Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Mas foi também em um desses e-mails…

 
Desde algum momento nós nos desejamos. E passamos a mover as peças.
Adultos jogam jogos de adultos.

________________________________________

Assunto: te ver de novo

Enviado em: 18/03/2005 | 14:08

De: <josieln24@altmail.com>

Para: <pprof@altmail.com>

quando vc vem? me fala.. preciso te ver

acho q hoje vai chover. queria vc aqui com a chuva..

Comprei chocolate. bj forte… ♥ ♥ ♥

________________________________________

Intimidade preocupante. Tem que adivinhar a cor da minha calcinha. Outras coisas pequenas. Borboletinha na virilha, cicatriz delicada na canela. Mas significantes. Marcantes. Visíveis na imaginação que segue, quase vibrando levemente com um fundo em zumbido, associadas a palavras frases exclamações de momento, espontaneidade que se firma despretensiosamente, com efeito predominante sobre outras intenções de registro, desde uma joia calculada a um monumento histórico. E essas coleções vindas do nada, nascendo entre um sorriso e uma surpresa, gravam-se por si mesmas, com seu próprio poder, um talhe na parede de pedra. Prender os cabelos de certa forma – sei que você gosta assim, lindo, já percebi. Passar uns feixes de fios sobre o ombro e ficar observando, vesga, as mechas cor de areia. Olharem-se de frente, em silêncio, riso reprimido de crianças que brincam de apostas, íntimos telepatas adivinhando a felicidade um do outro e também como se estivessem tramando alguma maneira divertida de aplicar um grande golpe no mundo. Momentos não planejados, emergindo de algum lugar perdido de um tempo extinto e por motivo algum. Mostrar a sandália nova, rasteira de calcanhar fechado, no mais apenas um solado e uma tira preta sob uma linha de estrasse, subindo sobre seus pés francamente expostos, mas você está nua com essa sandalhinha, menina! Quase sempre se senta ao seu colo, brincando de oferecer seu peso gostoso sobre as pernas dele, antes de atirar-se na cama. Ah, eu queria ser sua aluna, vamos brincar de eu ser sua aluna, vamos? A Josie é de uma ignorância inspiradora. O que vai ser disso? Preciso ir embora. Preciso sumir, sair da vida dessa garota. Virar as costas, fechar a porta. Esvanecer. Preciso que ela suma também, que desapareça de mim. (Voz do doutor Stabile: você já tinha pensado em matar essa moça antes?) Ele mal a invadia e se instalava, ela parecia já desprendida do mundo. Como consegue gozar com tão pouco? Elas fingem quando querem, todo mundo sabe disso. Não importa. Não importa muito. Se elas soubessem que isso pouco importa…

Mas foi também em um desses e-mails que eu lhe escrevi insinuando encerrar nossos encontros. Uma situação que “não é certa”, segundo eu, que “é mesmo, eu sei que é perigosa”, segundo ela. Foi também em um desses e-mails que pontuei minha condição atual, incerta e suspensa, por isso não poderia continuar, não podia me arriscar assim, só poderiam piorar as coisas – falando por mim, pelo menos. E foi também em um desses e-mails que lhe escrevi e reescrevi da melhor maneira – não com tais palavras e ênfases, mas quase as mesmas, nem lembro mais, deletei tudo por aquela época, fazendo diluir entre infinitas conexões essas mensagenzinhas breves e abreviadas, capazes de destruir um mundo – sobre o que estávamos fazendo, afinal eu era casado, eu era cobrado por cada gesto, e se uma coisa dessas viesse a público você entende não é? então você pode imaginar eu sei eu sei ao mesmo empo não quero admitir para mim mesmo que poderia estar me aproveitando disso usando você usando seu corpo ou brincando com seus sentimentos e coisa e tal, derivando a essa coisa sentimental de culpa e constrangimento que sempre pega bem nas relações sociais, além de sustentar a aparência de comportamentos profundos e sérios, quase idealistas, nem se diga, com essa babaquice aborrecida e interminável. A Josie, para meu alívio, sem questionar sem se irritar sem recorrer a pieguices, respondeu que “tudo bem, eu entendo”. Ela já significava em minha imaginação mais um movimento consumado, um risco encerrado, e me envolvia aquela sensação de relaxamento nervoso e involuntário, necessário à sobrevivência, que sucede os claros da insônia e os grandes tormentos. O que é a insônia, quando estamos envolvidos com coisas intensas secretas perigosas, atropelando pedras, resvalando em ravinas, desmoronando sobre nós mesmos, no limiar da catástrofe, da ruptura drástica? Que importa a insônia, quando nos sentimos assim, proparoxítonos? Ainda foi em meio a um desses e-mails que eu me toquei a tempo e considerei não ser muito educado ou apropriado terminar assim, por escrito, frente a uma tela luminosa, tiqueclique de teclado, e num instante eu me senti vaga e equivocadamente um monstro. Já delineava o futuro a partir de um dia, deixando definido em mim que iria me lembrar para sempre da Joss Stone em minha vida, seu sorriso de covinhas seus cabelos de areia seus beijos gostosos gostosos mas tão gostosos que… Ah, mas que droga ter que abrir mão disso, e tudo por causa de um… por causa de uma… – nem sei mais. Um monstro e também um covarde: um ratinho assustado com a virtual perspectiva da derrocada de um casamento hoje tão estranho ao que um dia foi; um animalzinho cerceado reprimido limitado como indivíduo pelo receio da ruptura e pelo direito civil. Mas era isso, e assim tinha que ser. E foi também em um desses e-mails, o e-mail resposta seguinte, que ela escreveu que tudo bem, mas tô chorando aqui mas não liga não mas não tem importância eu não esperava que terminasse assim (por e-mail, foi o que entendi) vc só escrevendo pra mim. E foi também em um desses e-mails que senti que não era justo terminar assim, via e-mails, não lembro se já disse isso, e combinei com ela um encontro na Praça dos Expedicionários, onde eu costumava caminhar e correr de vez em quando, imaginando que ficaria a meio termo de onde eu e ela morávamos, o que não passava de outra bobagem minha, é claro: qualquer lugar serviria, eu me deslocaria pela cidade, como sempre fazia, qual o problema? Ela aceitou na primeira. Vou sim, combinado então. Não sugeriu que eu fosse a sua casa. Não propôs algum outro lugar. Poderia mesmo ter encerrado essa chateação toda dizendo-me: deixa pra lá, pra que essa porcaria desse encontro?, se é assim, é assim e pronto, adeus e boa sorte.

… Bocage escreveu que a frouxidão no amor é uma ofensa. Amor? Eu disse isso? Não, não, mas pelo menos a audácia de viver essa subversão pequeno-burguesa mereceria mais de minha decisão e de minha coragem, mereceria merecer minha devota contrapartida sem deixar transparecer minha insegurança, minha covardia, mas não, não…

Tinha chovido durante a noite e pouco mais na parte da manhã. Um sol fraco apareceu embaçado por uma camada de nuvens fina e frágil, mas uniforme e inteiriça, como uma lanterna fria por trás de um papel-manteiga. Era um daqueles dias esquisitos. Entre o verão e alguma outra coisa. Entre o que eu imaginava e o que era o mundo. Vi que a Josie chegava, vinda da curva sob a grande árvore nativa, passando por seu espaço maciço e sua sombra, cabelos despenteados com seu estilo encardido mesclado de manchas castanhas claras escuras, sua bolsa de franjas, de alça comprida, dando-lhe à lateral da coxa fechada em jeans, e ela andava devagar, meio disciplinada meio desleixada. Blusa de malha cinza-clara, zíper aberto, um cordãozinho solto sobre o peito, outro oscilando sobre um quadril, por cima da camiseta de um amarelo-gemada, eu acho, um amarelo pálido, melhor assim, e os mesmos mocassins daquele dia-ponto-de-ônibus, aquele dia em que eu a levara comigo até sua casa, entre sombras e reflexos, ela chegou a chorar, eu lembro, enfim, que diferença isso faz? Talvez ela não tenha muitos sapatos, muitas roupas, uma menina simples, agora desempregada, e esse pensamento despertou em mim um fio de solidariedade e ternura, porque também a minha vida, infância e tristes fases seguintes, desde a neblina pré-histórica do que me era contado e do que me recorda nitidamente ter vivido, foi muito assim, um mesmo par de botinas batido até o limite, entre outras formas descontinuadas de avareza compulsória.

Enquanto ela se aproximava andando calma, como a retardar cada segundo a cada passo, uma brusca consciência de fatores-mãe desse momento vivo despencava como ao fundo de meus olhos, por trás de meu rosto: se a Marjorie não tivesse insistido em minha terapia eu não teria conhecido a Josie, se a Josie não tivesse sido demitida não estaria no ponto de ônibus àquela hora, agora ela saiu da sombra da árvore magnífica, vai se pontuando de focos avulsos e breves, não estaria naquele ponto, não estaria no ponto, não estaríamos no ponto um para o outro, se eu não tivesse lhe oferecido carona, eu que distraído quase não a vi e quase passei reto de cabeça baixa, eu agora a vejo a distância e tão bem a reconheço, deixando as sombras mais fortes, trocando-as pela claridade entre as árvores mais rarefeitas, a claridade do sol escondido agitando sobre ela mechas e manchas dançantes conforme se desloca pela alameda estreita, entre as brechas mutantes das ramagens, ela também me vê, segue em frente, vem a ficar frente a mim: se ela mesma não quisesse nada comigo… Como a vida pode assim subverter-se de um dia a outro, entre dois sóis, de uma manhã e de outra, entre um sol que passa e umas nuvens que ficam? E agora seu rosto vem próximo, e ela está dizendo o que com sua voz francamente feminina me diz agora: oi.

Parte dos cabelos, partindo das laterais da testa, segue na horizontal, um ajuste de mechas desviadas de sua queda prevista, presas atrás da cabeça, um prendedor minúsculo em forma de cordinha trançada, algo assim, o resto caindo na vertical, uma cascata de fios quase lisos quase crespos, despenteados desgrenhados densos, o que me parecia torná-la a um tempo desafiadora e inofensiva, provocante mas simplória desatenta comum, arrumada para o dia a dia, nada mais. Como consegue, por meio de arranjos tão simples, mostrar-se ainda mais linda? Que foi que fiz para merecer isso? Esse dilema, digo. Essa desgraça. Essa graça.

Eu a abracei, beijei sua orelha. Breve, neutro – queria voltar a ser inocente. Cheirinho fraco e bom, sabonete de perfume cítrico e alguma outra coisa, fresca e nova, repassada por um banho. Não teria passado pelo ponto de ônibus àquela hora da tarde, eu e meu corpo não estaríamos ali, se não tivesse sido cortado do corpo docente da universidade e talvez ruminássemos em casa, eu e meu corpo, preparando aulas corrigindo textos em troca de nossa ração mensal, eu pensava avaliava considerava tudo sem compreender nada, pois nada disso precisa ser compreensível, não precisa ser. E nada disso é inevitável. Afinal quase tudo é derivado de nossas decisões, que reinam sem subterfúgios sobre todas as coincidências e possibilidades de lances que se destacam sobre o tabuleiro: bastava eu mudar o passado, trocar um peão, recuar o cavalo, decidir por outro movimento. Mas o jogo acaba avançando sob seu aval sublimado, à luz de sua razão, com seu pleno conhecimento. Você está onde não queria estar. Agora é. Outra decisão, e outro vértice aponta à frente, outra bifurcação do juízo. É isso e não tanto. A Josie me olha quieta bonitinha adulta. Desde algum momento nós nos desejamos. E passamos a mover as peças. Adultos jogam jogos de adultos.

Projeto esvanecendo-se

33. À sombra de guerras extintas – sequência

31. O que ela faz durante o dia? – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pintura de Scott Harding (detalhe superior).

por

Publicado em

Comentários

Comentar