Office in a Small City por Edward Hopper

O aniversário dos macacos

Ele, uma criatura solitária, taciturna, alguém que diariamente assistia à dissolução da luz que parecia duradoura, à gradual escuridão da noite de todos os dias.
Como seus parentes humanos, não sabia ao certo o que o incomodava quando envolvido com um desses momentos.
Vinte e cinco anos, disseram. Uma aglomeração de visitantes festivos, que fizeram questão de sair de casa com seus filhos para cantar parabéns ao símio.

Em suas roupas de domingo, dia bonito de vento e sol, as crianças faziam muito barulho. Os pais as conduziam, por sua vez, seguindo uma pequena equipe de reportagem. Ninguém queria perder a oportunidade de acenar na TV. Mas o aniversário era do macaco. O homem jovem e bem cuidado destacava-se pelas roupas estranhas, terno cinza e gravata (o dia era de sol): ele sorria e cumprimentava a todos, inclusive com apertos de mão.

O aniversário era do macaco. Tornara-se uma figura tradicional do zoo e também um acontecimento no dia de seus anos. Ele, uma criatura solitária, taciturna, alguém que diariamente assistia à dissolução da luz que parecia duradoura, à gradual escuridão da noite de todos os dias. Como seus parentes humanos, não sabia ao certo o que o incomodava quando envolvido com um desses momentos. A última confusão que havia permeado sua alma até uma angústia sem respostas aconteceu-lhe ao ver que dois funcionários de uniforme, já conhecidos, retiravam a jaguatirica da jaula em frente, do outro lado da alameda. Ela estava velha, doente há algum tempo, algumas tardes escurecendo já haviam se passado desde que a encontraram sem vida e, com algum esforço, transportaram seu cadáver para fora dali e para fora de sua vista. Ele entendia. Mas não por que alguém passava uma vida entre grades, na jaula das tardes, tarde e outra tarde, até a última tarde. Era só o que o fazia triste, distante de seu compreender, mas perto de seus dias.

Pois haviam contado os dias por ele, assim decidindo que era seu aniversário. Assustado com o movimento, percebeu logo que estavam todos juntos ali e que se demoravam em frente à sua jaula, o que não era normal. Um deles carregava uma estranha caixa sobre o ombro, apontava-a para vários lugares. Outro falou por algum tempo, gesticulou em direção a ele, depois apontando para cima, para o céu. Não, não apontava para coisa alguma, era só o seu jeito de falar mais alto, ele, o homem de gravata, que aproveitava a festa, a televisão, o aniversário de seu primo – ou o que lhe servisse.

Após o discurso, o barulho recomeçou. O zoológico precisava de cuidados sim, mas não se deve estragar a festa. É preciso preservar os animais, trazê-los de seus hábitats de origem, privá-los de sua vida em liberdade, para que todos os vejam aos domingos. As crianças humanas precisam de diversão – um domingo no zoo, outro no parque, outro no cinema, num lugar qualquer, pois é preciso passar o tempo, é preciso passar, decidiram os primatas.

Faziam micagens para que ele os copiasse, para que saísse de seu canto sombrio e viesse a mais perto, junto às grades, para que pudessem vê-lo melhor. Atiravam-lhe pipoca, os floquinhos rolavam pelo chão sujo e ali morriam, sem movimento. Ele não os pegava dessa vez. Estava assustado com a sua festa dos outros.

A garotinha mais corajosa aproximou-se da jaula e gritou para ele, urrando com voz fina. Batia as mãozinhas nas grades como faziam os macaquinhos irrequietos, mas foi logo agarrada por uma parecida com ela, maior do que ela, irritada com a ousadia. As outras crianças o chamavam também, com gestos e vozes. Pipocas, casquinhas de amendoim, às vezes uma bolinha de papel, sujando ainda mais o chão imundo. Ele apenas esperava que tudo passasse, que fossem todos embora, que o deixassem em paz.

De repente, começaram todos a gritar ao mesmo tempo, batendo palmas ao mesmo tempo, oscilando os corpos ao mesmo tempo. A caixa escura girava no ombro daquele, apontando para o grupo. O homem que discursara e usava roupas diferentes dispunha-se à frente dos outros, cantando também, acompanhando as palmas. Afinal, eram 25 anos! Era o aniversário do macaco.

Então, foram todos se acalmando, e pareciam frustrados porque ele se recusava a sair de seu canto. O homem do discurso sorriu para os outros e aproximou-se da jaula. Segurava as grades, sorria para ele também. Falava e sorria, chamando com voz carinhosa do lado de fora. Chamava, chamava, sorria, até que ele se enfureceu com tudo aquilo e arreganhou os dentes como num sorriso, um sorriso de tantos dentes quanto o do tão próximo, mas cheio de ódio. Lançou mão de um punhado de terra e ciscos do chão e atirou tudo na cara do que sorria com voz carinhosa, e este deu um pulo para trás, piscando os olhos, e uns outros juntaram-se para ajudá-lo. A terra sujou a roupa nova das crianças, as mães ficaram desoladas. Um funcionário, aquele mesmo que já conhecia e que o tratava, aproximou-se também, dizendo algo, mas ele atirou mais terra e rechinou e bacorejou, ainda tomado de ódio. As crianças, agora decepcionadas, não estavam contentes, e passaram a atirar nele pequenas pedras, palitos, saquinhos amassados, gritando em sua direção. As mães não reagiram. O funcionário falou algo aos pais, e então as pedras pararam, as crias se aquietaram. Por fim, foram todos ver outros bichos.

Logo caiu a tarde, a outra noite, ele então foi saindo de seu canto. Pisou o chão imundo, experimentou um amendoim, cuspiu fora. Junto às grades, olhou para o resto do mundo. No vértice da alameda, o funcionário se distanciava – era hora de ele desaparecer. Talvez dormisse em alguma jaula fora do alcance de seus olhos, do outro lado do zoo. As pessoas todas seguiram para o lado oposto, além do cunhal da última jaula, ele se lembrava. Quase podia ouvir o barulho que fizeram, que os mamíferos superiores sabem falar, além de gritar. Agora era noite. Para onde teriam ido? Onde ficavam suas jaulas? Para onde levavam suas crias, depois de trazê-las a passear?

A noite substituiu as imagens claras do dia, o entardecer de celagem amarela e pardacenta. Voltou o silêncio dos bichos noturnos, o pio das corujas, os morcegos, os grilos na grama, voltou-lhe aquela sensação estranha, a confusão de tantas tardes até que perdesse a noção de quantas desde o dia cheio de gente, o sorriso do homem na grade, a terra atirada com fúria nos olhos do outro, o funcionário de uniforme, o mesmo que ajudara a carregar o corpo da jaguatirica em outro dia confuso e cheio de uma angústia sem nome.

Vinte e cinco anos de tardes e noites, jaula do tempo todo. Suas tardes, suas noites, que para ele não havia o calendário de contagem pelos anos que passam nem as festas de aniversário em que se comemora com alegria cada ano perdido. Não havia os meses nem os anos. Havia era o entardecer dessas grades, a alameda sem fim, por onde os bichos passavam com roupas de domingo. Havia a jaguatirica morta e os funcionários de uniforme. O chão sujo de cascas. As tardes. As noites.

Leia mais contos: Sua canção de enganar

Imagem: Fritz Bultman. Claretta (detalhe). 1957.

por

Publicado em

Categorias:

Comentários

Comentar