Office in a Small City por Edward Hopper

Dos males, o verão. Parte 6

Encontro no bordel: novas esperanças

O resto do dia, custou-me passar. Ao fim do expediente, perambulei um pouco pelas ruas até o cair da noite. Sentia-me fraco, com vertigens. Fui até um bar enfumaçado, no quarteirão de casas velhas, que serviam como prostíbulos, e meu coração encheu-se de esperanças. Entra-se por uma porta estreita de madeira, há dois lanços curtos, um corredor também estreito, dali abre-se um salão que antigamente deve ter sido dois grandes quartos. Isso mesmo. Mal consigo imaginar uma família morando ali, um remoto casal do passado dividindo uma cama e a noite distante de orgasmo quando nenhum de nós era nascido ainda. Vejo agora no que se transformou essa casa, um antro de traficantes, cafetões, bêbados sem rumo, que passam por ali antes de desaparecerem na madrugada metropolitana. Sempre nos pregando peças, o tempo e suas ciladas. Suas aranhas.

Encontrei quem eu procurava, a uma mesa do fundo, bebendo com outros três. Fiquei entusiasmado, feliz mesmo. Minha sorte parecia estar mudando.

“Meu velho! Você por aqui, quem diria!”, exclamou ele surpreso, mas com indisfarçável cumplicidade, oferecendo-me lugar. “Numa quarta-feira, hein? Deve estar muito a fim de uma franga pra encarar esta baixaria no meio da semana. Mas eu acho que você vai é dormir seco, velhão. Elas não estão pra trabalhar hoje não, que não aparece uma.”

Sentei-me numa cadeira, ao seu lado, improvisando espaço entre ele e um outro. O calor lá dentro era insuportável.

“Não vim atrás de nada não. Preciso falar com você.”

“Pede aí alguma coisa pra beber. Garçom… Garçom! Mas que saco!”

O garçom aproximou-se de má vontade, com um cardápio amarrotado, oleoso de muitas mãos, atirou-o sobre a mesa e virou-se em seguida, com indiferença.

“É isso que dá vir aqui toda noite. O garçom já perdeu o respeito por nós, tá vendo? Já nem pergunta nada, o canalha. Não espera, não ouve, joga esse cardápio nojento de longe e vira as costas, o bruto! Bom, vê aí.”

Enquanto eu tentava ler as letras miúdas na penumbra, ouvia casualmente o que seus amigos diziam. Aliás, eles nem pareciam ter notado minha chegada, e prosseguiam em sua conversa. No momento, elogiavam uns deputados e ministros que fizeram fortuna, que eram grandes economistas ou advogados, e enumeravam as qualidades administrativas desses tais homens. Não era para menos, pois todos eles, como meu amigo, pareciam bem-nascidos e boa família, tanto que podiam frequentar bordéis, gastar com mulheres e bebida sem nenhuma preocupação. Pertenciam a uma classe, se não opulenta, ao menos não afetada pela crise nacional, que era planejada para os mais pobres. (Exagero? Não. Um decreto-lei anunciado há pouco acaba de reduzir a alíquota do imposto de renda para os que ganham acima de vinte salários mínimos. Sobre o meu, por exemplo, o índice aumentou. Há outras variações. O presidente vai à televisão, alega que o país está em dificuldades e que precisa do sacrifício de todos.) Também foi só por acaso que conheci esse meu amigo: estudamos na mesma classe da faculdade até o dia em que tive de trancar matrícula e desistir do curso, por causa da alta crescente nas mensalidades.

“Uma cidade lindíssima, lindíssima!”, dizia um deles referindo-se à capital federal. “Um verdadeiro oásis naqueles planaltos.”

“Sei, tenho um primo que estuda lá”, completou um baixinho que girava seu copo para um lado, depois girava para o outro. “Ele me disse que é fantástica!”

“E eu conheço um cara que foi pra lá e ficou milionário. Era advogado. Também, as chances lá são maiores, perto de toda a aparelhagem política, tantas acusações e calúnias, tanta gente pra defender, e aquele pessoal bom de grana…”

“Eu também tinha uns colegas que foram pra lá e nunca mais voltaram”, disse meu amigo. Voltou-se em minha direção, tocou-me o braço lateralmente, tentando introduzir-me na conversa. “E você? Conhece a capital?”

“Quem, eu? Não”, respondi acanhado. “Mas tenho um tio enterrado lá.”

Imediatamente entendi que havia sido grosseiro. O grupo agitou-se e olhou-me por um instante, com antipatia. Um deles resmungou algo incompreensível, mas com certeza não muito agradável. Notei um ligeiro murmúrio entre eles, enquanto eu voltava os olhos ao cardápio.

“É mesmo?”, disse meu amigo, tentando, diplomaticamente, remendar a situação.

“É”, resolvi contar. “Ele não tinha onde cair morto e foi pra lá tentar a sorte, pouco depois do Golpe.”

“Não diga.”

“Acabou conseguindo emprego como lavador de cadáveres.”

“De cadáveres?!”

“É, você vê? No fim, ele próprio acabou sendo lavado lá mesmo”, concluí, tentando fazê-los sorrir.

Eles não sorriram.

“Que ironia, não?”, tornou meu amigo, balançando a cabeça. “Que coisa! E que emprego deprimente ele foi arranjar, hein?”, emendou, com alguma desconfiança.

“Pois é. Mas ele não achava tão ruim, tanto que não foi outra coisa o resto da vida. Acabou sendo sócio na funerária, mas não chegou a fazer dinheiro com isso. É que os melhores clientes, que eram as famílias dos políticos e dos militares, despachavam logo os corpos para fora da capital, e eles acabavam todos enterrados em suas próprias cidades.”

“Que coisa!”

“Mas o meu tio, que não era político nem nada, acabou sendo enterrado na capital. Pra você ver como é. Irônico, não? Mas… Fazer o quê? A gente morre em qualquer cidade, não é mesmo?”

“Que coisa…”, repetiu meu amigo.

Um deles pôs-se a falar sobre outro assunto imediatamente, com isso atraindo a atenção dos demais. Claro que a conversa estava se tornando indigesta, mas o que eu podia fazer? Ele me perguntou, eu tinha que dizer alguma coisa. Pareceu-me também que aqueles caras eram do tipo que admirava muito os países e os povos desenvolvidos, dividindo esperanças de que também nossa nação fosse um dia como as deles, evoluída, próspera e nociva.

No cardápio, o título LANCHES prendeu-me exemplarmente os olhos. Minha fome apertou. Pedi um sanduíche dos mais completos, sem nem pensar em como o pagaria depois. Não tinha um puto no bolso.

“Rapidinho, hein, meu chapa!”, falei ao garçom.

Mal podia esperar que o preparassem. E já que havia feito essa extravagância, pedi também um refrigerante. Meu amigo insistiu para que eu os acompanhasse na cerveja e pediu mais um copo, com voz firme. Como o misterioso garçom não havia trazido ainda o sanduíche, eu lhe perguntei:

“Ei! E então?”

Mas ele não me ouviu. E voltou ao balcão do bar.

Quando finalmente o sanduíche chegou, eu já não conseguia pensar em qualquer outra coisa. Entrei a abocanhá-lo com todos os meus dentes, sem a menor menção de oferecê-lo aos outros, por educação. Educação, apenas. Por que eles haveriam de querer meu sanduíche ou parte dele? Claro, no fundo eu desejava que nenhum deles aceitasse. Mas ninguém estava prestando atenção, estavam pouco se lixando com minha presença ali, e eu então passei a lambuzar-me de molho e maionese, quase num delírio. Meu amigo encheu-me o copo de cerveja gelada, o que me refrescou um pouco do maldito calor. Nem ele parecia ter notado minha implacável, inescrupulosa voracidade.

Enquanto comia, fui aos poucos distinguindo o que eles diziam entre si. Agora, era totalmente outro o rumo da conversa. O baixinho tentava convencê-los de que o homem não fora criado à imagem e semelhança de Deus. Os outros todos o ouviam com expressões cínicas, antes de entrarem na argumentação propriamente dita. De fato, era impressionante que não tivessem outra coisa sobre que conversar.

“Se o homem se parece com Deus, qual deles se parece mais: o ocidental, o asiático ou o africano? Ocorre que a semelhança é espiritual, não física.”

“Hum…”, fiz eu de boca cheia, mostrando-me atento.

Eles tornaram a olhar para mim, com estranha curiosidade. O baixinho constrangeu-se, mas continuou. Disse que a ternura de certos animais era superior a tudo o que a alma humana sonhava alcançar. Que mesmo um ratinho raquítico tinha lá suas semelhanças com Deus. Que, por exemplo, a baleia, com sua sensibilidade, a solidão dos cães, tudo isso era divino. Que o homem, especialmente o homem metropolitano, estaria mais próximo do egoísmo que da bondade, e que até uma inocente capivara…

“Você está querendo dizer que Deus se parece com uma capivara?”, interrompeu um deles com sarcasmo, feito um inquisidor incomodado.

Isso iniciou uma acalorada polêmica. Enquanto eles discutiam, eu terminava o último pedaço do sanduíche. Pronto, eu pensava satisfeito. Seja como for, já o comi. Isso me sustentará por mais algum tempo. E achando que já era hora de ir direto ao assunto com meu amigo, voltei-me para ele.

“Escuta, velho. Pra falar a verdade, eu vim te procurar porque estou precisando de uns trocados, entende?”

“Do quê?”

A discussão paralela dificultava nosso diálogo. Os rapazes falavam ainda na capivara. Em Deus e na capivara. Ou na capivara e em Deus, como ficar melhor. Falavam alto, atropelando-se, atrapalhando minha conversa particular.

“Uns trocados! Grana, só por dois dias.”

Nisso, as vozes se exaltaram ainda mais: os amigos já se desentendiam de maneira irreversível.

“Calma, o que é isso?”, falou um deles ao baixinho.

“Como é? Você nem parece mais meu discípulo, fráter.”

“Discípulo?!”, urrou o baixinho com a testa brilhando de suor. “Eu nunca fui seu discípulo, palhaço!”

“Trocados?”

“É, pouca coisa. Dois dias só.”

“Discípulo uma ova, tá ouvindo?!”, estrilou o teórico com os olhos cintilantes. “Uma ova! Nunca fui!”

“Calma, fráter, calma.”

“Um bom discípulo não deve…”

“Olha, pra dizer a verdade, eu não tenho nem como pagar esse sanduíche.”

“Que sanduíche? Ah, que é isso, velhão! Pendura aí na minha conta. Sem problema.”

“Uma ova! Uma porra!”

“Mas olha… Não é só isso do sanduíche, sabe? Eu preciso de alguma coisa até sexta ou sábado, entende?”

“E quer saber mais?”, falou o baixinho, levantando-se. “Eu estou por aqui desse negócio de fráter e discípulo e tudo! Por aqui! Discípulo uma porra!”

“Fráter! Isso não é digno de um dos nossos.”

“Por aqui dessa ordem de merda de vocês! Pra mim, acabou! À puta que os pariu!”

“Mas que negócio é esse de fráter?”, perguntei ao meu amigo, estreitando os olhos de maneira interrogativa.

“Eles formaram uma ordem aí, ordem esotérica, teológica teosófica não sei do quê. E vivem se pegando a tapas. Eu nem me meto nessas coisas. Mas não se impressione muito. No fundo, são todos pacíficos.”

O baixinho retirou-se, chutando a cadeira ao chão.

“Fráter, espera aí! Você está nervoso.”

“À puta que o pariu! Nervoso, a tua mãe!”

“Deixa. Amanhã ele está aqui de novo.”

“O negócio é o seguinte: a minha conta aqui é sempre pendurada até o final do mês, tá certo? E eu só recebo a minha mesada na semana que vem. Então, se quiser na segunda-feira, te arranjo. Sério.”

“Não, segunda já não serve. Preciso hoje. Amanhã, no máximo. Escuta. Você é de boa família, uma família católica, de boas condições, deve conhecer um agiota. Não conhece? Pois é só me dar o endereço. Você pode fazer isso, não pode? Tenho uma certa urgência, entende? Você conhece, eu sei que conhece. Um cara de boa família…”

“Conheço sim. Mas sou seu amigo e não quero você se envolvendo com esses tipos. Sabe como é isso, não sabe? No fim, está devendo as cuecas. Você é um cara trabalhador, honesto. Arranja um empréstimo no banco, que é melhor.”

“Eles não emprestam pra alguém na minha faixa de salário, você sabe. Depois, agiota por agiota, prefiro evitar burocracias, cadastros…”

“Não senhor, não quero você envolvido com esses tipos, não vale a pena, pode crer. Se quiser segunda, te arranjo. Sou seu amigo e…”, repetiu tudo o que havia dito antes.

Baixei a cabeça como há tempos não sentia vontade de fazer, movendo-a quase imperceptivelmente, como se me fossem as forças. A partir disso, entendi que precisava era dar o fora dali o mais cedo possível, também porque o que eu queria mesmo, naquele momento, era estar longe da infinita e árida discussão entre crentes e ateus.

Subi desanimado a escadaria da pensão e enfiei-me outra vez no quarto de meus tormentos diários. Ao menos, havia comido alguma coisa, reconheci, ainda com o gosto do sanduíche na boca. Pouco depois, já deitado no escuro, ouvi umas pancadas na base da porta – sim, a proprietária com sua prestativa vassoura. Fiquei em silêncio. Ela desistiu. Ouvi passos descendo os degraus de madeira. Depois, sonhei que era o louco da vassoura que me batia à porta e se transformava na proprietária. Que dias tenho tido…

O calor sufocante impediu que o sono chegasse logo. O corpo suado colava-se ao lençol, e uns pernilongos, também famintos, insistiam, em torno de minha orelha esquerda. Amanhã, com certeza, outro dia de sol fulgurante, ruas ruidosas, camelôs e mendigos, outro dia de fome. Como dizem, amanhã é outro dia. Sim, sem dúvida. Mas o último dia: na sexta, recebo meu salário. Que maldito verão!

A conspiração dos felizes

Leia mais dessa história: Divagações com bolhas – anterior

Estrela em meio ao caos – sequência

Rembrandt van Rijn. Os negociantes de tecidos. 1662

por

Publicado em

Comentários

Comentar