Office in a Small City por Edward Hopper

De como perdemos Val

A morte põe tudo em segundo plano. Os planos de todos em segundo plano.
Porque todos os planos de todos não a levam em conta, e isso a ofende.

“Oi! Fala, Souto, e aí, velhão?! Opa, quanto tempo, hein? E então? Quando é que nós vamos tomar uma?”

“Dan, liga a TV.”

“Como assim?”

“Liga a TV, seu babaca, faz o que eu estou falando.”

“Já está ligada. E daí?”, quase rindo.

“Põe no canal 5. O plantão do noticiário.”

“Canal 5, certo… Pronto. E aí?”

Destroços de um avião, pelo jeito. Vistos de um helicóptero. Imagem em movimento, sobrevoo circular, o cinegrafista tentando firmar a câmera, que treme um pouco.

“Está vendo aí? O avião na floresta?”

“O avião na floresta. Sei, estou vendo. O que tem?”

Ao fundo da fala de uma repórter, o som ritmado da aeronave que a transporta, o helicóptero incansável, seu rotor produzindo um som inegavelmente violento, mas abafado, em segundo plano, como deve ser.

Danilo anda pela sala, faz a volta no sofá, chega mais perto, sem soltar o telefone.

“O avião na floresta. Estou vendo. Acidente sério, parece. Você me ligou por isso?”

“O Valdinei, cara. O Val morreu.”

Sim, algo violento. Mas abafado. Ainda em segundo plano. Danilo imagina, involuntariamente, o gigantesco avião despedaçando-se em segundos, desfazendo-se em destroços avulsos, após um ruído súbito, um eco sibilante e inexplicável, rápido demais para ser avaliado, para ser entendido e sofrido, e os corpos caindo de todas as maneiras, ele quer acreditar que sem um grito, apenas corpos sem vida, seres humanos de minutos antes, com todos os seus valores e contradições, deixando tudo, absolutamente tudo, para trás. Violento. Mas subitamente abafado pela morte. A morte põe tudo em segundo plano. Os planos de todos em segundo plano. Porque todos os planos de todos não a levam em conta, e isso a ofende. Não levam em conta os acontecimentos, o que há de mais simples. O que acontece, naturalmente. A qualquer momento. Em qualquer lugar. Danilo imagina seu amigo dormindo, confortavelmente, e assim encontrando a morte. Imagina também que ele se pusesse pensativo, alguma preocupação pessoal, com a mão segurando o queixo, seu gesto tão peculiar, primeiro porque é instintivo de pessoas que consideram e filosofam, mas antes disso porque era teatrinho mesmo, ele gostava de premeditar esses gestos, mostrando-se inteligente, mesmo sabendo que de fato o era. Danilo o vê digitando algo em seu notebook, para passar o tempo, ou para aproveitar o tempo, afinal estava a trabalho, era bem possível que estivesse trabalhando enquanto morria. (Recorda que eles não tinham notebooks e nada parecido, que chegavam a se maravilhar com uma simples calculadora de mesa, recém-adquirida pelo escritório, e elogiavam a tecnologia do final dos anos 1970, enquanto ainda datilografavam com esmero suas fichas e relatórios.) Quer poder falar com ele: “Valdinei, meu caro, lamento que tenha sido assim.”. Ou: “Queria que você soubesse que sempre fui seu amigo e sempre lhe desejei o bem. Você me inspirava sem saber (talvez até soubesse). E eu não me esqueci da nossa foto dos Beatles.”.

Os Beatles e a amizade deles e qualquer coisa que um dia parecesse sagrada: tudo em segundo plano. A violência das manifestações juvenis, os hormônios em ponto de erupção, a morte sutilmente abafando as vozes, esgotando os rapazes, em Liverpool e nesta mesma cidade, levando a agulha ao fim do disco, amenizando o giro do rotor, deixando a repórter tagarela à frente, à vontade para falar sobre tudo aquilo, cada um em seu giro, cada um em seu tempo, Valdinei atirado para fora de seus círculos, para fora de seus dias, um corpo girando pela última vez, abatido para sempre.

Marcas de gentis predadores

42. Memórias de gentis predadores – sequência

40. Às voltas pelas ruas do centro: Ana Lúcia jaz em movimento – anterior

Guia de leitura

Imagem: Lee Krasner. Sem título. 1965.

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Comentários

2 respostas para “De como perdemos Val”

  1. Avatar de Perce Polegatto
    Perce Polegatto

    Maria José
    Muito obrigado por suas palavras (descontando os exageros), o que importa mesmo é que o texto consiga provocar alguma reflexão ou, no mínimo, uma impressão estética. Isso me gratifica, com certeza.
    Abraços.

  2. Avatar de Maria Jose Zanini Tauil

    Olá, Perce!
    GOSTEI DO TEU CONTO, TÃO DIRETO, TÃO REPLETO DOS SENTIMENTOS QUE JÁ VIVENCIAMOS FRENTE A UMA PERDA E, PRINCIPALMENTE, O QUE FICOU POR SER DITO… SIM, POIS SEMPRE FICA ALGUMA COISA QUE DEIXOU DE SER DITA, QUE REMOEREMOS PELO RESTO DA VIDA. LI O ANTERIOR TAMBÉM, QUE FALA DE MORTE, DE FORMA DIFERENTE. O ESTILO DO ESCRITOR É ÚNICO: É O TEU ESTILO, BEM ARTICULADO, CRIATIVO, ORNAMENTADO SÓ PELO TEU TALENTO.TUAS NARRATIVAS SÃO ENVOLVENTES; COM O RECURSO DA PALAVRA, VIAJAS POR MISTERIOSOS TERRITÓRIOS. LER-TE É AVENTURA LITERÁRIA QUE INVESTIGA A CRUEZA E OS AVESSOS DOS SENTIMENTOS HUMANOS. PARABÉNS, MAIS UMA VEZ!!!!!

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