Office in a Small City por Edward Hopper

A vida é um vício, não é?

Eu não queria dizer a ela: sofria outra vez a densa impressão de que no mundo não havia nada a ganhar ou a perder.
Apenas a mesma antiga e estranha travessia movendo-se entre os vivos, cada qual sua própria luta e coragem vãs.

“Essa trouxe o cachorrinho, olha só… Ele mija na perna de um desses canastrões de quarenta anos que andam fazendo ginástica pelo parque, sim, e os dois se apaixonam perdidamente. Ela, não o cachorro. O resto do sábado flui entre sorrisos, amabilidades e pequenas descobertas. Ah, você não acredita?”

Vina reprime o riso, enquanto rosna para que eu fale mais baixo.

“O canastrão, como você já esperava, é um brilhante corretor de seguros. De imóveis. Não: é um homem de origem humilde: começou com um carrinho de cachorros-quentes intragáveis, foi muito perseverante e hoje é dono da maior rede de lanchonetes do país. Ah, você não sabia?”

“Qual dos três tem mais futuro?”

“Acho que… O de cabelos vermelhos. Não, o de penacho. Ora, não: está na cara que o careca carregado de correntes está fadado a uma carreira vertiginosa. Nem é o caso. Talvez não passe mesmo de uma aliteração. Ah, você acha engraçado?”

Os rapazes passam por nós como se não estivéssemos sentados ali, naquele banco de alvenaria.

“São tudo o que o governo sempre quis. Não reagem, não protestam. Não lutam por nada. Vivem com pouco e se sentem o máximo. Esperando a morte, grande consolo. Você quase pode ouvir o presidente da República brincando com seus ami… aliados: caminho livre à frente, senhores! O líder da oposição é gótico.”

“Certo, certo. Voltando”, dedo em minha boca.

“Que é isso? Censura?”

“Você me trouxe aqui, ao parque, pra conversar, lembra? Sentir o oxigênio… A brisa… As árvores…”

“Oxigênio, eu disse isso?”

“Nada de política, economia. Hoje é sábado. Nada de planos e choques. Guarde seus dinossauros e morcegos. Que tal uma trégua?” Beija-me, vesga.

“Sua vez de me enganar. Me diga algo em que você acredita. Tem cinco minutos pra responder.”

“Eu acredito que a poesia pode transformar o mundo.”

“Dez minutos, vá lá.”

“A poesia é como um vírus. Entra na circulação do mundo. Depende de tempo e temperatura adequada. Então”, mãos como aranhas, “vai minando, minando… e se cristalizando.”

Silêncio.

“É nisso que você acredita?”

“Nisso eu acredito.”

Silêncio.

“São essas as suas esperanças, é?”

“Tenho outras.”

Silêncio.

“A esperança é mesmo um vício do qual não conseguimos nos libertar.” Coço a cabeça. “A honestidade, o que é? Uma virtude ou um vício?”

“Pouco me importa.”

“Que é isso? Um tique nervoso?”

“Também não me importa.”

“Você é muito jovem para ter um tique nervoso, menina.”

“Mas tenho.”

“Não precisa fechar assim esse rostinho lindo.”

“Falando em canastrões… Você também é jovem, não é? Pode sair dessa, quem sabe?”

“Está me confundindo com um canastrão?”

“Deve ser a convivência, essa firma… Mas você tem suas chances, eu acredito.”

“Tenho o quê?”

“Tem suas chances.”

“Ah, sim. Obrigado.”

“Esses seus colegas, o escritório… Você gosta mesmo desse emprego?”

“Claro que não. Quem pode gostar de trabalhar? Só o Medina, que eu saiba.”

“Quem?”

“Ninguém. Um amigo.”

“Você nunca pensa que está perdendo seu tempo nesse serviço?”

“Sempre me dizem isso, de estar perdendo tempo. Em que ofício eu não perderia meu tempo?”

Ofício, mas que tédio! Nunca pensou em fazer alguma outra coisa, estudar…?”

Silêncio.

“Desculpe. Isso te ofende?”

“Nada me ofende. Estou só pensando.”

Coço a cabeça. Coço.

“Dez minutos.”

“Já pensei em fazer arquitetura. Mas tudo já foi projetado. Não há mais o que se possa construir.”

“Muito engraçado.”

“Não só isso. Não me interessa assinar nenhum acordo com o mundo. Ou com as pessoas. Todos se deixam encaixar como parafusos num esquema gigantesco, monstruoso. E se prostituem em todos os níveis. Almejam cargos enquanto imploram pela vida. Envelhecem e morrem sem um gesto. Sem um grito.”

“Você não?”

“Ao menos, a morte me incomoda. E a vida, sob outro aspecto. Pense naqueles ruminantes nas savanas, à mercê dos grandes felinos, pessoas prontas para morrer, tudo certo para que as coisas funcionem.”

“O que tem isso, os animais nas savanas?”

Eu não queria dizer a ela: via os leões e os antílopes, via que os leões morreriam mais tarde, os antílopes mais cedo, sofria outra vez a densa impressão de que no mundo não havia nada a ganhar ou a perder, apenas a mesma antiga e estranha travessia movendo-se entre os vivos, cada qual sua própria luta e coragem vãs, tudo se criando e se extinguindo entre o antes e o depois. Mesmo assim, o que procuravam todos era estar na pele do predador, não na da presa.

“Todas as gerações servem de alimento aos predadores”, eu disse. “Como nós mesmos, condenados aos morcegos. Mas antes de eu me curvar, conhecerão meu sangue e meus gestos. Meus gritos.”

“Acha que viver é só isso? Ficar ruminando e se disfarçando? Tentando escapar de predadores? É melhor voltar a insistir no seu passaporte italiano.”

“Viver é isso. Como nas savanas: adiar ao máximo essa condenação.”

“Puxa, que lindo. Isso faz deste nosso dia um dia mais bonito ainda. Você não consegue, só por um momento…”

“Às vezes, eu acho que vou perder tudo”, eu quis falar. Porque tinha pensado em não falar.

“É mesmo?”

“É mesmo.”

Fiquei acenando lentamente a cabeça, afirmativo e ridículo, como algum pássaro que a apontasse em diversas direções e depois a recolhesse, mas sempre olhando para baixo.

“Sei… Um-hum… Olha, as coisas não podem ser tão ruins. Os morcegos também envelhecem, morrem…”

“Já pensei nisso. Grande consolo. A religião os livra de seus crimes, como sempre foi. Mas nem é o caso. Eu detesto os que dormem tranquilos, mas também não é só uma questão de lutar. A humanidade teria que despertar aos poucos e desmantelar essa máquina. Temos de estar juntos, agir como um todo.”

“Viu só? Você tem suas chances. Quem sabe não vai mais querer o passaporte italiano?”

“Aquele grupo de pássaros: uns quinze, acho. Se fossem treze ou dezoito, não seria o mesmo grupo? De certa maneira, não são, todos eles, um mesmo pássaro? A humanidade tem que humanizar-se.”

“Você é meio filósofo, não é?”

“Não passo de um cobrador. Se é que me entende. E não espero nada para mim. Nem dinheiro nem glória. Muito menos deixar meu nome ridículo entre as mesquinhas gerações do futuro.”

“Que que há, você não gosta do seu nome?”

“Não.”

“Já pensou em outro?”

“Já.”

“Que nome gostaria de ter?”

“Nenhum.”

“Também não é o caso, como você diz. A humanidade tem que humanizar-se, gostei. Tão simples. Tão claro. Você às vezes é muito claro, sabia?”

“Você quer dizer: óbvio.”

“Claro mesmo. Luminoso. Acho você um espírito especial, sei que você acredita em espíritos.”

“Não acredito em espíritos.”

“Em alguma coisa então, tenho certeza. Mas no quê? Migração das almas? Reencarnação, metempsicose…”

“Duendes, discos voadores, Papai Noel… Vina, eu só acredito na vida.”

“O quê?”

“Só acredito na vida.”

“É nisso que você acredita?”

“Nisso eu acredito.”

“São essas as suas esperanças?”

Silêncio.

“Vina, você…”

“Eu o quê?”

“Você está apenas jogando com palavras, me confundindo. Sabe que não é preciso ter esperanças para continuar vivendo. A vida é um impulso cego, um instinto, um vício. A vida é um vício, não é, Vina?” Senti que me aproximava muito dela, quase sem perceber. Ia cada vez mais triste. Em seguida, fui me perdendo das próximas palavras, do que seriam minhas próximas palavras. Alguma coisa me paralisava como se eu dependesse da resposta dela, o que soava absurdo. Um sentimento obscuro, meio sufocante, meio agressivo, me fez tremer. Pensei também que fosse chorar. “Não é, Vina?”

“Pouco me importa.”

Abraça-me. Beija-me. Abraça-me, principalmente.

“É tão bom estar com você”, ela disse.

Tentei lhe dizer algo parecido, não consegui. Não gosto de repetir o que os outros dizem.

“Você já fez terapia?”

Sempre me perguntam isso, se já fiz terapia.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

15. Para eles, não há história – sequência

13. Os morcegos do dia – anterior

Guia de leitura

Imagem: Kevin Day. Vista em um quarto.

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