dos que nada confessavam em diários íntimos. Dos que não se importavam com o registro. Dos que não precisavam saber…

Alcançaram a larga avenida, de tráfego rápido e bem mais iluminada que as ruas adjacentes. Júlio nem havia notado que estivessem tão próximos dela, uma das principais vias de acesso entre um bairro e outro, um contraste com o lugar de onde há pouco partiram. Agora um vento novo chegava-lhes aos cabelos, como se ali o espaço se dividisse para revelar-lhes alguma mudança, ou como se só pela perspectiva da avenida aquele vento soprasse.

“Nosso ônibus passa daquele lado”, Treze apontando a parada do lado oposto, agora sorrindo, com os dentes à mostra. “Vamos.”

Jamais poderei lhe descrever o que foi para mim esse breve mas dilatado período de tempo em que disparamos a correr contra a frequência do trânsito, mãos dadas atravessando a violenta avenida. Recorda-me perfeitamente a intensidade do vento, minha súbita e indisfarçável felicidade, embora mal eu a conhecesse, a essa garota surpreendente, de nome raro e inesquecível. Pois não lhe havia definido antes? – um pequeno sonho.

A luminosidade neutra no interior do ônibus fazia de Júlio e Treze dois desconhecidos ainda mais expostos – mas, aparentemente, não decepcionados com o que viam. Era só como se subissem, sem se darem conta, um grau mais na escala de um jogo de penumbras que vinha crescendo desde o primeiro ponto onde se haviam encontrado e de onde haviam partido para a noite ainda em curso. Nem antes estiveram tão próximos. Júlio a achava realmente bonita.

“Pensei que não soubesse mais tomar um ônibus”, Treze tornando a sorrir como antes.

“Quem, eu?”

“Não. Estou falando de mim.”

“Você usa o metrô?”

“É… É. Dias de semana…”, ela agora como se não quisesse continuar.

No momento seguinte, acompanharam a subida de um casal com duas crianças. Assistiram, pela janela, à aglomeração em redor de um violento acidente automobilístico, que logo ficou para trás. Tanto quanto os demais passageiros, nada disseram. Mas era a primeira vez que percebiam o silêncio. Treze lhe contara, dias antes, que sua mãe havia morrido: podia tratar-se apenas de uma brincadeira, ele tinha vontade de perguntar. Tinha vontade de perguntar mais coisas. E também não queria, afinal. Andava cansado de tornar tudo sempre mais complicado.

“Até que horas pode ficar?”, ela quase sussurrando, mas ainda não de todo.

“Até bem tarde. Mas não sei quanto é isso.”

Ela fez um gesto de que aquilo não tinha importância. Livrou-se de uma mecha que outra vez lhe passeou pelo rosto, soprando-a como por instinto. Júlio então soprou suavemente sua nuca, fazendo-a lembrar-se, com uma risada quase silenciosa, da noite em que se conheceram no Fronteira.

“Já temos nossa história de ventos”, Júlio criando, com essas palavras, uma aura de cumplicidade que ela pareceu assimilar, divertida.

“Vou lembrar de contar isso no meu diário”, Treze, dessa vez, sustentando-lhe os olhos por mais tempo dentro dos seus.

Ao ouvi-la referindo-se a um diário, a pulsação de Júlio acelerou-se. Por pouco não cedeu a confessar-se acerca de seu próprio diário, não exatamente um diário, mas um rascunho infinito entre dias incertos e fora de sequência, como eram os de sua vida, como sempre fora a história de tudo, sob a proteção e o rigor das cronologias. E como parecia desde o início acertado entre eles, com um mínimo de palavras e quase secretamente, seguiam em busca do lugar onde ficassem juntos, isolados dos que nada confessavam em diários íntimos. Dos que não se importavam com o registro. Dos que não precisavam saber. E assim pelo resto da noite.

Os últimos dias de agosto

26. Como cães farejadores – sequência

24. Treze pode continuar – anterior

Guia de leitura

Imagem: Paul Klee. Cidade dos sonhos (detalhe inferior). 1921.

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