Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Das caminhadas e corridas

… um aroma intenso de balas de baunilha de rosquinhas de forno de mel de algo docemente enfumaçado, e tudo, bem no fundo, sustentado por um perfume suave de limão.
Em fins de fevereiro, todos esses aromas ressurgem com agradável intensidade no ar úmido deixado por alguma breve tempestade clara típica sazonal, multiplicados pelas chuvas.

Minha forçada ociosidade fez surgirem hábitos aos quais eu me dedicava enquanto ainda percebia, em silêncio, dissimuladas vibrações de culpa. Caminhar e correr. Mexer no jardim. Internet por mais tempo. Ler mais, o que era só o agravamento de um entranhado hábito em curso – em curso desde quando aprendi a decifrar o código absurdo que usamos para registrar e repassar ideias. Convivia em tempo integral com a asseada Coco Chanel, que aliás preferia alienar-se docemente, sabendo-me seguro e próximo, indo alojar-se a algum canto perto de mim, fazendo-se adormecida boa parte do tempo, em um lugar qualquer. Ela se acomoda, fecha os olhos. Coco Chanel é ela própria. Seu corpo manso que se desloca lento. Fora dela, nada é ela. Sem alma, sem eternidade. Tempo de vida, não mais. Não há nada que seja ela à frente de seu focinho; nada que seja ela para além de sua cauda. Ela é o seu próprio limite, sendo o que é. Suspira um quase nada. Desaparece para ela o tempo perceptível, o espaço ocupado. Dorme, enquanto pode. Enquanto não morre. Seguros, eu e ela. No aconchego do lar. Na casa que pertence ao meu sogro.

Enquanto tais atividades pretensamente redentoras me ocupavam, minhas caminhadas e meus grifos em páginas novas, eu não conseguia evitar uma incômoda impressão de que minhas funções como professor profissional pessoa não eram e não seriam mais as mesmas. Eu tinha de voltar a trabalhar, fosse como fosse. Com janeiro a meio, o verão entrecortado por tons arroxeados no céu, entre o entardecer e as primeiras estrelas, nas proximidades do bairro industrial, preparei cópias de meu currículo, cuidando de esperanças mais ou menos mortas. Eu olhava esses papéis, cego de olhos esgazeados. Sem nenhum interesse. Olhava-os, por nada. Há pouco mais de dez anos, com frescas lembranças de minha formatura e de meus colegas de faculdade, eu entregava meu breve histórico profissional em finas pastas de plástico de cores discretas. Esse cuidado ingênuo, quando revisto, inspirava-me uma patética desagradável amargurada pena de mim mesmo.

Outra tarde ociosa, em casa, em frente à TV. Vi o rosto dos cinco homens mais ricos do mundo, e eles me pareceram pessoas bastante comuns. Regionais. O morador do bairro Tal, o senhor Fulano da Rua dele, nos deu um exemplo de coragem. Heróis de momento. Figuras comuns. Clap, clap, clap… Enterrado com honras. Clapt! Clapt! Clapt! As porcarias de sempre, empesteando os canais. Encontrei um documentário sobre a Primeira Guerra Mundial, e adormeci durante os primeiros dez minutos de misérias. Esse sono avulso, a um tempo leve e pesado, parece mesmo nos arrebatar, suave e intensamente, do mundo físico – porém, tudo isso é também físico. Uma sensação letárgica inicial, percebida ainda pela consciência, então um afundamento na névoa, antes que se iniciem, no instante seguinte, imagens e sons entrando como atores com a função de nos enganar, reinterpretando a realidade.

Eu trazia até mim, cada vez mais, ideias e inquietações enquanto caminhava, enquanto corria. Sozinho, cuidava de não trapacear a mim mesmo, como fingir que já havia percorrido tais e tais extensões previstas ou que não era preciso, como decidira previamente, chegar até a sombra de uma magnífica castanheira de um canteiro triangular. O que me acontecia então era quase metaforizar situações físicas absurdas. Por aqueles dias, sonhei que meus argumentos de qualquer espécie caíam aos dois lados de meu corpo e iam ficando para trás, enquanto eu corria e me livrava deles. Olhando atrás de mim, eram agora restos de papelão ordinário pelas ruas, destruídos e disformes, no limite de poderem ser reconhecidos como lixo reciclável. Por que isso? Por que meus supostos argumentos se tornavam restos de papelão em trapos? Não sei.

… Jonathan Swift, depois que se mudou para a Inglaterra e foi trabalhar como secretário de William Temple, passou a caminhar (e a correr) todos os dias. Provavelmente ele se sentia estressado, pressionado com as novas atribuições. Mas como você sabe essas coisas?, lembro de a Marjorie ter me perguntado quando ainda namorávamos. Ela ria e parecia intrigada. Como se sabem coisas, eu respondia. Lendo a respeito, por exemplo. O fato é que eu sei mesmo muitas coisas, e entendo que não servem para nada, não passam de curiosidade. Eu estaria correndo do mesmo jeito se não soubesse nada sobre Swift e seu novo emprego. Mas sim, há algo útil nisso tudo. Eu vejo um semelhante. Eu vejo que algo assim aconteceu antes de mim. Eu vejo que não estou sozinho…

Por qualquer motivo, sem planejar muito, acabei optando por uma trajetória definida, um mesmo caminho, escolhido apenas porque simpatizei com ele, com as coisas que se apresentavam nele, e que pretendia percorrer nos próximos dias, repetidamente. Era uma parte lateral dos quarteirões residenciais, que também se tornava uma rua de terra por uns metros, depois voltava a ser asfalto, entrava irregularmente na área industrial, tornava a sair, isso tudo ao longo de uma única rua, apenas dobrando-se suavemente em curva no trecho de terra e mato alto ao redor, entre os restos de um muro meio destroçado e inútil – já que o terreno que pretendia delimitar emendava-se com arbustos e com outros trechos de terra que a natureza, por si só, não delimitava. Mas ali perto tudo era um pouco disforme e não muito previsível. Um ou outro terreno baldio com lixo acumulado, uma ou outra casa com jardim frontal impecável, calçadas asseadas e geometricamente perfeitas, outras com pedras quebradas, frestas com gramíneas, e de repente o fim de uma rua, de um bloco de casas, e uma paisagem isolada e corroída, como nos arredores de uma cidade grande, suja de fuligem. Certa vez, fui além do trecho conhecido e cheguei a deparar com uma velha ponte de ferro, que eu não podia assegurar se era parte de minha mesma cidade ou se pertencia a algum distrito vizinho. Quase uma impressão de sonho. Um artista faria dessa imagem, a ponte esquecida, em meio ao ar filtrado em verdes-claros da vegetação próxima, uma pintura bela e intrigante. Na parte mais afastada, já vista como meio rural, corriam lendas sobre um velho moinho, desativado e demolido há décadas, capturado apenas em fotografias muito antigas: quando ainda envelhecia com o peso das chuvas, contavam os habitantes locais que quem passava ali por perto ouvia risadas de mulher.

Nesse caminho, havia uma extensão de relva, à frente de um pátio por alugar, pontuada por lajes cinzentas retangulares em relevo, talvez ardósia, pouco mais de um metro cada uma, em seu comprimento, e aconteceu que isso me fez pensar em pequenos túmulos – mas eu não queria. O espaçamento e a alternância entre as tais lajes reforçavam essa minha agourenta impressão. Miniatura de um cemitério simplificado. Pequenos sepulcros. Túmulos de crianças. Para que serviriam? Só para caminhar entre a relva? Será que ninguém viu isso quando se propôs esse desenho de lajes em relevo, essa disposição? Ninguém se importa muito, eu sei. Eu é que vejo coisas. Enquanto corria, fixei essa imagem a um tempo clara e sinistra, enquanto testava meus limites, arfando de cansaço, forçando o ar a me invadir com delícia, experimentando aquele gosto de zinco que provoca a secura e a insuficiência respiratória, livrando-me de cultivar por muito tempo impurezas geradas por minhas muitas indecisões. Correr e arfar daquele jeito eram decisões.

Também conheci uma casa de bela frente florida, quatro árvores de caule fino estendendo seus ramos até o muro vestido de plantas, formando um arco natural sobre os que passavam, e o calçamento em carranquinha clara, desenhando trechos agradáveis da estética humana entre outros trechos agradáveis de relva bem cuidada. De longe, à vista dessa casa e dessa calçada, eu ia desacelerando – queria passar por ali caminhando devagar, vivenciando suas sombras sua luz seus aromas. Isso me despertava a vontade de tocar a campainha e agradecer a alguém de dentro, só porque teria arquitetado a frente de sua residência de forma tão convidativa, agraciando e quase abençoando quem a encontrasse e valorizasse de fato a beleza. O ar me voltava, ritmo brando. Encantamento silencioso. Observando tudo ali. Parei sob o arco, de ramos finos, leve oscilação logo acima. Sorriso de ninguém ver. Gratidão. Como raramente se dá.

Trajetória prioritária: um caminho em particular, este que escolhi, como disse. Percorro sempre estes mesmos trechos, e o tempo médio de eu estar em atividade nas ruas acaba sendo assimilado mentalmente, sem auxílio de relógios, avaliado pela repetição e pelo costume. No início, eu estabelecia metas para mim mesmo: correr até aquela esquina da castanheira, ultrapassar aquele marco da prefeitura, tentar superar amanhã esses tantos metros… Mas não, eu não podia cair nessa, não queria cair nessa. Agora que dispunha de tempo livre para me soltar me libertar me deslocar, com a velocidade que bem entendesse, não iria, agora, alheio a qualquer pressão externa, cobrar de mim mesmo metas e números, feito num treinamento com objetivos específicos, como também não iria criar regras quando não havia ninguém para ver, como fez o conhecido náufrago sobrevivente da literatura, que não era livre em sua ilha, e assim como alguns infelizes, condenados por sua própria formação, viajam carregando fantasmas na mala, assim como… como… Não importa. Continue firme, sem propósitos. Olhe ao redor. Quanta coisa planejada em meio a tanta coisa não planejada, coisas da natureza sem nós. Uma pequena igreja luterana de fachada impessoal, pintada em azul-claro, sem nenhum atrativo, nem mesmo vidraças ou vitrais que sugerissem alguma claridade interior, passa por mim. Depois, destoando no nível do mais das casas por ali, uma remanescente de outros tempos, quando nem mesmo o bairro havia se formado, essa casinha sem graça, frente quase toda parede, sem recuos, lançada diretamente à calçada de cimento arruinado, soltando pedras, porta desproporcionalmente estreita e um vitrozinho horizontal estreito e alto – por que tão alto? Eu nunca vi ninguém por ali, mas sabia que, de alguma forma, essa casa antiga não estava abandonada. Seria até um lugar indicado para manter cativas eventuais vítimas de sequestro. Pensei nisso por acaso, com um arrepio. Eu odeio crimes. Por fim, entre os elementos que valiam a memorização dessa rota útil aos meus cansaços, um cimentado à frente de um terreno vazio, cheio de carrapichos e ervas rasteiras de espécies diferentes, no qual se seguia uma breve trilha de pegadas humanas, claramente as de um adulto e de uma criança, descalços, assim deixando sua marca enquanto o cimento recém-aplanado ainda transpirava úmido em algum ponto do passado. Uma trilha leve superficial sutil. Não havia profundidade nessas marcas. Como se os andarilhos não tivessem percebido que as criavam. E na hora veio-me ao jogo de associações (que o Marco Rangel pontuava, com sua razão, como inúteis) a imagem que vira num livro sobre as origens da vida humana: alguns metros de uma trilha com pegadas de hominídeos, estas sim contundentes e com razoável profundidade, em Laetoli, na Tanzânia, contando mais de três milhões de anos. Esses indivíduos devem ter pisado uma superfície mole, depois coberta por cinzas vulcânicas, e então os processos de solidificação e vitrificação subsequentes contribuíram para que as marcas de sua passagem se conservassem intactas, o que leva a crer que esses nossos semelhantes longínquos estivessem fugindo de algum evento ameaçador, talvez uma erupção a certa distância, já que não estavam correndo. Agora alguma coisa me paralisava por dentro. Milhões de anos é tempo demais. O que somos, quem somos nós, sob tão estreito foco de luz entre corpúsculos de poeira? Finas fatias de tempo, quase transparentes, de tão frágeis. Ainda assim, demarcadas de maneira tão sólida, mostrando-se a todos, entre desníveis trincados, cacos irregulares e obsidiana. As pegadas que vejo hoje, bem à minha frente, não permanecerão por outros três milhões de anos. Não há vulcões por perto, e a cidade é modificada destruída reconstruída ciclicamente. Restará menos sobre nós no futuro do que o que nos alcançou vindo do passado, nos passos de ancestrais desconhecidos, talvez tristes, talvez aguerridos, tentando salvar-se dos perigos, protegendo seus filhos pequenos, em sagas cansativas e comoventes, que ninguém contou. Nossos ancestrais caçadores-coletores não tinham nada para fazer da vida. Próximos dos outros animais. Que não têm nada que fazer da vida. Mesmo aqueles que construíram monumentos pirâmides catedrais inicialmente não tinham nada que fazer. Trabalhar é ter que fazer algo, mas não é fazer algo da vida. Finalmente é isto: quando você usa sua percepção, só então está fazendo algo da vida.

Parece que só eu sei (o que é absurdo, não posso estar sozinho nessa) que estamos condenados. Mas há como uma corrente de transmissão entre todos nós, em nosso tempo presente e também fora dele, pois, além do bem-estar pessoal, é preciso que se encontre algum propósito em larga escala, a necessidade da comunicação alertando sobre tudo que sabemos, palavra por palavra passada à frente, como na convocação de um esforço comum que possa redimir a todos, pautando, pelo menos, uma pista do que seria a razão de existir. É preciso que se encontre… É preciso? Outra de minhas abstratas necessidades, que não parece interessar aos outros. É preciso que se encontre o quê? Todos irão desaparecer para sempre, como eu. Apenas não se incomodam com isso. Nem o melhor nem o pior. Diferentes. Alcorão Bíblia Torá livros sagrados lendas de povos antigos servindo à farsa de povos modernos. Enterre seu último sonho – e seja livre. A um amigo, eu diria. Tranquilo e com boa vontade. Vamos por ali, aguente um pouco mais, respire forte. E se tudo isso for apenas narrações descrições retratos reafirmando que o homem não tem cura, de que servirá essa tal cansativa correia de transmissão?

Daqui, deste ponto, uma espécie de aclive ocasional, forjado por máquinas escavadeiras, abandonado assim após o arremate de uma grande construção próxima, depois coberto de verdes pela gestação permanente da natureza, pode-se avistar, mais ao longe, uma outra porção do bairro industrial, também desconfigurada hoje pela presença de terrenos residenciais. No fim da tarde, quase escuro, o ar tomado por um cheiro verde sombrio, surge um espetáculo silencioso de pontinhos-lâmpadas ganhando vida por toda a extensão horizontal, até certa distância, que estabelece os limites naturais para nossa visão. No alto, pontuando o ar embaçado contra um fundo lilás, umas falsas estrelinhas vermelhas começam a faiscar na extremidade de antenas e outras hastes escuras, partindo do topo de alguma caixa-d’água ou de algum recorte imitando uma torre. Eu me perguntava se alguém mais teria paciência de estar ali, de pé, recuperando-se de uma corrida, apreciando essas imagens tão conhecidas urbanas melancólicas e belas.

Tudo o que eu via e presenciava ia desenhando em mim um efeito paradoxal de afirmação e diluição. Fazia-me intencionalmente esquecer certas coisas, considerar outras. Correr sozinho pode ser perigoso. Um assalto, algo assim, alguém observando anotando planejando algo. Muitos animais andam em grupo para evitar serem atacados. Alguns predadores praticam a corrida de fundo, guepardos e leões; outros, a corrida de resistência, lobos e raposas, perseguindo a presa até que ela perca o fôlego e as forças. Se me acontecer algo, que se dane. Acontece com muitos. Somos todos a presa e o predador, por falta de inteligência coletiva. Afinal, nada me pertence muito. Só o meu tempo de vida vale alguma coisa. Para os animais, o mundo é emprestado. Eles não têm a consciência da morte. Um dia é só um dia. Para nós, o mundo é uma posse. Permanente. Formam-se nações. Forças armadas. Planos de domínio. Sim, muitas outras espécies compartilham o senso de território, lutam por seus limites, mas não, não é isso, não se trata disso. Vamos em frente, força. Por ali, agora. Tome fôlego. Tempo ocioso. Dia emprestado. Medo de quê?

Na parte mais baixa, após uma curva asfaltada entre terrenos baldios e não delimitados, a gente sente, em certos períodos do dia, um cheiro característico vindo das fábricas de biscoitos bolachas tortinhas, uma flutuação de farinha doce, misturado à emanação de certos resíduos vindos de algum outro ponto, por vezes um aroma intenso de balas de baunilha de rosquinhas de forno de mel de algo docemente enfumaçado, e tudo, bem no fundo, sustentado por um perfume suave de limão. Em fins de fevereiro, todos esses aromas ressurgem com agradável intensidade no ar úmido deixado por alguma breve tempestade clara típica sazonal, multiplicados pelas chuvas.

Mas o verão já era. Eu passava por uma árvore mais ou menos seca, mas forte e solene, que tinha arrebentado delicadamente as lajes de cimento cinza-claro da calçada ao redor dela: linhas aleatórias, mas seguindo algum padrão de quebra de resistência, de acordo com a simetria do piso, agora falseada por sua força viva. Ela sabia desenhar. Folhas pardas estendiam-se por perto, espalhadas pelo vento, a maior parte ainda sob o domínio de sua sombra. Chamam isso de chão sujo. Folhas mortas, chamando vassouras. Para aqueles que não sentem a obrigação da praticidade, esses são sinais imperativos e menosprezados do outono.

Eu ainda me detinha com certo encanto e alerta quando identificava cheiros próprios do Centro Velho, onde meu avô me levava quando ia fazer suas compras de artigos de pesca botinas fumo de rolo, basicamente o malte das cervejarias, fábricas que ocupavam quarteirões inteiros e em cujas paredes externas, altas sólidas espessas, umas ervas escurecidas cresciam sem ajuda de ninguém. Uma sensação se repete e abre outra sensação conhecida: talvez um mesmo aroma, mesma temperatura, a umidade do ar ou a claridade do sol em certa posição, seja qual for o motivo ou os motivos combinados, volta com intensa nitidez o menino correndo na poeira, voltando da escola, pensando que ao fim do caminho mostraria a alguém alguma coisa, afinal considerava que havia aprendido alguma coisa. Depois, achava que não valia a pena. O entusiasmo cansava. Pense em tudo sozinho, e os outros pensem o que quiserem. Não contem comigo para fins didáticos.

Mesmo um cheiro característico provindo das tubulações de esgoto, morno marrom e pegajoso, como o de águas esverdinhadas de algum canal, só por trazer minha infância na Carlos Gomes, já se traduz em um prazer estranho especial e inconfessável. (Eu sentia como bons e prazerosos uns cheiros de certas substâncias tóxicas como cola de sapateiro gasolina diesel querosene e até a fumaça escura e característica que saía do escapamento do ônibus ao arrancar de onde estava, em frente ao ponto onde esperávamos o nosso, e enchia o ar à minha volta, envolvendo meu tamanho de menino, enquanto minha mãe advertia que eu saísse logo de onde estava para não respirar “esse veneno”.) Tais impressões perdiam seu aspecto repulsivo, pois o que me retornavam era muito mais interessante do que alguma asquerosa sensação olfativa imediata. Além disso, devolviam-me impressões recentes, como na cama da Josie, dois dias atrás, o cheiro de seu quarto e de óleos cremes loções amêndoas algas alfazema, impossível identificar com certeza, mas compondo um aroma denso e característico, de forte feminilidade, que se mistura ao seu suor leve e às suas tardes perdidas comigo.

Minhas caminhadas, sem nenhum propósito específico além de me distrair do tédio e manter meu organismo ativo e o sangue correndo por minhas veias artérias e minúsculas galerias, acabavam servindo a essas retomadas de memórias, associadas conforme o elemento que se apresentava ao acaso, como o cheiro do esgoto ou uma flor de inverno. Não, mas eu não estava em busca do tempo perdido. Acontecia assim. Escolhendo palavras, processo mental integrado ao ambiente, para contar a mim mesmo, quando? Para contar a alguém, quando? De fato, eu estava cansado. Chega de ser o porta-voz dos retratos. Chega de ser o nome de todos. Eu tinha que encontrar um meio de ganhar dinheiro e me refazer do exílio.

Enfim, hora de voltar para casa. Uma porção mais arborizada, faixa semelhante a um crescente fértil, quase em forma de meia-lua, melhor seria dizer uma meia-pizza com uma mordida, onde se encontram essas residências como a nossa, de melhor padrão. Uma ou outra casa permanece vazia, anunciada para venda, em meio a alguma transação imobiliária ou disputa entre herdeiros. Um sobrado, especialmente, a cinco quarteirões de onde moramos, conta muito tempo abandonado, conhecido cenário de notícias que surpreenderam a cidade e todo o país, à época, com a lembrança de um crime horrendo, envolvendo uma criança pequena.

Projeto esvanecendo-se – Guia de leitura

7. Uma garota como outras – só que não – sequência

5. Das coisas todas – anterior

Imagem: Wassily Kandinsky. Cidade velha. 1902.

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