Office in a Small City por Edward Hopper

A onda dentro de um vidro

Todas essas imagens e fatos mal explicados criavam uma atmosfera incômoda de mistério e impotência diante de alguma resposta inacessível.
Creio que aí teria começado em mim uma necessidade muito intensa de conhecer a verdade.

O mar às vezes é cinzento. Claro que sim. Você não sabia? Sei do que estou falando. Nossa cidade fica à margem do oceano e do tempo, que para nós são a mesma coisa. Não bastasse a fronteira natural entre tais grandezas, tudo aqui parece ocorrer no limiar do possível, do aceitável, da razoável realidade e do tédio. Toda a cidade conserva um certo volume de água que nos cobre os pés, e as ruas, se não observadas atentamente, assemelham-se a canais, por onde poderiam transitar embarcações de diversos tipos e tamanhos, velas ou remos e… Mas não, não são canais. Não passa por ali nenhum barco. Nem poderia, que é apenas um fluxo raso, suficiente para nos lembrar de que a água reflete a luz, de que o céu que observamos ao caminhar também se mostra em tons de cinza, pouco depois de ter sido azul em alguns raros intervalos de sorte.

Todos nos acostumamos ao bolor, ao mofo, ao musgo, ao limo, a essa natural condição. Os habitantes caminham pelas ruas como marchando maravilhosamente sobre as águas, e isso faz parte de um secreto orgulho de nossa terra (quase não pronunciamos essa palavra), um orgulho antigo e sutil, algo que costumamos sentir sem mesmo demandar explicações, como se todos nós dividíssemos algo mal compreendido, quase um segredo sobre o qual nunca conversamos abertamente, mas que se traduz em esboços de breves sorrisos e outras amenidades, aparentemente sem nenhuma razão de ser.

Talvez por isso, por culpa do tédio, nossos cidadãos acreditam no advento de uma onda gigantesca que haverá de salvar-nos para sempre ou, admitindo-se uma versão menos agradável, destruir-nos a todos definitivamente.

“Bom dia”, digo eu, e respondem meus vizinhos, um casal de anciãos que não se lembram mais de quando vieram para cá. Também não podem afirmar com certeza desde quando deixaram de ser jovens, pois, segundo eles, não perceberam qualquer mudança, que nada havia acontecido de fato, e hoje se encontram assim, como se assim houvesse sido sempre. Eles, como muitos outros, creem que a Onda será trazida um dia por algum novo morador, que terá vindo quando menos se considerem os sinais.

Sem que o saibam, sorrio de suas superstições, enquanto retomo meu caminho para o trabalho. Em frente à casa seguinte, observo um menino silencioso, sentado na parte baixa de uma mureta, aparentemente atraído pelo movimento constante das águas próximas a uns degraus de pedra. Não me lembro de tê-lo visto antes. Será possível que tenha nascido por esses dias e se tornado um menino tão grande? Claro. Vivemos, como já disse, em nossa cidade, no limite do razoável. Há, no parque central, por exemplo, junto ao gigantesco chafariz escurecido, um antigo relógio de pedra medindo um tempo que não conhecemos, as relações impossíveis e o limite dos que pensam. Poucos dentre nós arriscam-se a decifrá-lo. Nenhum de nós o consegue.

Ao fim do dia, vejo que o menino ainda está ali, da mesma maneira como eu o havia encontrado pela manhã. Os anciãos contam-me que, na infância, ele sucumbira a uma estranha febre, e isso teria impedido que se tornasse mais do que um menino.

“Como?”, digo eu espantado. “Mas não se trata disso. Quer dizer que tem mais idade do que aparenta? Não pode ser. Nós nunca o vimos antes.”

O casal recolhe-se com lentidão, enquanto a mulher ainda diz: “Nunca vimos uma porção de coisas antes.”.

À noite, sonhei com o menino que eu era. Sonhei com os barcos de papel que eu fazia e punha a flutuar sobre as águas das ruas. Depois, repassaram-me tais memórias distantes com singela e intrigante nitidez. Meus barquinhos mal construídos eram tragados por leves correntezas ou naufragavam pela metade, virando de lado, perdendo seu porte original e sua dignidade, como se não tivessem controle sobre si mesmos. Eu não desistia, mesmo que isso me entristecesse. Construía outros, e não contava a ninguém. Só mais tarde compreendi que meus barcos naufragavam porque eu tinha vergonha de meus sonhos.

Despertei com uma impressão feliz e enternecida, pensando em mim como um menino, com pena de meus barquinhos malfeitos. Pensei também em meus medos de adolescente e em todas as vezes que sonhei morrer nas águas, em meio à vertigem dos violentos remoinhos. Com certeza, aquele menino silencioso do dia anterior havia provocado tais reminiscências e sonhos. Eu o chamava, secretamente, menino do dia anterior, o que não passava de uma bobagem, pronta a ser perdoada por mim mesmo.

No dia seguinte, vi o menino mais uma vez. No mesmo lugar. Entretido com os mesmos refluxos ritmados e tediosos das águas que tanto e tão bem conhecíamos desde sempre. Dessa vez, olhou-me com curiosidade. Seus olhos eram assustadoramente claros – talvez de tanto assistir às águas por toda parte. Tive vontade de perguntar-lhe se gostaria que eu lhe construísse um barco de papel, pensando que ele pudesse se divertir um pouco, mas não o fiz. Lembro-me de que, por mais que me esforçasse, meus barcos nunca ficavam bons, e eu atribuía isso à minha própria incapacidade, uma dessas marcas imutáveis que trazemos conosco desde que viemos ao mundo. Pois, claro, nada podemos mudar, somos assim como somos, à espera da Onda salvadora. Assim esse menino cresce, assim eu prossigo envelhecendo, assim os anciãos vão um dia desaparecer de sua porta para sempre.

O olhar daquele menino perseguiu-me, correndo como um líquido claro por minha memória. Pensei em todos nós, em nossa cidade de águas, e algo surdamente passou a incomodar-me. Eu poderia lembrar-me de tudo? Os anciãos poderiam lembrar-se de tudo? Alguém poderia nos dizer se sempre tudo havia sido daquela maneira? Meus sonhos traziam imagens das quais eu me julgava livre. Os olhos daquele menino voltavam em breves pesadelos. Na verdade, não se tratava de pesadelos. Eu é que tinha de admitir que estava com medo. E não sabia de quê.

Todas essas imagens e fatos mal explicados criavam uma atmosfera incômoda de mistério e impotência diante de alguma resposta inacessível. Creio que aí teria começado em mim uma necessidade muito intensa de conhecer a verdade, dentro de nossos critérios humanos, em suma, saber a verdade a qualquer custo, mesmo prevendo que a Onda poderia mudar tudo, mas não nós. Nunca nós. Quando, por descuido, considerei a hipótese de a Onda sequer existir, percebi que não estava pronto a pagar um preço tão alto. Sem a perspectiva da Onda, o que seria de nós?

Saí de casa com a certeza de encontrar o menino no mesmo lugar. O menino do dia anterior. Do tempo anterior. Das respostas perdidas. Decidi, por algum motivo que eu mesmo não compreendia, fazer-lhe um barco de papel. Detive-me diante dele, tirei uma folha de minha pasta, dobrei-a cuidadosamente, com extremo cuidado e paciência, pensando em construir o melhor barco que jamais fizera desde que me aventurara a construí-los pela primeira vez. E, enfim, ele me pareceu perfeito, equilibrado, simétrico, com aberturas e curvas em proporções muito adequadas. Antes de oferecê-lo ao menino, eu o soltei sobre as águas. E esse barquinho improvisado flutuou admiravelmente, longamente, resistindo aos golpes de pequenas ondas e aos encontros entre refluxos mais violentos, sobrevivendo a todas as provas que as ruas de água lhe impunham.

Voltei os olhos ao menino, imaginando vê-lo tão feliz quanto eu magicamente me sentia. Mas ele estendeu-me algo como um pequeno aquário esférico que segurava com as duas mãos, o que eu não tinha notado antes. Como tantas outras coisas que não se podem prever, ali estava, dentro daquele delicado recipiente de vidro, a Onda.

O menino a havia trazido num vidro. Era inexplicável que eu a reconhecesse. Mas sem dúvida ela se agitava ali, diante de meus olhos: uma força imensurável contida num invólucro transparente – como uma couraça de água sólida protegendo a água líquida e viva lá dentro, pronta a rebentar sobre o mundo. Ocorreu-me que a vaga imensa e indomável, embora de um azul oblíquo e cintilante, estivesse prestes a abater-se sobre mim enquanto crescia à minha frente, à altura do céu: vi, num instante de escuridão e vertigem, todos os abismos guardados pelo oceano; a atrocidade dos que se devoram infinitamente enquanto retardam sua permanência; a força das correntes, a opacidade do gelo e os fulgurantes filtros de luz solar entre os trópicos. Astérias, actínias, águas-vivas – e o que de mais belo se pudesse conceber sob as águas, e sua pretensa eternidade. Um menino claro e seu vidro. Meu barquinho concluído. A onda que atravessava invisível todos os dias, não a monumental catástrofe futura, paradoxalmente salvadora, sempre adiada por todos nós, os que sempre, sempre esperamos. Eu não mais esperava. Compreendia o menino de ontem. Compreendia o menino de hoje. A porção de mar que seus olhos retinham à semelhança da onda, embora azul-oblíquos, cintilantes, esses círculos de profunda advertência, essas grandes gotas do oceano oculto.

O mar às vezes é cinzento. Claro que sim. Você não sabia?

Inconsistência dos retratos

Leia mais textos dessa coleção: Sonho 1081. A carruagem veloz

Imagem: John Singer Sargent. Escola de San Rocco. 1903.

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Comentários

3 respostas para “A onda dentro de um vidro”

  1. Avatar de Sandra Garrido
    Sandra Garrido

    Me encanto com seus contos… mergulho neles e descubro que quero ficar ali… muiiita sensibilidade e delicadeza para nos trazer tanta beleza.
    Só a agradecer !!!

  2. Avatar de Maris Ester A. Souza
    Maris Ester A. Souza

    Seus contos, Perce Polegatto, nos instigam a ler e querer mais e mais. À medida que vamos lendo, nos sentimos felizes ao pensar de onde vem tanta criatividade. Assim como a maioria de seus leitores, penso que está na hora de publicar mais um livro de contos. Grande abraço. Maris.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Maris, muito obrigado. É gratificante saber disso, tendo você como amiga e como leitora.

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