Office in a Small City por Edward Hopper

Diário, 26

Helen Frankenthaler. Rumo ao oeste.1977
1
Estrela de minha noite clara,
arqueira fugitiva de olhos vagos
oculta
na floresta dos segredos:
vou caçar-te por toda a existência.
 
2
Toco o papel e escrevo,
conto meu canto sem voz,
registro que sou de mim mesmo
em palavras possíveis.
Toco o papel com meu sonho
de criança condenada
e assim atravesso minha própria morte,
alheia.
 
Pedras, palavras
desafiando o tempo de meus olhos,
deixando-me aqui de alguma forma:
contra a certeza do último dia,
a maldição de não morrer inteiramente.
 
3
Esta, a temporada das cinzas,
queimadas a distância fechando outra tarde de fogo.
 
O que passa por tudo, ilude com vida
e no entanto consome
não é o abstrato rapinante a que chamamos tempo,
mas a ação do incêndio real, chama
que há muito se ergueu e ainda arde,
o humano conflito,
a paixão e os sonhos de todas as eras.
 
Assisto à intensidade da fogueira imensa
e por causa dela sou ainda o que escreve.
Mas eu não sou o Homem nem o Fogo, mas eu
não sou a dimensão dos sonhos
ou a entrega de todos os que vivem.
Meu trabalho é apenas contar.
4
Dia que não é outono, que não é inverno: noite.
Estalar dos móveis, visita de insetos ignorados.
…………..Ao longe o ladrar dos cães,
…………..rumor de um sonho impreciso.
Aqui, meu quarto é muitos lugares.
Não sei de meu mundo ou se é fora de mim
nem se hoje viajo ou morro

enquanto me oprime o nunca chegar.
 
Frente ao que desconheço, cada fibra de meu corpo
se insurge
contra o que as rege,
tudo o que limita, avulso e vão.
Trevas de passagem.
Febre, garganta sedenta e só o que aceito:
o destino de rebelar-me.
 .

Poema lido por Maris Ester Souza no sarau virtual da Casa do Poeta, 1.8.2020.

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Imagem: Helen Frankenthaler. Rumo ao oeste. 1977.

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