Office in a Small City por Edward Hopper

Liana pensa ter visto um vulto…

Texto publicado na revista Ponto & Vírgula, n. 45, maio/junho 2019.

Liana pensa ter visto um vulto de mulher à margem do acostamento. Não. Era o resto de uma árvore cortada. Sente ainda em seu corpo as vibrações do sexo recente, de uma tarde em que Danilo estava especialmente ativo. Intenso, ela chegou a pensar. Quase agressivo. Alguns movimentos se repetem como os fantasmas de partes amputadas, que parecem estar ali e não estão. Mas nesse caso é diferente, sim, ela o sente como uma vibração tardia, um mínimo latejar somado a contrações também pouco identificáveis, sumidas entre pulsações, como se estivesse sendo penetrada ainda, muito sutilmente. Liana já caiu na espiral entorpecida de seu transe, um estado de quase sonolência, destoante de seus olhos abertos, bem abertos, fixados na rodovia à frente, na chuva que dilui as formas. Um estado gradualmente irresistível, embalado pelo som suave do motor, pelo ruído contínuo da chuva e por seu próprio cansaço mental. Era uma mulher, sim, à beira da estrada, era uma moça encharcada, parada lá, cortada, era uma moça cortada como uma árvore cortada, como um resto de árvore, um pouco curva, um pouco triste, um resto de moça cortada. E eu aqui, neste assento aconchegante que… É um fantasma lá fora, um fantasma cortado sob a chuva, o fantasma de Ana Lúcia, ela quer me falar, ela me fala, eu posso ouvir… Você sabe. Só você sabe. Eu não sei, Ana, eu não consigo saber, eu não tenho certeza. Só você sabe. Não me deixe morrer. Eu não quero morrer para sempre. Só você sabe. Me ajude. Me ajude, Liana. Era uma árvore, uma árvore cortada. Era ela. Tenho vergonha, querida, de ter sido possuída por esse mesmo homem hoje, não queria que você soubesse disso, não queria que você soubesse que ainda sinto em meu corpo, em minha intimidade, até mesmo nos meus seios mordidos, as marcas do seu executor, esse homem atraente e amável, que esconde, num resumo trágico da entidade masculina, o caro amante e o dissimulado assassino. Me ajude, Liana. Estou sozinha. Só você sabe. Não me deixe morrer….

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