Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Terça à tarde

Não deve haver quem não se encante em encontrá-la assim, de frente, com esse sorriso indecifrável e esses olhos nórdicos…
Parecia que, mesmo ao sol e à franca claridade dessa tarde, continuassem ativos os componentes de uma atmosfera densa entre neblinas.

A Marjorie marcou com a Maga dia e hora em que ela me visse. Que a Maga me visse, se não ficou claro. Justo a Maga. Pareceu-me irônico. Uma terça à tarde. (Joss Stone, eu pensava muito, muito em você por esses dias.) Conversando com a amiga, a Marje conseguiu saber dessa possível oportunidade de trabalho em uma rede de farmácias – na parte administrativa, tranquilizou-me. E nem precisava. Do que bem sei da Marjorie, ela nem de longe aceitaria a ideia de ver-me trabalhando como balconista numa farmácia, qualquer que fosse. Eu não queria também, por motivos outros, entre os tantos motivos singulares silenciosos compreensíveis ou incompreensíveis que-eu-mais-tenho, trabalhar com atendimento em nenhuma parte do mundo, nem mesmo na Escócia. Mas não podia deixar de ir, esse era o caso. Não podia contar à Marjorie nem à Maga nem a ninguém que no fundo eu torcia para nada daquilo dar certo, para toda aquela conversa ainda aérea e debilmente promissora empacar num beco invisível dos dias todos, para depois esquecer-se de vez, como ocorre com tantas situações incertas que desaparecem sozinhas entre a dinâmica obtusa de nossas vidas. E daria um jeito, por minha conta, para que aquilo não desse certo. Meu fundo de garantia aguentaria firme por certo tempo. Mas não, ainda não era bem isso, não seja hipócrita. Fora dessas constatações práticas, era que eu me assumia cada vez mais um antiescravista de mim mesmo, um rebelde conspirador sem qualquer conspiração real, um vagabundo intelectualizado mas não transcendente, enfim, meus segredos não demandavam nenhuma justificativa, em primeiro lugar porque eram segredos.

Antes disso e como parte disso, desenvolvia-se um teatrinho previsto. A Marjorie já havia conversado com a Maga, como eu disse, mas nossa amiga me ligou assim mesmo, confirmando o encontro. Eu sempre ficava bem-humorado em relação à Maga. Fala, minha amiga querida, quer que eu chame a Marjorie? Não não: é com você mesmo, professor. Oh, sério? A Maga tinha uma voz linda, e eu sentia vergonha de dizer aos outros sobre como essas percepções involuntárias grudavam-se a meu conjunto meu compêndio minha coleção de itens especiais que me alcançavam e me alegravam, como breves invasões da beleza em minha vida. Lembra de quando te falaram que eu tinha planos pra todo mundo, menos pra você? Claro que lembro: eu estava sóbrio, acho. E por que mudou de ideia? Ela riu. Ainda não tenho exatamente um plano pra você, mas sei de uma coisa que pode te interessar. Dá um jeito de me encontrar pessoalmente, vem aqui em casa. Quando pode? Quando posso? Minha amiga: eu estou desempregado ocioso vagabundo inútil, falta pouco pra eu manufaturar bolinhas de cortiça ou aprender a construir bombas caseiras. Que palhaço. Então, na terça próxima, pode ser? Pode sim. A qualquer momento. (Ela me explicaria, depois, que um cara chamado Enio Salerno, marido da sua amiga Maria Eugênia Driaga, sócio de uma rede de farmácias com unidades em Franca em Limeira em Londrina e, o mais importante, duas aqui mesmo, em nossa cidade, poderia dar um jeito de me encaixar em algum trabalho lá. Que tipo de coisa? Não sei. Mas primeiro preciso saber se você quer mesmo, pode ser na contabilidade, no estoque…)

Era a Queen quem dizia da Maga, o que sempre me pareceu exagerado e estranho: que ela sempre tinha em mente algum plano para todos. Porque ela se preocupava com alguns de nós. Aparentava passar por uns e outros com certa pressa e desinteresse, mas incrivelmente era a mais atenta entre as pessoas que povoavam sua casa nas noites pontuadas por aquelas festas quase inconsequentes. Na noite das batidas com leite, a Queen me contou que ela havia emprestado uma grana para ajudar o Robertinho Sandrin: ele estava quebrado, totalmente quebrado, e planejava ir embora do país.

Fui à casa da Maga, que eu conhecia tanto mais da noite, estranhando quase maravilhado aquela serenidade feita ao dia. (A Marje, ao fim da tarde, quis saber de toda a conversa, é claro. Mandou meu abraço a ela? Você já tinha ido lá durante o dia? É lindo o lugar, não é?) Sim. Um lugar lindo sob o sol, entre sombras amenas. Lindo sob a chuva. Desde quando eu, discreto e receoso, passara a conhecê-lo – e a conhecer melhor a Maga-Magali Lyngstad da Silveira. Que eu sabia aparentar alguma arrogância no porte de sua figura robusta e em parte devida a sua personalidade autoconfiante. Que eu sabia mal desejada pelos homens apenas por ser-estar acima do peso previsto pela cultura geral. Que eu sabia bem querida pelas mulheres, em parte por esse mesmo motivo, que reduzia riscos de concorrência e competitividade entre elas. Que eu sabia uma pessoa especial forte estável inteligente, alegre sob rostos sérios, séria ao observar os alegres, com pouca ou nenhuma transparência quanto a suas opiniões e por isso, de alguma maneira, resguardada invulnerável inatacável, sutilmente poderosa e permanentemente enigmática.

As ruas estreitas de seu condomínio, algumas transversais, partindo de uma curva, apesar de muito bem cuidadas, aludiam sempre a um aspecto rústico, talvez pelo uso, seguindo certas estéticas e modismos arquitetônicos, de diversos tipos de pedras nos calçamentos nos jardins e até mesmo em algumas paredes, talvez porque lembrasse os momentos quietos das cidades menores interioranas. Eu absorvia todas essas impressões, ao respirar o ar calmo que envolvia as casas próximas, enquanto revia imagens recentes de crianças desnutridas e em estado de miséria, coisas de que nunca me esqueço quando em meio a determinadas situações que de alguma forma provocam em minha imaginação a dor dos contrastes. Subi os dois degraus da frente, último estreitamento conduzido pelo jardim, agora representado por escovinhas, espinheiros brancos, espinheiros rosa e flores de acácias. Esse homem não compreende por que não são todos como ele, misturando imagens e ideias, não compreende que tantos sigam pela vida, de seus primeiros aos seus últimos dias, com essa tranquila imaculada saudável indiferença. A ilustração europeia, talvez francesa, que vira em sua profunda antiga infância, retinha-se para sempre em sua memória, sua coleção de valores íntimos aleatórios, e mostrava uma menina pequena pobre descalça na lama usando um xale laranja. Recorda que mais de uma vez, nas noites da Maga, impressionado por uma ou outra mulher vestida com evidente e sofisticado esmero, trouxera de volta, de sua arca mágica, a garotinha suja do xale laranja. Instantes de indignação e impotência. Nem era preciso inspirar-se pela pobreza na Europa, é claro, foi apenas porque assim aconteceu, e ele não se envergonha de copiar a verdade sem adaptá-la ao que politicamente bem se espera. Interpretar o mundo ou abandoná-lo. Nada parece ser bom, que certas angústias não se resolvem em sua mente. Que golpe esse, que o enfraquece até os ossos?

Minutos depois, nessa mesma tarde, eu estava sob um dos quiosques, à margem da piscina, enquanto a Maga voltava do interior da casa trazendo uma bandeja com tigelinhas, castanhas nozes picadas amendoim japonês e suco de limão gelado, tendo antes me oferecido cerveja e uísque, que eu não obrigado, talvez mais tarde. Pensei que você fosse me trazer um Martini ou um St. Rémy, alguma bebida de mulher. Ahahah… Mas esse machismo não sai de vocês, que coisa! Um pouco mais baixa que eu, robusta e pouco flácida, proporcionalmente agradável, ela andava adernando os quadris largos, saída de praia branca translúcida sobre o maiô azul-niágara (algo que me chamou a atenção por lembrar a cor difusa de seus olhos) sandálias de plástico e uns adereços em forma de contas ou bolinhas de madeira, pulseiras e um colar duplo, descendo entre os seios, ela se sentou à minha frente, perguntou se eu não tinha vindo com uma sunga, se não queria dar um mergulho. Não deve haver quem não se encante ao encontrá-la assim, de frente, esse sorriso indecifrável esses olhos nórdicos, de pálpebras a meio caminho das íris, destacando suas variações de azul-gris enquanto supostamente cumprem a função de disfarçá-las, às íris, pelo fato de escondê-las parcialmente. Sua pele clara, primeiramente propensa a ostentar uma constelação de sardas, mal lembrava aquela menina aloirada das antigas fotos polaroid, as nuvens de sardas hoje diluídas desaparecidas desfeitas, só um fundo quase invisível sob uma película, no rosto de uma mulher madura e carismática. Parecia que, mesmo ao sol e à franca claridade dessa tarde, continuassem ativos os componentes de uma atmosfera densa entre neblinas, própria dos países muito ao norte, nuvens claras guardadas por trás de seus olhos, como todos nós carregamos heranças involuntárias, nos fios de cabelo, no formato do pâncreas, na elasticidade das paredes das artérias ou em alguma parte das conexões neuronais, o que predispõe a surtos de alegria fácil ou baixas de tristeza, além de certa inclinação a atitudes arrojadas contrapondo-se a justas opções pela reclusão, variações que podem não ser determinantes-deterministas, mas que nos revelam quem somos, já que não existem espíritos independentes, fora de nós. Eu brinquei com ela, perguntando qual era o plano. Ela fingiu me encarar séria, preparando talvez alguma ironia em troca, também uns cristais de malícia em seu olhar. É, você sabe, eu gostaria sim de ter um plano pra você, mas você parece ser imprevisível. Eu? Imprevisível? É. Você aparenta ser todo responsável e virtuoso, mas eu sinto, eu entendo que você é imprevisível, P. Girei o copo alto, agitando o líquido circularmente, bebi um pouco do suco gelado. Bom, pelo menos você não está pensando que eu seja uma espécie de nerd obcecado ou algum tipo de franco-atirador, não é? Ela riu, tocou meu braço, pegou minha mão sobre a mesa. Não não… Eu me sinto à vontade com a Maga, e sei que ela sente algo parecido quando está comigo, que baixamos as guardas, uma relação de confiança que nos parece natural, leveza de quem não antecipa nenhuma manobra esquiva de parte a outra, e que sinceramente deseja que o outro esteja bem. É tão melhor assim do que ficar atento ao que se fala ao que se faz, que é cansativo tentar ser-parecer outra pessoa. Já estávamos juntos há pelo menos uma hora quando ela voltou à copa e retornou à área da piscina com outra bandeja e mais suco. Antes de se sentar, veio às minhas costas, debruçou-se um pouco sobre mim, abriu metade dos botões de minha camisa, afrouxou-a ao redor do pescoço, mãos descendo aos ombros, e começou a massagear-me devagar. Eu sei que você não está bem. E não é isso que vai resolver nada. Mas eu quero que você continue pensando em sair dessa, sair desse casulo e desse silêncio. Sabe que eu estou aqui pra te ouvir, te ajudar. Não sabe? Sei. Tem razão, Maga. Fica assim. Sente isso, só. Não é bom? Quando a gente fala muito, a gente estraga as coisas, entende? Sei. Entendo. A Maga era forte, me apertava com gosto. Eu quase gemia de prazer. Ah, mas que coisa boa… Peguei uma de suas mãos, olhos fechados, levei-a aos lábios, beijei-a de leve, agradecido, cheiro de filtro solar. Ela riu um pouco. Hoje nós vamos só conversar, certo? Tocou meu rosto com as costas da mão. Mas você precisa fazer essa barba, senão vai me esfolar inteirinha. Maga e seu conhecido bom humor. Ela me inspira uma sensação de honestidade e confiança como pouquíssima gente que infelizmente conheço. Ela vê um ingênuo. Trata-me como um ingênuo. Mas não muito. Não muito, ao que parece. Então, entre essa massagem carinhosa e a brisa que passava por ali, contei a ela. A Maga ouviu o quanto pôde, sem me interromper. Contei a ela a verdade. Pela primeira vez a alguém, desde minha demissão, desde que perdera as aulas, desde que perdera esperanças prognósticos perspectivas e a tal agenda abstrata de motivações, confessei-me a ela. Eu não queria mais trabalhar. Queria encontrar algo que não fosse o que era e que ainda não se mostrava claramente à minha razão. Mas que agora era forte em mim, era sem dúvida o que-eu-mais-tinha no momento. Ela me olhava em silêncio. Sem se surpreender. Analítica. Solidária. Voltei o rosto em sua direção, ela também procurou o meu, inclinando-se um pouco à direita. Trocamos um olhar de inteligência – entre um homem e uma mulher. De pé, como estava, ela abraçou-me por trás, curvando-se sobre mim. Querendo ajudar. Você tem que continuar pensando no que eu te disse. Você pensa que pode sair dessa, mas está preso como numa engrenagem. Entendeu? Aceitei seu abraço sua proximidade seu conselho. Mas não prometia nada a mim mesmo. Nessa tarde, ficamos umas três horas juntos. Longe do mundo. A Maga se dispunha a ajudar-me sinceramente, e de certa forma eu me arrependi de ter-lhe confessado meus não-planos. Era tarde. Também era tarde dessa tarde. Depois de algo acontecer, é sempre tarde. Quando fui apresentado a ela e da primeira vez que nos despedimos em meio a outros, a Maga, simulando beijar-me o rosto, pareceu disfarçar e beijou-me em parte o queixo, em parte o canto da boca. Nada de mais. Muitas fazem isso. Uma maneira educada e invisível de driblar habituais restrições a pequenos desejos. Dessa vez, após termos ficado juntos por bem umas três horas, não sei se já disse isso, a Maga compreendendo que essa história toda da farmácia estava longe de ser a minha cura, nós nos despedimos no pequeno hall da entrada, logo acima do primeiro degrau. Ela beijou-me a boca: um beijo rápido duro forte superficial, de boca fechada. Olhou-me de frente. Eu adoro a Marjorie, você sabe, e quero muito ajudar. Havia ainda, à parte todas as sutilezas, um fundo quase sumido, mesmo sob a neutralidade desse gesto avulso, de filtro solar em sua pele, de limão em seus lábios. Isso foi em fevereiro.

… nos últimos períodos da Antiguidade, conheciam-se cerca de cinquenta profissões. Ao fim da Idade Média, registrava-se o dobro. Pouco mais de um século atrás, contavam-se cento e trinta variantes de atividades laborais, e hoje, dispondo de dados mais precisos, nossas instituições governamentais listam mais de trinta mil profissões distintas, consequência das sociedades pós-industriais. E pensar que nenhuma delas seria uma escolha minha…

“Detesto todas as profissões.” Quem é que teve coragem de escrever isso? Mas que coisa linda. Como é possível alguém ser tão sincero? Detestar todas as profissões, tudo. É de arrepiar. Quando um colega me emprestou Rimbaud, eu não acreditava muito no que iria encontrar – franceses sempre me cheiravam a ranço cultural. E ali estava o jovem inconformado, que não se adaptava a essa tralha toda que é o mundo civilizado, um mundo que estava longe de ser qualquer coisa que-ele-mais-quisesse. Portanto, o poeta foi aventurar-se por outras terras. Foi traficar armas. De certa forma, teve que trabalhar. Tinha de comprar e vender calcular o lucro correr riscos, era o seu negócio agora. Menos pior que algo burocrático, mas, enfim, deve cansar do mesmo jeito. De certa forma, sempre temos que trabalhar. As obrigações do rei. A agenda do príncipe. Cerimoniais. Compromissos. Assusta-me que não haja saída quanto a isso. De certa forma, sempre temos que viver. De certa forma, sempre temos que morrer. E ele, o inquieto Arthur Rimbaud, acabou morrendo de uma doença que começou por lhe afetar um dos joelhos. Que lhe amputou uma perna. Que lhe quebrou as pernas. Não fico nada contente em saber disso. Mas também não sinto pena de ninguém. De certa forma, tudo pode acontecer.

Era a terceira vez que nos encontrávamos. Terceira vez, eu acho. Lembro-me de uma greve de caminhoneiros por aqueles dias. Uma dessas coisas fora do mundo, sobre as quais eu não queria nem saber. Agora não tenho certeza, não importa. Eu a beijava com força, depois me acalmava, esperando que ela falasse primeiro. Eu também tenho medo, lindo. Às vezes eu tenho muito medo mesmo, viu? Sabe, assim como se a gente estivesse fazendo alguma coisa muito ruim no futuro, entende? Que nem nos filmes, nas novelas, que são um retrato da realidade, não é? Alguém um dia fica sabendo, depois acaba que é aquela desgraça. Fiz um carinho em seus cabelos, tentei não achar engraçado. Passei a mão por seu ombro estreito, indo e voltando, sentindo essa parte gostosa de sua pele. Mas é diferente, Josie: os filmes e as telenovelas são planejados. Os roteiristas sempre dão um jeito de alguém descobrir as coisas erradas, que é para o público fofoqueiro ficar contente. Na vida real, nem tudo se sabe. Os maledicentes podem se frustrar, sem nunca confirmarem uma suspeita. E sabe? Alguns segredos podem ser segredos sempre.

… a poeta russa Bella Akhmadúlina escreveu que as mentiras pareciam estar voando ao seu redor como corvos – que belas imagens conseguem os poetas, instantes que me paralisam, a beleza sempre me fragiliza um pouco. Para o cineasta sueco Ingmar Bergman, conhecer a verdade não podia ser tão grave assim, que a verdade não podia nos matar. Ao contrário, ela deveria nos iluminar. Será?…

Minha masculinidade discreta, sua feminilidade sem excessos, nossa sintonia fina. Eu chegava à porta daquele apartamento apertado onde ela reinava sozinha, atravessando os dias mais ou menos mesmos e sua juventude. Ela a abria, me beijava, se abria. Saudade saudade saudade, querido. Eu entrava abraçado a ela, ansioso adolescente nervoso e quase arrependido. Mas essa era ardentemente a parte mágica de meu dia de minha semana de minha vida ociosa incerta até então. Pensava na Josie e não me dizia tudo. Deixava quieta uma espécie de sombra clara, sem explicação, melhor assim. Nunca me dizia tudo, nunca lhe dizia tudo, não ainda. Voltava a ela em sonhos e imaginava confessar-lhe o que ela significava para mim, confusamente. Minha meiga Josie, minha Joss Stone, minha pequena trabalhadora desempregada, se você soubesse do que penso sobre as coisas da vida humana… Minha garota de um dia avulso, do ponto de espera do ponto de encontro do ponto zero, minha inspiração em meio a toda a gente chata deste mundo. Simpática. Fechando a porta da frente. Vem, deixa suas coisas aí. Um canto da estante de madeira escura da sala: chaves carteira óculos de sol. Que foi? Tá sério. Ahn, não, eu… será? Pareço sério? As mãos dela passeando à toa sobre a camisa dele, subindo com os dedos ao colarinho, seguindo o bolso, redesenhando casas e botões. Acho que a gente tá preocupado, viu? Eu te entendo. Não é fácil. Você é casado, eu sei. Não é fácil. Eu te entendo. Acho que Deus faz isso pra testar a gente, só pode ser. O resto, a gente nunca sabe. Eu me culpo um pouco. Não quero que te aconteça nada de ruim por minha causa, viu? Só queria muito ter você aqui, comigo, entende? Eu sei, linda, não fique se culpando não, não é justo, eu estou aqui porque quero, porque também quero ficar junto, com você, hoje, aqui. Depois, o mundo continua todo, lá fora. A Josie olhava para baixo, ainda a camisa dele. Logo ele estaria sem ela, a camisa, ou a Josie ou ele haveria de descartá-la, a esse artifício que molda nossa aparência, nossos costumes, que conta de que parte da cidade estamos vindo ou em que tipo de grupo trabalho parentesco vizinhança estamos mais ou menos inseridos. Afagou os cabelos dela. (A Josie é baixinha, sua testa em meu pescoço. A Marjorie tem quase a minha altura, de saltos ultrapassa-me ligeiramente as orelhas.) Ficou ouvindo sua voz nada especial, mas única para ele e para sua memória. Às vezes eu tenho um pressentimento, sabe, lindo? Deve ser por isso de você ser casado, não sei. Um pressentimento, e acho que a gente anda mesmo preocupado, você e eu, cada um de nós com nossas coisas, fora daqui, com a nossa vida fora daqui. Um beijo leve rápido carinhoso. Parece que fica tudo bem para ela, num instante. Para ele, as coisas não acabam rápido. Com o beijo, um arrepio imprevisto ao retomar involuntariamente a pergunta do doutor Stabile: você já tinha pensado em matar essa moça antes? Olhou para ela. Você acha? Que estamos tão preocupados assim, fora daqui? Acho. Beijei sua boca três vezes. Olha, Josie: pra mim, pressentimentos e superstições são a mesma coisa. Tá bom, lindo. Eu sei. Tá bom então.

Era mesmo? Ele acreditava no que ele próprio dizia? Por que três vezes? Vamos, vamos. Isso não importa muito. O que importa agora é que ela o leve até o quarto, à cama, com seus aromas sua pele sua força. Da parte dela, era assim: uns primeiros contatos beijos afagos entre sinais de delicadeza, e logo se tornava uma fêmea forte em minhas mãos. Banho compartilhado. Energias se despedindo. Hora de ir, sempre chega essa hora. Sempre chega a hora de ir embora de qualquer lugar. Linda, foi maravilhoso. Foi tudo maravilhoso, você foi maravilhosa. Foi sim, meu querido. Ele interrompe esse beijo, precisa se conter, sente que precisa desculpar-se talvez. Machuquei você, não foi? Não, lindo. Não mesmo, é sério. Tá tudo bem. Anal é assim mesmo.

… Kierkegaard não acreditava que se pudesse ter, ao mesmo tempo, relações de prazer e uma rotina. E a minha situação de clandestinidade? Terminaria se eu assumisse uma nova rotina, sim. E essa rotina, como qualquer outra, faria diluírem-se minhas vontades meu prazer minhas expetativas, previsivelmente. Estava confuso. Atração física e sentimentalidades são coisas diferentes de sentimentos profundos. E não ser romântico não significa não ser sensível. E, enfim, e eu já não me importo nada que se confundam essas coisas todas…

Saía de lá pensando no que fazer com ela. Sei, já contei que era assim. Passou a ser assim. Sempre que saía de lá. Indo embora. Pensando no que fazer com ela. Isso, em diversos sentidos. Fazia sentido. Não, não fazia. Alguma coisa, talvez. Não é possível que ela seja tão simples, tão… fácil. Eu sempre percebi alguma malícia em suas mínimas expressões quando ela trabalhava para o doutor Stabile. Talvez. Não tenho certeza. Não era comigo, eu sei, eu lembro. Era algo em si mesma. Parecia ser mais inteligente. A rotina conhecida talvez lhe conferisse alguma segurança, e eu fiquei com essa impressão. Enfim… enfim… Não sei.

Aquelas camisetas largas que ela usava eram bem fáceis de tirar – havia sim uma expectativa, uma intenção. As bermudas também: caíam fáceis. Os chinelinhos desapareciam, de um movimento mínimo de seus pés. Ele agora: sua vez de desabotoar a camisa, descer as calças. Sentando essa garota sobre suas pernas, sentindo a lateral desse corpo junto ao seu abdome e ao seu tórax, também quase lateralmente, o rostinho dela inclinado, pouco acima, contra a claridade, pronto a sufocá-lo sob sua sombra. Ela se amolda facilmente a essa posição clássica afetuosa sensual. E era isso. Beijos confusos, mas definitivos. Fortes. Saborosos. Decididos declarados deflagrados, oferecidos e tomados, agora sem qualquer sinal de hesitação. Terminam, e as testas se tocam, a respiração se acalma. Ele a olha de cima a baixo, tentando tocá-la até onde pode. Deliciando-se com seus seios. Poderia ter passado a tarde toda só em torno deles. Momento de eternidade. Vale a pena essa eternidade, se é assim. Eu a quero aqui. Eu a desejo aqui. Controla e conduz seu corpo pequeno, domina essa mulher por meio de forças que outra vez reconhece como suas: naturais indisciplinadas legítimas. A Josie despertava nele aquela região íntima onde não havia separações nem entraves. Escondido com ela, entendia-se pleno livre outro.

Projeto esvanecendo-se

 30. Sonho com Josie na galeria – sequência

28. O anjo de ficar – anterior

Guia de leitura

Imagem: Ludwig Sander. Sem título (detalhe inferior). 1964.

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