Office in a Small City por Edward Hopper

Esperança, mas que dramalhão!

Era inútil desdobrar-me em pretextos.
Ela não era normal e parecia decidida a ficar.

Zinaida Serebriakova. Jovem ao espelho da penteadeira (autorretrato). 1909Estranhei que batessem à porta do apartamento. Mas, sim, a campainha vivia me traindo, defeito na fiação. Umas oito da noite.

“Oi”, disse ela. Uma mala de livros.

A mesma camiseta exigindo o fechamento das indústrias poluentes. Calça justa, tênis encardidos. Uns fios de cabelo grudavam-se na testa suada. Parecia exausta, sorria sem forças. Mas os olhinhos brilhavam, a diabinha.

“Posso entrar?”

Abri a porta – e a boca, surpreso. Ela suava. Fedia.

“Oi, mas… Mas… Como conseguiu meu endereço?”

“O homem da lanchonete.”

“Oh…”, disse eu desconsolado, deitando a cabeça para trás, como se, por um instante, estivesse procurando alguma coisa no teto.

“Vou deixar a mala neste canto”, ela avisou. Respirou fundo, girou os olhos pela sala. “Gostei do seu apartamento. Pequeno, velho.”

Como assim? O que era aquilo?

“Espera, espera aí. Você chega assim, eu já disse que não quero comprar nada, lembra? Então…”

“Gostei”, ela repetiu, sem me ouvir, falando ainda da porcaria do apartamento, pequeno mesmo, velho mesmo, e eu ainda achava caro o maldito aluguel, que ia parar nas mãos de um velho ocioso, herdeiro de uma porção dessas espeluncas claustrofóbicas, perdidas pela cidade.

Ela sorria, deixava de sorrir. Eu olhava para ela, via o marido esquálido, cinzento, doente. Imaginava seu calvário cotidiano. Quase não podia evitar uma careta. Não suportava mais ouvir falar em desgraças.

“E o seu marido? Alguém ficou com ele?”

“Que marido?”

“Como, que marido? Seu marido.”

“Ah, não, não”, ela sorriu (ou quase riu). “Não, não. Nunca fui casada. Preciso vender meus livros, dependo disso.”

Sentou-se no sofá, escorregou as costas pelo encosto, arfou outra vez. Estava sempre cansada.

“Mas… Olha, moça… Não entendo. Por que me procurou?”

“Sou poeta. Consigo ver nos olhos dos outros quando uma pessoa é solitária, sem esperança. Resolvi conhecer você, sair da rotina um pouco. Meu nome é Vina.”

“O quê?”

“Vina.”

“Não, não me refiro a isso, quero dizer, que história é essa de me conhecer e sair da rotina? Eu lhe dei algum sinal de que… de que…”, imediatamente recordei ter ouvido essas mesmas palavras da ovelha ruiva, a Fátima, na livraria das bruxas, e me senti mal com isso – porque não gosto de repetir palavras dos outros. Mas agora era tarde, elas já haviam sido atiradas ao ar, em direção ao rosto suado dessa garota maluca. Fiquei de mau humor por ter repetido esse chavão e também por tê-la deixado entrar, quase por hábito de abrir a porta com gestos solícitos, malditos costumes. O que eu queria mesmo era resolver logo a situação e ficar sozinho outra vez. Mas eu não era como a ovelha Fátima, e não dispunha de desculpas místicas para enxotá-la dali.

“Pois eu percebo, sabe?”

“Ahn… Sei. Olha, Vina. Você está enganada. Não sou tão solitário assim. E quanto à esperança…”

“Você se ofendeu com isso, não é?”

“Isso o quê?”

“A esperança. Só porque não tem esperança?”

Esperança, mas que dramalhão!

“Quem disse que eu tenho esperança? Leio jornais, sei como é o mundo, o país.” Saí de perto, mal-humorado, procurando a janela, quase falando a mim mesmo. “Por falar nisso, preciso procurar o Consulado outra vez. Ainda não consegui o meu passaporte italiano.”

“Você tem.”

“Tenho? O passaporte?”

“Esperança. Senão, não estaria vivo.”

Só me faltava essa. Estar vivo e ter esperança. Onde vou parar? Se eu não tivesse esperança, não estaria vivo, é claro. Que maluca.

“Me acha uma maluca, não é?”

“De jeito nenhum, imagine. E, aliás, quem não está ficando maluco hoje em dia?”

“Quer que eu vá embora, não é?”

“Não, não é isso.”

“Meu cheiro incomoda, dá pra ver.”

“Também não é isso. Cheiro, imagine…”

“Quero tomar um banho”, disse ela levantando-se de repente. “Você tem uma toalha seca?”

Uma poeta em minha casa. Só me faltava.

“Vina, espera aí. O caso é que…”

Que caso? Era o quê? Eu andava muito tenso por aqueles dias, deprimido. Qualquer presença me incomodava. Queria estar sempre sozinho. Eu me transformara numa estranha máquina de fazer contas (dias, meses, refeições, aluguel, salário…) que, apesar de nunca me levar a nada, não aceitava a menor interferência em seu mecanismo. Era inútil desdobrar-me em pretextos. Ela não era normal, e parecia decidida a ficar. E talvez não falasse de poesia, e me contasse algo engraçado, me divertisse, quem sabe. Ora, vamos. A coitadinha está exausta, essa mala deve ter-lhe entortado a coluna. O marido doente, cinzento… Mas que marido? Que doença? – eu não conseguia esquecê-lo.

“Cadê a toalha?”

Foda-se. Joguei-lhe a toalha.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

12. Você me acha cruel? – sequência

10. Vina, a quase viúva – anterior

Guia de leitura

Imagem: Zinaida Serebriakova. Jovem ao espelho da penteadeira (autorretrato). 1909.

por

Publicado em

Comentários

Comentar