Office in a Small City por Edward Hopper

Dos males, o verão. Parte 8

Qualquer homem se apaixonaria por ela

Joan Miró. Paisagem catalã. 1923

Epílogo

A miséria e a desgraça sempre existiram.

A miséria e a desgraça sempre existiram.

A miséria e a desgraça sempre existiram.

Com tais palavras, comecei meu dia, repetindo-as metodicamente enquanto caminhava, tentando esquecer os tipos que me cercavam como num pesadelo. Sempre existiram, desde que começamos a nos organizar. Sim, sempre existiram, e eu não posso fazer nada. Portanto…

Dia do pagamento. Acabava a agonia de minha fome. Eu me sentia renascendo, leve e despreocupado. Até o calor parecia ter abrandado.

“Quinto andar! Olha o vegetariano!”

“Esmolinha, pelo amor de Deus Nosso Senhor Todo-Poderoso Jesus Cristo!”

O que vou fazer: trabalhar umas horas, apanhar o meu dinheiro, enfim almoçar como um ser humano decente. Afinal, não sou um trabalhador qualquer. Não sou lavrador nem coletor de lixo nem aposentado: preciso me alimentar, almoçar, careço de certa dignidade. Além disso, eu tenho um encontro. Meio-dia. Meio-dia e quinze. Enquanto penso nela, ignoro mais facilmente esses infelizes, que acreditam ser felizes, pois pensando nela estou pensando em mim mesmo. Preciso sobreviver, preservar-me, precaver-me contra recessões mais graves, novas decisões do governo e outras coisas ruins. E pensar que, uns dois dias atrás, eu estava debruçado no viaduto, preocupado com a humanidade… Hoje, o dia de meu pagamento, obstinado com a ideia de preservar-me, após haver imaginado que daqui a cem ou mil anos nada disso terá nenhuma importância. O que espero da vida afinal?

Mais à frente, no meio do quarteirão, um maltrapilho, bêbado talvez, de cabelos semelhantes aos do louco da vassoura, um tufo no qual se armazenavam poeira e ciscos, braços fazendo círculos no ar, gritava sorrindo, como se atirasse flores ao vento, com as duas mãos abertas.

“Viva o capeta!”, ele dizia, quase em estado de graça, de tão feliz. “Viva o capeta!”

Parecia em êxtase. Causava uma impressão de grande liberdade, e isso atraía a simpatia dos que passavam. Parecia inofensivo também. Impotente como o próprio diabo, a quem só podia restar mesmo o bom humor que ilustra os estados de insanidade eloquente.

“Viva o capeta!”, ele repetia, heroico, para alegria de todos.

Eu estava possuído por uma límpida felicidade, como se o mundo estivesse em paz, como se a vida fosse bela, serena e agradável. Cheguei a assobiar e murmurei qualquer coisa em voz alta, o que chamou a atenção das pessoas. Nunca me sentira tão ridículo. (Minto: já fui muitas vezes mais ridículo.) E sorria de felicidade, talvez um sentimento acumulado após esses dias tensos, infernais. Sentia uma necessidade física de sorrir, como a desenferrujar os músculos da face, há muito amarrados. E consegui sorrir.

Na última esquina antes do escritório, vi um rapaz vestido com os preços de uma liquidação, num desses aventais de frente e verso, como aquele do homem-cardápio. Um jovem negro e simpático, tinha um belo rosto de verão e os dentes bonitos que os brancos não têm. Uma pessoa simples e boa, a julgar pela maneira como se despedia de um homem que lhe agradecia uma informação. Transformado em lista de ofertas. Não podia ter mais que vinte anos, uma idade em que… Talvez tivesse uma namorada. Talvez ela soubesse de seu emprego e ambos se conformassem com a humilhação de… Poderia estar estudando se… Vestindo esse avental com os preços de uma… Cheguei a envergonhar-me, de certa maneira, como se eu fosse ele, como se eu próprio estivesse em seu lugar, e isso me constrangeu. Pensar que há tantos analfabetos em nosso país, que a maioria das crianças mal consegue concluir o curso primário, porque têm de trabalhar, engraxar sapatos, roubar e catar papelão… Fiquei olhando o rapaz da esquina, o sorriso claro, senti como toda essa situação miserável estava consolidada e aceita por nosso povo simples, pacífico, para a alegria dos governantes e aos olhos de um deus indiferente. Um rapaz nessa idade, boa saúde, ele que deveria estar estudando ou ao menos… Ele que talvez tivesse uma namorada e gostaria de se casar com ela, ter uma casinha… Ele, que com esse sorriso… Que chances, afinal…

Então, comecei a chorar.

Eu havia perdido completamente a calma. Apoiei-me numa caixa de correspondência e cobri o rosto com uma das mãos, presa de uma crise nervosa incontrolável. (Devo ter despertado a atenção dos que passavam, mas naturalmente ninguém se deteve por minha causa.) Como podiam acontecer-me crises assim? Não estava feliz, um minuto antes? Não acabava de me convencer a não mais pensar, de que nada daquilo tinha importância e… O que me fazia sentir alguma coisa por eles? Por eles? E o meu papel nisso tudo, a fronteira entre mim e todos os que vivem, e a minha fome? Soluçava como um idiota. Também isso devia estar reprimido por muito tempo sem que eu soubesse, tanto quanto minha vontade de sorrir.

Chega, seu grande imbecil! Pare de chorar!
Isso não adianta.
Não tem vergonha?
Agora chega, pare com esta cena toda.
Não tem vergonha?
Ao menos hoje seja feliz, é o dia de seu pagamento.
DIA DE SEU PAGAMENTO!
Não tem vergonha?

Retomando o caminho para o escritório, as lágrimas secaram rapidamente sob o sol, o calor muito forte. Ah, o verão em nosso país!

De posse de meu salário, eu planejava meus próximos passos. Salvo por este mês. Como será o próximo? Preciso achar uma cantina, alguém que pendure minhas contas. O dinheiro tem que durar o mês todo, contra uma inflação diária. Que mais? Uma esperança qualquer?

Meio-dia e quinze, eu de pé no local do encontro. Ansioso por tornar a vê-la. E mesmo porque sentia uma necessidade latente de conversar com alguém. Agradava-me procurar por ela entre os que passavam, imaginá-la chegando, de que lado viria, como estaria vestida… Por estranho que pareça, eu não conseguia recompor as feições de seu rosto, na memória. Lembrava-me de seus lábios, a cor da pele, de seu corpo por inteiro, e só o rosto permanecia uma imagem distante, coisa que não entendi. Como pude me apaixonar assim? Mas qualquer homem se apaixonaria por uma garota como ela. Além disso, meus sentimentos andavam meio exagerados por esses dias, com impulsos frenéticos e alterações muito súbitas. Perto de mim, estava aquele soprador de bolhas.

“Olha que beleza! Olha só!”

Espalhava uma constelação de bolhas por toda a esquina, fazendo-me lembrar as dimensões do tempo. No verão, temos a impressão de que o sol nos consome mais rapidamente, de que a vida… Claro, nenhum de nós pode vencer o tempo. Essa consciência deveria permitir que vivêssemos melhor o presente e… Bem, falando assim, isso não tem importância. Não sei mais o que tenha importância. E já é meio-dia e meia.

“Olha só!”

Também próximos, os ambulantes, camelôs e vendedores de bugigangas. Podia vê-los em toda a extensão da mesma rua estreita dos calçadões, entre as bolhas. Vi passarem dois aposentados que trabalhavam como cardápios. Estavam todos juntos no mesmo lugar, no mesmo sonho, o sonho impagável de existir por essas ruas, ao mesmo tempo, no mesmo verão. (Concluí que isso também não tinha importância.)

Meio-dia e quarenta. Na certa, ela não virá mais. Tenho de esquecê-la e tratar de comer alguma coisa com urgência. Qualquer homem se apaixonaria por ela. E há tantas outras. Uma garota como ela, qualquer homem… Sentia que minha paixão estava prestes a esvanecer-se completamente, propensa a evaporar-se no calor, oh, como posso ser assim? E isso também não tem nenhuma importância, é o que parece. De pé, no meio do cruzamento, eu olhava ao redor. Onde vou comer? O vento me trazia as bolhas, eu ficava entre seu fluxo principal, sentindo-as em minha pele. Vivia o mormaço e as ondulações de ar quente que subiam do asfalto. Qualquer homem, afinal… Uma garota como ela… Recordei, por um instante, as meninas que eu sonhava minhas namoradas na escola, tantas a quem jamais pude confessar-me, e quase acreditei que fosse um menino outra vez. Ah, como é bom (e difícil) ser homem! Pensar que tenho a idade que tenho agora… Pensar que daqui a cem anos… Mas que droga, tudo isso não tem importância de jeito nenhum! Pois, se daqui a mil anos… Sendo assim, o que mais pode me preocupar? As bolhas me afagavam, faziam-me cócegas nas orelhas. O que mais pode me preocupar agora? Um esbarrão.

“Opa!”

Era aquele cego dos tapetes.

A conspiração dos felizes

O idiota incurável – sequência

Estrela em meio ao caos – anterior

Imagem: Joan Miró. Paisagem catalã. 1923.

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