Office in a Small City por Edward Hopper

Que momento é este?

Esquinas conhecidas. Mesmo lugar, mesma pessoa. Experiência, dizem.
Quando for velho, o que saberei? O que os velhos sabem?

Nessa mesma tarde, pude pôr em prática minha atitude alternativa. Por que não teria coragem? Sou um homem ou uma melancia? Deu-se com uma daquelas garotas que ficam em determinados pontos do centro, prancheta à mão. Elas detêm os que passam, pedem um instante, e entram a fazer perguntas de um longo questionário. Até hoje não sei do que se trata. Talvez elas só se revelem no final, sorrindo o nome de alguma empresa detestável. Às vezes penso que são espiãs do governo, mas não tenho certeza. O governo não seria tão inteligente. Como andasse distraído, quase falando sozinho, fui detido por uma delas, nessa tarde fria. Uma loirinha simpática, não tão bonita que resistisse a um exame mais detalhado.

“Boa tarde. Uma pesquisa que nós estamos fazendo. Só responder a umas perguntinhas, tá bom?”

Embora tivesse tempo para isso, não me sentia atraído pela ideia. Mas esperei. A garota posicionou-se: postura ereta, coluna em dia, peitinhos empinados, os dois pés juntos. Eu a considerava de alto a baixo, enquanto ela preenchia, com breves murmúrios, os itens que tinha como rotineiros, nome da rua em que estávamos, esquina com a outra rua tal, coisa que já poderia ter feito sem que eu precisasse estar ali, esperando, e isso torceu-me de tédio. Esperei. Esperei e não pude evitar uma de minhas perguntas mais constantes: será que isto é realmente necessário? Uma pergunta assim, feita com mais frequência, aniquilaria boa parte do que costumamos fazer em nossas vidas. (Boa parte? Que falta de visão a minha.) Perguntou-me o nome, endereço, profissão, idade e sexo, o que me neguei a responder. Quis saber se eu via televisão, preparava-se para a pergunta seguinte antes mesmo que eu abrisse a boca. Eu lhe disse que não, e isso invalidou uma página inteira do questionário. Para não deixá-la muito decepcionada, lembrei-me de que assistia aos noticiários, vez ou outra, desde os mais sangrentos aos mais mentirosos, e assim ela pôde marcar um quadradinho naquela página. De repente, eu me cansei. Eu me cansei, só isso. Invadiu-me uma crescente ansiedade por sentir algum tempo de minha vida aridamente gasto com aquela tagarelice toda, ela me perguntando se eu tinha rádio e quantos rádios eu tinha, eu então simplesmente fui embora. Virei-me com naturalidade, sem dizer mais nada.

“Ei! Não acabou ainda”, eu a ouvi dizendo atrás de mim.

Não me voltei. O que me impedia de agir assim? Decidi que não queria ouvi-la. Nem estar ali. Nem responder a coisa alguma. Só isso.

O que mais aconteceu à tarde foi que talvez nada tenha acontecido. Nada, senão em mim. Há um vírus dentro de nós esperando sempre que algo aconteça, mesmo que nunca nada aconteça. Pois nada há para acontecer. Mesmo que aconteça.

Lembro-me de uma banca de jornais: eu me detive e… Não, não me lembro de nada. Nada que me interessasse. Repetindo-me: isto não me interessa absolutamente, isto… – e era verdade. A essa altura, eu me entendia perdido, e já não poderia confessar-me com sensatez. Seguia sem certeza de nada, fugindo de mim mesmo, dirigindo-me a um lugar ou outro sem saber por quê. Desistia no último instante ou punha-me a caminho, perguntando-me depois por que diabos tinha ido até lá. Não sabia, claro.

Tilintar de jogos eletrônicos, quando passei de novo pela galeria. Lembro-me de uns garotos barulhentos, a quem os pais ironizavam chamando inteligentes, disputando matar gorilas e homenzinhos, destruindo aviões e navios, buscando superarem-se uns aos outros nos marcadores, como se aquilo fosse muito importante em suas vidas. Gorilas… Não, isso não me interessa absolutamente.

Uma esquina que conheço, o posto da Secretaria de Segurança, a fila de cidadãos, em sua maioria jovens.

CÉDULA DE IDENTIDADE – fim do corredor

Estive aqui, aos dezessete anos. O mesmo lugar, sim, como antes. Mas eu, agora… Minha identidade, eu me lembro: fim do corredor. Eu aqui.

“Você não acha isso tudo absurdo?”

“Acho. Mas que posso fazer?”

Assim eu me detinha e prosseguia, respondendo a mim mesmo. E criava fórmulas sem nenhum escrúpulo:

frio = ausência de calor

sombra = ausência de luz

morte = ausência de vida

eu = ausência de… (aqui, a incógnita.)

Insere-se a incógnita. Mas não é possível inverter os termos. Muito bem. Assim vou caminhando, respirando e vivendo. Inspiro oxigênio, descontando-se o exagero da palavra, perdida entre muitos gases tóxicos, expiro gás carbônico. Veja-se, portanto, a expressão de meu pensamento: O2 – CO2 = menos átomos meus, pois aí se vão carbonos de minha constituição, ou não será assim? Perco átomos, partes de mim, toda vez que respiro? Que perguntas têm-me intrigado, que confusão, que inferno, o que falta perguntar a mim mesmo que não seja ao menos ridículo? As fórmulas… Não, não me interessam absolutamente. Numa escala de prioridades, a vida não tem preço, entenda-se isso como bem se quiser, de acordo com a conveniência. Ainda essa. Um assalto, logo adiante. A gargantilha de uma mulher. Violência de rotina, já não interessa a ninguém. Absolutamente. Um desses malandros pode ser detido no quarteirão seguinte, deixando-se entrevistar pela garota da prancheta sem que ninguém se incomode com isso. O velho à porta do bar, bêbado, repete palavrões ao caixa. Deve estar perto de morrer com uma cirrose. E continua disparando palavras de sua desencontrada oratória, reivindicando alguma justiça, a seu modo, antes que o esmague o silêncio. Se fosse uma criança de cinco anos, talvez xingasse também – outra pessoa, por outros motivos. Cinco ou oitenta e cinco, que importa? Algarismos. Esquinas conhecidas. Mesmo lugar, mesma pessoa. Experiência, dizem. Quando for velho, o que saberei? O que os velhos sabem? Só o que há são opiniões. Cirrose, pelo jeito. E eu, do que será que vou morrer? Também não, não me interessa. E mesmo sem interesse, deparei com um gigantesco focinho negro, o olhar hipnótico de um felino que eu não previa. Absorvido pelo carisma sobrenatural daqueles olhos, como se me perdesse de vez no fundo de meu pesadelo, como se tudo terminasse ali: tudo o que vivi, o que estudei, o que foram meus ídolos e sonhos, as pessoas que eu… Enfim, qualquer coisa que antes… Mãos na cabeça, estive a ponto de gritar. Não me libertava, e era como se desejasse de fato ser tragado por aquelas íris de infinitos cristais. Que momento é este, o que a tudo aniquila?, perguntei ao gato no cartaz. É você? Mas rompi de repente o emaranhado do feitiço, tendo corrido umas três (quatro? cinco?) quadras, até recobrar a calma.

 Quarta-feira (A conspiração dos felizes)

 Brincadeira com bichos – anterior

Tudo à flor da pele – sequência

Guia de leitura

Imagem: Franz Kline. Sem título (detalhe inferior). 1957.

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