Office in a Small City por Edward Hopper

Peter Pan na toalha

O preço que se paga por ser homem é a solidão.
De outra forma esse homem transforma-se em cidadão, funcionário, pai e esposo, ou qualquer outra espécie de artigo devidamente catalogado.
Arthur Dove. Natureza simbolizada. 1911

Um antigo conto que sobreviveu ao massacre dos pioneiros.

Dos 20 aos 25 anos, escrevi uma quantidade de contos, movido por aquele impulso cego do jovem em busca de uma estética que não conhece ou (pior ainda) que pensa ter encontrado. Somavam mais de uma centena. Sobraram 12. Mesmo estes não fariam muita falta. (É até prudente e aconselhável não estender muito algum critério sobre isso, ou ficará difícil avaliar se alguma coisa do que escrevi faria falta, de qualquer maneira.) Alguns desses contos sobreviventes compõem o volume A canção de pedra, meu primeiro livro encantado, antes de se tornar, em menos de um ano, meu primeiro arrependimento declarado.

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Sempre o Natal. Todo fim de ano a mesma coisa: cidade congestionada, gente se esbarrando por ruas ruidosas, pesadelo do tráfego, festa confusa da metrópole acesa, o caos.

Difícil a um homem solitário, sem rumo e com passos meditativos, mover-se entre seus semelhantes em meio a esse agitado momento de civilização, tendo de desviar-se constantemente de pessoas carregadas com pacotes, além de famílias que ocupam quase toda a calçada.

O preço que se paga por ser homem é a solidão. De outra forma, esse homem transforma-se em cidadão, funcionário, pai e esposo, ou qualquer outra espécie de artigo devidamente catalogado. Admitindo-se verdadeiramente ser um homem, assim ele percorre as ruas, sem destino, porém a tudo observando feito uma formiga rebelde que se esquece fora das fileiras estabelecidas. Passa diante de uma vitrine colorida, detém-se por um simples objeto, admira-o como se não fosse artificial, como se tivesse vida por si mesmo, e sorri como um tolo.

Nas livrarias, mal se consegue entrar e, com alguma dificuldade, ele chega às estantes em que se expõe uma imensa variedade de cartões aos olhos dos que se acotovelam. Olha um, abre outro, lê as mensagens. Algumas profundas, outras ingênuas. Desiste.

Além da esquina iluminada, a grande loja onde tudo pode ser encontrado, desde gaitas até motores de popa. Mas nada disso tem utilidade para um homem assim. Ele se embrenha entre muitos corpos, nos amplos corredores de prateleiras. “Sempre o Natal”, suspira alguém ao seu lado, analisando com ironia o preço dos artigos. Ele não ouve.

Decide conhecer a sobreloja e toma a escada rolante que o despeja lá em cima, deixando-o frente à sua própria imagem no pilar espelhado. Vê um conjunto de arco e flecha para crianças, associa esse brinquedo à remota lembrança de que possuíra algo assim uma vez, o que também pouco significa hoje e nem mesmo se completa como pensamento na lassidão de sua mente. Vaga sem pretensão e sem pressa, que suas flechas, como atrofiadas, jazem inertes, sem alvo algum.

Vem da esquerda, entre o zumbido das muitas vozes, a melodia pequena de uma caixinha de música: parece quebrar o ar com ternura, e ele a segue. No balcão, uma jovem mostra a um casal o delicado presente. No centro da caixinha aberta, a bailarina gira graciosa entre dois espelhos, contra um fundo de veludo avermelhado, enquanto as notas, como sinos, fluem com suavidade. A canção, uma velha canção que lhe traz nubladas recordações e imagens quase silfídicas, é uma composição talvez muito antiga, entre folclórica e clássica, vinda de longe, de terras distantes, como o são para nós hoje os países de nossa infância – uma dessas músicas que ouvimos toda a vida sem nunca saber como se chama. E percorre o espaço como a própria claridade, fragmentada em uma agradável sequência de estilhas cristalinas.

Correndo os olhos ao redor, ele se defronta com uma fileira de toalhas penduradas na vertical, lembrando alguma exposição de quadros. Cada uma delas mostra uma estampa diferente, um quadro a escolher: há uma paisagem da Grécia Antiga, a silhueta estilizada de uma mulher nua, barcos a vela, uns gatos, cavalos, tudo em cores vivas e quentes. A que mostra um desenho de Peter Pan sorrindo retém por mais tempo sua atenção e o atrai magicamente. É como se então visse algo muito importante. E passa a ser, que ele se surpreende estranhamente comovido. A canção cristalina espalha-se no espaço, alcança seu ouvido e é aceita com doce tristeza. A figura sorridente, Peter Pan, seu primeiro grande ídolo, o menino travesso que nunca envelhece, rouba-lhe, nesse instante, toda a atenção. Há quanto tempo não o via – ou não o percebia? Como pôde se esquecer de todas aquelas aventuras? Quando criança, era todo um mundo, um mundo que subitamente reconstruía-se por si mesmo, ao som nostálgico da melodia antiga, a inesperada canção da infância. Absorvido, como magnetizado, ele fita longamente o rosto alegre do pequeno aventureiro, tendo ali o retrato de um companheiro remoto, um colega de sonhos, e muita coisa retorna: outros natais, outros sentimentos, ilusões… Pequeno, os pais a levá-lo para ver os brinquedos, protegendo-o dos esbarrões das pessoas grandes, dos cotovelos que não percebem sua cabeça, da brutalidade do mundo que mal se apresenta ao seu entendimento. Pode ainda sentir a mão enorme do pai envolvendo a sua, guiando-o pelas lojas, pelas ruas, pelos caminhos do homem. “Este aqui não”, explica o pai com delicadeza, afastando-o de um brinquedo caro. “Olha este. Papai Noel vai te trazer este, que aquele é muito pesado para o trenó.” Ele concorda. O Natal tinha outro sabor, soavam outros sinos.

Peter Pan sorri na toalha, ele que nunca envelhece. Gerações sucessivas conhecerão suas aventuras, outras crianças o consagrarão. Depois, como as outras, crescerão e se esquecerão dele. Mas Peter Pan é o mesmo desde que o conhecera, anos atrás, no tempo em que não sabia andar sozinho pela vida e não sabia voltar para casa. Agora, está crescido. E sabe? Pois não há outro menino, uma infância longínqua em Nazaré, há tanto tempo? Sim, na verdade os séculos definham, a história envelhece, e o menino é sempre um menino, enquanto for lembrado. Este homem de agora pergunta a si mesmo, secretamente, se um dia nos livraremos dessas estranhas esperanças e recompensas futuras, ao que desde cedo nos habituaram, para melhor ter-nos sob controle, ele que já não pode mais perfilhar tais ilusões e para quem já se tem apagado aos poucos a sombra dos mártires e a efígie carcomida dos papas medievais. Ele, para onde irá agora, uma vez que conhece a franqueza do fim? Hoje, que é outra vez um menino. Apesar das escassas aventuras, tentativas, vitórias e fracassos, apesar disso tudo, apesar de tanto, conclui que é sempre um menino. Tudo o mais passa e se esquece; o menino fica e volta sempre. Seus pais, aquele jovem casal de um dia, também se distanciam pouco a pouco, e fica ele sozinho no meio da loja, em meio da vida, o mundo às costas. Tanta é a ternura que acompanha tais divagações que seus olhos flutuam em lágrimas sem que perceba, e a sombra de um sorriso compreensivo arma-se em seu rosto, como se num momento pudesse acendrar tudo o que lhe proporciona o torvelinho da memória. Onde estivera durante todo o tempo?

“Às ordens”, uma voz feminina tenta trazê-lo de volta à loja.

Mas ele não quer nada. Só quer ficar. Encontra-se transido desse estranho sentimento, a solidão e a plenitude dos que se encontraram. Dispensa a moça e deixa tudo o mais atrás de si, descendo novamente para a vida. Volta às ruas, e suas lágrimas não secaram ainda. Ninguém mais entenderia seus motivos, ninguém compreenderia um tolo, no meio de uma grande loja, parado e distante, olhando um desenho. Nas ruas, as pessoas continuam a se atropelar, e ele sorri, sozinho.

Pede-se a todos os que virem esse homem: não o chamem, porque ele não tem nome. Deixem que ele se vá. Peter Pan também sorri, na toalha, e isso é tudo.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

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Imagem: Arthur Dove. Natureza simbolizada. 1911.

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