Office in a Small City por Edward Hopper

Damares (trecho)

… que acontecem

Texto apresentado no sarau da Casa do Poeta, na Livraria Paraler, e no encontro de escritores promovido por Irene Coimbra, no Hotel Vilage Inn, março 2019.

Parte da literatura trabalha com elementos mágicos, fantasiosos, surreais, uma tradição que remonta à Antiguidade, como nas narrativas de As mil e uma noites, e chega ao século 20 com autores como Kafka, Borges, García Márquez e muitos outros. Esses elementos são sempre representativos, ou não teriam razão de ser na expressão do psiquismo humano. O trecho a seguir mostra o momento em que o personagem adolescente de Lisette Maris em seu endereço de inverno encontra-se com sua colega de escola, Damares, a convite dela, em sua casa grande e confortável. Ele é recebido com hostilidade por um grande cão negro, furioso, que se agita por trás das grades do jardim, por isso é aconselhado, pela criada que o atende, a entrar pelo portão lateral. O que ele não sabe é que esse cão irascível é, incrivelmente, o pai de Damares.

……….

Uma criada inexpressiva aconselha que eu entre pelo portão lateral. Damares mora nesse sobrado razoavelmente luxuoso, mas que também não é a oitava maravilha mais antiquada do mundo. Cozinha: copa: antessala: corredor: a criada, que nunca me olha nos olhos, informa que ela está ouvindo música na saleta contígua, a das almofadas. O cão, do qual suponho estar livre, entrou certamente por outra porção de seu conhecido labirinto e ataca-me tão logo avisto Damares pela porta aberta. Ela se ergue da almofada.

“Papa, não faça isso!”

O cão não lhe obedece. Abocanha meu punho contraído e surpreendentemente se detém, como se algo o houvesse paralisado. Ergo o braço, o punho cerrado entre suas presas, ele se permite içar, mantém-se suspenso e oscilando, com o peso dos enforcados.

“Papa, que coisa feia…”, diz ela ao aproximar-se. “Não sabe que é meu convidado?”

Com um gesto habilidoso, desarma-lhe as mandíbulas, livra-se do mastim. Ele ainda rosna, mas sai pelo corredor. Damares sorri de encontro a meus olhos, e o cão rosnando a distância empresta-me que essa engrenagem atravessa também os dentes de seu sorriso, Damares rosnando surdamente, sorrindo em silêncio. Seu sorriso, aliás, pela primeira vez endereçado a mim, pareceu-me dividido em duas fases distintas, quase imperceptíveis: a primeira metade abrindo-se como uma cortina apresenta o dia, outra derivando a uma consideração velada e faiscante, como uma centelha. Blusa larga de inverno, calça justa, pés descalços sobre o carpete, assim emerge Damares dessa sala de almofadas.

“Desculpe a cena”, ela diz. “Meu pai é muito impulsivo e não compreende perfeitamente uma situação.”

Damares

Lisette Maris em seu endereço de inverno

Mais do que acontece: Chora, menino (trecho) 2

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