Office in a Small City por Edward Hopper

Evolução dos ideais clandestinos

Mas por que esse pânico, que isso? Milhares de pessoas são cadastradas naquela arapuca. Basta trabalhar pela justiça. Basta denunciá-los. Basta ter consciência. E quanto aos que estão sendo torturados e mortos? Não pensou nisso? Então, podemos continuar sendo covardes?

(Hélio) … foi fuzilado há uma semana.

Fuzilado? (Valéria)

Quando enviamos as cartas (Caio), ele já estava morto, é isso?

(Hélio) É. É isso.

Como? (Donato) Então nós trabalhamos por fantasmas? Então, tudo aquilo que nós fizemos e…

(Mauro) Você quer ou não quer continuar? Eu não entendo. Por que vive torcendo o nariz desse jeito? Faz parte do trabalho, cara! Quantas vezes preciso dizer isso?

(Donato) Sei, sei. Já disse, pronto. É que nós somos mal informados, não temos agilidade suficiente…

(Milena) E você esperava o quê? Que os senhores generais e os milicianos nos mantivessem atualizados sobre a condição dos prisioneiros? Ah, sim. Que bonitinho.

Ela tem razão (Caio). Que tal um boletim diário? Nível de estresse, pressão arterial, taxa de colesterol…

(Hélio) Muito engraçado. Não temos nada melhor por hoje? Ou pior?

Estamos sempre brincando com fogo (Valéria). Fazemos o possível. É assim que são as coisas. Não podemos tudo.

(Sandra) Desculpem o atraso. Mas olhem só, vejam isso aqui. Aqui, nesse outro caderno… Christopher foi libertado!

Sério? (Donato) Esse Christopher era aquele… Aquele da África do Sul, o professor? Não lembro…

(Caio), (Valéria), (Mauro) Ei, é mesmo! Um brinde a todos! Valeu. Que lindo! Precisamos comemorar.

(Hélio) Deixa eu ver esse jornal…

(Milena) Parabéns a todos!

(Sandra) Muito bem, mas depois a gente aplaude. Outra coisa. Sobre a situação da Namíbia…

(Donato) Não achei a Namíbia no mapa.

(Hélio) Acho que precisamos de mais uma semana para organizar a marcha das crianças até a Embaixada.

(Mauro) E a questão do trânsito, que ficou pendente? Nós planejamos para um domingo, eu sei, mas o efeito não é o mesmo.

Foi bom ter tocado no assunto (Caio). Você sabe que eu sou contra essa ideia. Ela também.

Também (Milena). Já dei meu voto. Não quero isso. É forçado, apelativo demais. Nós estamos usando as crianças. Da mesma maneira como fazem os Estados totalitários. Só porque acreditamos ser esta uma boa causa.

E não é? (Donato) Não é, afinal? Alguém me diga.

(Milena) Trata-se de uma questão de princípios. Não percebe?

(Donato) Ah, sei. Isso? Vocês me confundem.

(Hélio) Princípios, nesse caso… Bom, vamos ver isso depois, certo?

(Mauro) E os informes?

(Sandra) Eu trouxe os informes.

(Caio) Quem vai traduzir?

Francês? (Valéria) Deixa aqui comigo.

(Sandra) Alguém viu o jornal de domingo?

Vi (Mauro). Já sei o que você vai dizer. Todos nós estamos fichados.

(Donato) O quê?!

(Milena) Fichados onde?

(Mauro) Adivinha. No Serviço Nacional.

(Caio) Que honra. Já somos importantes assim?

Eu sabia! (Donato) Eu sabia que isso ainda… Que um dia isso tudo…

(Sandra) Mas por que esse pânico, que isso? Milhares de pessoas são cadastradas naquela arapuca. Basta trabalhar pela justiça. Basta denunciá-los. Basta ter consciência. E quanto aos que estão sendo torturados e mortos? Não pensou nisso? Então, podemos continuar sendo covardes?

(Donato) Por favor, não fala assim. Não fala assim comigo, por favor… Não você.

(Mauro) Devo publicar algo sobre isso?

(Milena) O coordenador decide.

(Hélio) Não. Não vale a pena. A população pode ficar receosa. Dependemos de donativos, e não é bom que nos confundam com subversivos.

Se não somos subversivos (Caio), o que somos?

(Hélio) Você entendeu o que eu quis dizer.

(Milena) O que foi? Você estava lendo…

(Mauro) Que que há com ela?

(Sandra) Chorando…

(Caio) Valéria?

(Valéria) Desculpem. Me desculpem, tudo bem, estou um pouco tensa. É só um desabafo.

(Milena) As crianças torturadas?

(Valéria) É, é isso. Não me peçam pra eu falar agora. Sei que estou bancando a estudante chorona, tudo bem. É que há muito tempo eu não vejo com outros olhos esse nosso trabalho e… Estamos todos acostumados, estamos ficando insensíveis, mecânicos…

(Hélio) O trabalho exige isso.

(Valéria) Eu sei. Desculpem. Por favor… Traduza você.

(Milena) Tudo bem, desabafa, amiga. Nós também temos sangue.

(Mauro) O importante é continuar. E ter coragem.

(Caio) O importante é ter coragem, acima de tudo.

(Sandra) Ouviu? Coragem.

(Donato) Quem lhe disse que eu não tenho coragem? Eu só acho que… Vocês sempre me dão a pior parte: datilografar, classificar, selar…

(Hélio) Não é verdade. E o revezamento?

(Mauro) Sempre um pretexto, sempre uma reclamação. E aí? Você é tão voluntário como nós, ninguém obriga ninguém a continuar. Mas se quer ficar…

(Donato) Pois agora eu quero que vocês me escutem. Vocês também. Estão me ouvindo? Quando eu entrei para o grupo, estava mesmo disposto a trabalhar, a lutar, e muito mais do que isso, vocês nem imaginam quanto. Com o tempo, a rotina me entediou. Mas continuo e vou continuar, embora eu não compartilhe hoje da mesma causa que vocês.

(Caio) Que história é essa?

(Mauro) Como? Não compartilha…

(Donato) Não. É isso aí. Mas quero que me escutem e me compreendam. Ou não compreendam, enfim… Eu não me sinto um paladino da justiça, um herói clandestino como vocês, idealistas. É natural que vocês se realizem com esse trabalho todo. Mas ponham-se no meu lugar. Pra mim, o preço é alto. Não tenho isso nas veias. Admiro a todos, admiro todos vocês, sério. Mas não posso dizer que sou como vocês. Enfim: não sou como vocês.

(Hélio) Mas… Não é preciso que todos…

(Donato) Não, deixa eu terminar. Por favor, me entendam. Ou pensem o que bem entenderem, eu não me importo mais. Sou só um estudante como os outros, uma pessoa comum. E se vocês pensam que eu não tenho coragem, posso provar o contrário me confessando agora, agora mesmo. Eu não deixei o grupo ainda, eu estou aqui até hoje, eu estou aqui até hoje com vocês, nessas reuniões, porque amo você. Amo você, Sandra.

Dedicado aos meus amigos da Anistia Internacional, com quem dividi um ano de trabalho, crescimento pessoal, emoções e grande aprendizado.

Imagem: Willem de Kooning. Sem título.

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