Office in a Small City por Edward Hopper

A canção de pedra

Após muito pensar, considerando que vivia bem entre os seus e tinha a reciprocidade de sua amada, entendeu finalmente o que lhe faltava: a eternidade.

Nasceram no mesmo dia, de famílias diferentes, numa região que a natureza ornou com colinas gramadas e regatos transparentes, duas crianças sadias, motivo de grande contentamento na comunidade dos pastores a que pertenciam seus pais.

O menino foi chamado Maro, em seu idioma, o eterno. Logo na primeira infância, demonstrara um interesse espontâneo pela natureza e suas formas. Por vezes, detinha-se diante de algum inseto e o observava com grande curiosidade, como se dele pudesse extrair um estranho segredo.

Os pais da menina batizaram-na Sibelle, em seu idioma, de óbvia beleza. Era delicada e deixava transparecer em seus olhos a meiguice das crianças sem maldade. Era bela.

Não havia, entre o pequeno grupo de pastores, outras crianças de sua idade. Maro e Sibelle brincavam juntos, cresciam e aprendiam sobre o que os cercava, com o tempo passando a explorar os arredores das cabanas, mais tarde toda a região das colinas. O pai de Sibelle os levava a conduzir ovelhas ao outro lado do regato, a velha ponte de pedra dando-lhes outras fronteiras que eles reconheciam memorizando trilhas, árvores ou rochas singulares.

Um dia, observando algumas rochas entre a relva, a pequena Sibelle, intrigada, perguntou ao companheiro:

“O que será que as pedras sentem?”

Maro abaixou-se ao lado dela, olhou de perto as pedras e deu de ombros.

“Ora, as pedras não sentem nada. Venha, vamos brincar.”

Um breve revezamento de estações, e a adolescência deu a ambos as primeiras formas da juventude, tudo tão rápido quanto o vento entre as árvores, os passeios com o pastor, o sol de duas fases e a primavera que os alimentava.

O jovem Maro aprendeu a apascentar ovelhas e cabras, a rachar lenha e construir cercados, além de visitar periodicamente a aldeia mais próxima a fim de buscar mantimentos. Sibelle auxiliava a mãe nas obrigações domésticas, mas, sempre que podia, acompanhava Maro em seu trabalho pelas colinas. Vendo-os assim sempre juntos, sentados em alguma encosta entre as ovelhas sonolentas, os aldeões não deixavam de comentar a possibilidade de um futuro romance entre os dois, enquanto, em marcha, o tempo por ali parecia evaporar-se com lentidão.

Maro contava à menina sobre as regiões mais afastadas do bosque, onde só um homem podia ir. Ela o ouvia atenta, imaginando as belezas e os perigos da mata, ele orgulhoso por fazer-se crer um destemido aventureiro. Assim passavam as tardes, dividindo fantasias e medos próprios de cada fase, antes que outra vez voltassem a primavera e a nova roupagem das colinas, não poupando a nenhuma criatura, entre pássaros e homens, de sua plenitude.

Numa dessas tardes foi que os jovens surpreenderam-se calados, entreolhando-se, envolvidos por um estranho impulso que no fundo já suspeitavam, na solidão das distantes encostas. Seus rostos estavam muito próximos, e os olhos do jovem pastor perderam-se no fundo claro dos olhos de Sibelle. Deliciaram-se com um primeiro beijo, inicialmente tímido, depois ardente, selando assim, como duas flores se tocam, um novo ciclo da existência.

Na comunidade, todos comentavam com alegria a confirmação de antigas esperanças, vendo-os de mãos dadas por toda parte, indo e vindo das colinas, menos um ancião mais cauteloso, lembrando a todos que não alimentassem planos tão certos quanto ao futuro, pois aquela poderia não passar de uma paixão de primavera, que se desfaz como se revezam as estações. Afinal eram ainda dois adolescentes, pouco sabiam do amor, não conheciam outro par de sua mesma geração e era natural que se atraíssem, sentindo-se únicos. Na aldeia, Maro poderia encontrar outra menina que o enfeitiçasse, e nada impedia que um jovem de outras terras, passando por sua gente, conquistasse o coração da meiga Sibelle.

“O que o destino nos reserva, em sua intrincada teia, só o amanhã nos dirá”, falou o ancião.

Para os jovens Maro e Sibelle, porém, tudo eram cores novas e maravilhosas, as brincadeiras da meninice eram aos poucos substituídas por novas e excitantes descobertas.

Logo a primavera se foi, os pássaros escassearam, as flores já mostravam cores esmaecidas, deixando os namorados tão apaixonados quanto antes. E as novas estações encontraram o mesmo casal possuído pelos mesmos desejos e sentimentos, contrariando as previsões dos mais velhos. Maro já podia tomar conta de si mesmo e fazia planos ao lado de Sibelle. Os mesmos sonhos completavam os ideais de Sibelle, que falava ao companheiro da vida que teriam em comum, ela que agora tinha os seios bem definidos sob a túnica e formas em sua plenitude, contrastando com seu sorriso infantil e sem vaidade.

Com o tempo, os jogos do amor, o conhecimento de seus corpos e os momentos de êxtase foram-se tornando cansativos, dando lugar a outra espécie de maturidade que demandava, entre outras sutilezas, a necessidade de novas realizações. Maro sempre fora um tanto mais observador que Sibelle e, durante esse período, havia assistido à passagem do tempo, que arrastava consigo tudo o que era vivo. Seus pais já não eram os mesmos: envelheciam lentamente, porém de forma visível. Alguns anciões já adoeciam e esperavam pela morte como por uma bênção. Na aldeia, crianças nunca vistas brincavam pelas ruas, enquanto velhas casas eram demolidas para que se construíssem outras. Tudo se transformava, agora, aos seus olhos, de uma maneira fugaz e incômoda, sem que se pudesse retroceder.

Logo o alcançou a consciência da morte, a que um dia haveria de separá-los. Esse pensamento o afetou de tal maneira que, cheio de ingenuidade e desespero, chegou a pensar em encontrar soluções que de antemão sabia impossíveis. Por mais que se vivenciasse e se cultivasse o amor, viria a morte, com sua garra negra, arrancar das colinas as flores humanas, para o esquecimento eterno. Eternidade! Sim, se pudesse todo amor ser eterno, se as tardes jamais terminassem, nem a juventude ou a vida… Mas as temporadas de flores provavam o contrário, tudo ressecava e renascia, e não as mesmas flores, não os mesmos animais, as mesmas pessoas. Todo ano, um bando de pássaros chegava às colinas por causa da estação, mas eram outros pássaros.

Angustiado, o jovem pastor procurava respostas, tentando em vão compreender o ciclo das estações, a finalidade de toda transformação e a marcha incansável dos seres, atravessando a mesma natureza.

Numa tarde em que esse pensamento tanto o atormentou, ele amou Sibelle como nunca antes, apertando-a e à sua nudez contra seu corpo, como se pudesse arrancá-la ao tempo e trazê-la consigo para fora das estações e dos ciclos. Ela, apesar de corresponder à intensidade de seu desejo, notou a mudança nos olhos de Maro. Quando, exaustos, deixaram-se ficar sobre a relva, Sibelle perguntou-lhe o que se passava.

“Nunca me senti assim antes”, disse ele. “Fiquei com medo de perder você.”

Ela sorriu como só as namoradas sabem sorrir.

“Meu querido… De onde lhe veio essa ideia?”

“Sei que você me ama, como também eu unicamente a desejo e a quero comigo. Mas sinto que nosso amor terá de se desfazer um dia, de alguma forma. São coisas que não dependem de nós.”

Silenciou por um momento, vendo que ela deixava de sorrir.

“Não compreendo”, disse ela.

“Sibelle, nossos pais já envelhecem, e um dia morrerão…”

“Maro, não é bom falar assim.”

“Mas é a verdade, minha querida. Apesar de cruel. Já aconteceu a você olhar uma árvore com atenção? Ela foi um dia uma semente, um pequeno caule que germinou, cresceu, fortaleceu-se, sentiu a chuva, o sol e o vento, e um dia secou até apodrecer completamente. Assim a vida passa por tudo. Esta é a nossa vez. Agora, tudo nos parece maravilhoso. Mas o tempo não poupa a nenhum de nós e flui como um rio, ou pior, arrastando tudo para lugar nenhum. Não que eu me importe com a velhice. Mas fico triste quando penso que tudo vai terminar um dia. Um de nós morrerá primeiro. Depois, o outro. Então não seremos mais que dois corpos sob a relva, a mesma relva que tanto nos serviu.”

Sibelle manteve-se em silêncio, parecia pensativa. Depois, triste. Acariciou Maro como tantas vezes fizera, porém, sabendo que, desta vez, não poderia ajudá-lo.

A partir de então, nunca mais foram os mesmos. Amavam-se ainda, mas com a sensação de que se perdiam, ao mesmo tempo em que se abraçavam. Cada dia era precioso e único, passava para nunca mais voltar. Maro e Sibelle entregavam-se a todos os jogos do prazer, desfrutavam um do outro com paixão devastadora, mas, no fim, sempre uma pesada nuvem de incerteza pairava sobre eles.

Maro um dia saiu sozinho e adentrou o bosque úmido, próximo ao qual muitas vezes ele e Sibelle brincaram na infância. Tudo ao seu redor parecia triste, agravado pelo silêncio das grandes árvores. Após muito pensar, considerando que vivia bem entre os seus e tinha a reciprocidade de sua amada, entendeu finalmente o que lhe faltava: a eternidade. Tanto ele penetrou o bosque que, quando por fim se deu conta, estava perdido. Nunca antes havia estado ali, e não conseguia fazer o caminho de volta. Começava a se desesperar quando notou, pouco acima de sua cabeça, um pássaro de uma espécie desconhecida, que o observava em silêncio. Os estranhos olhos do pássaro pareciam atraí-lo de maneira irresistível e, por um momento, pressentiu que poderia falar com ele.

“Que está acontecendo?”, perguntou.

“Sei de um caminho”, respondeu o pássaro.

“Devo estar delirando”, Maro angustiou-se. “Estou ouvindo um pássaro falar.”

“Não é um simples sonho”, tornou o outro. “Poucos são os que podem ouvir o coração dos pássaros. Há muitos segredos por trás da vida, e os homens mal os conhecem. Venha comigo e vou mostrar-lhe um pouco do que sei”, disse ele, erguendo-se num voo sereno e silencioso.

Maro o seguiu por algum tempo até deparar-se com uma clareira gramada, cercada por árvores úmidas.

“Aqui”, disse o pássaro, “seu amor conhecerá a eternidade, se assim for o seu desejo. É só o que posso contar. Tudo o mais dependerá de você.”

“Mas… O que devo fazer?”

“Volte a este lugar e confie em mim. Não me pergunte mais nada. Há sempre um limite ao que se pode desvendar e ao que os homens suportam saber. Agora, vou levá-lo de volta à sua gente.”

Maro viu-se obrigado a segui-lo pelo bosque até reconhecer algumas trilhas e árvores características que levavam de volta às colinas e ao caminho de casa. O pássaro havia desaparecido sem que ele o notasse.

No dia seguinte, logo pela manhã, buscou Sibelle em sua cabana e, embora ela estranhasse um passeio pelo bosque de maneira tão repentina, ele insistiu para que o acompanhasse. Passaram pela velha ponte onde, tempos atrás, debruçavam-se para atirar gravetos na água e recordaram com tristeza o que se havia perdido no tempo. Às margens do bosque, jaziam ainda os mesmos rochedos que um dia intrigaram a pequena Sibelle. Maro se lembrava, ela queria saber sobre o sentimento das pedras. De mãos dadas, penetraram por fim o bosque, para além das colinas, pisando folhas secas e ramos caídos.

“Onde estamos?”, perguntou ela a certa altura, vendo árvores desconhecidas ao redor.

“Não muito longe”, ele explicou.

“Maro, vamos voltar. Acho que estamos perdidos.”

“Não, ainda não. Conheço este caminho, quero lhe mostrar algo, vamos.”

Levando-a pela mão, seguiu as árvores em série que o pássaro lhe havia mostrado da outra vez, até alcançar o espaço aberto da secreta clareira.

“Por que viemos até aqui?”, perguntou Sibelle, ainda sem compreender.

Maro a conduziu ao centro da clareira.

“Eu sei que tudo isto parece loucura”, disse ele olhando-a de frente e com as mãos em seus ombros. “Mas vou lhe contar o que aconteceu. Tive um sonho ou uma espécie de visão, não sei, em que um pássaro me ensinou o caminho da eternidade. Há muitos segredos em todas as coisas, e não nos é dado conhecê-los ainda. Mas, de alguma forma, compreendi que muito do que desejamos pode tornar-se realidade, desde que nosso amor seja forte o suficiente.”

“Ainda não entendi…”

“Eu estive pensando no que seria o verdadeiro amor, se ainda precisamos nos tocar fisicamente para senti-lo. Acredito que ele possa existir mesmo que a distância separe nossos corpos. Sei que parece estranho, mas imagino que haja algo mais profundo e insuspeitável por trás de nós mesmos e, de certa forma, foi por isso que eu a trouxe até aqui.”

Sibelle sorriu, esperando que ele continuasse. Maro recuou dois passos, soltando-se dela.

“Agora, quero que você feche os olhos e confie em mim. Pense em nosso amor, pense em tudo o que vivemos até hoje, tudo o que compartilhamos de belo e verdadeiro, pense em nós dois com toda a força de seu coração…”

Sibelle obedeceu. Maro fez o mesmo, concentrando nela todos os caminhos de seu pensamento.

Então, mesmo sem se tocarem, sentiram que o amor era o mesmo, podiam adivinhar-se mutuamente até com maior intensidade. Tantas sensações invadiram suas almas em meio àquele poderoso silêncio apaixonado que, dos olhos claros de Sibelle e dos olhos castanhos de Maro, brotaram pequenas lágrimas de ternura e felicidade. Quando o auge de todo amor parecia haver-se revelado, sentiram que algo ainda mais estranho estava acontecendo: seus corpos enrijeciam-se aos poucos, o coração ia diminuindo seu ritmo até parar por completo. Já não podiam mover-se. Os pés, como cimentados, firmavam-se pesadamente sobre a terra, e os cabelos deixaram de ser soprados pelo vento. Perceberam, com estranha calma, que estavam se tornando pedra. Então era aquele o segredo do pássaro. Era aquilo a eternidade. As estátuas não morrem jamais: Maro e Sibelle, eternamente juntos.

Quando, por fim, na última etapa da fantástica metamorfose, os rostos se petrificavam, Maro e Sibelle abriram os olhos para sempre. O que se via por trás de seus sorrisos esboçados era a última grande sensação do amor humano. A partir de então, eles se amariam como só as estátuas sabiam amar.

Haviam alcançado, em lugar da morte, a felicidade sem fim de estarem eternamente juntos, em meio à clareira, no coração do bosque. Trocavam, com seus olhares, as impressões mais profundas de um amor inconcebível, o que jamais compreenderiam se fossem humanos.

Assim, marchou o tempo sobre tudo. Seus pais tiveram seus sofrimentos abreviados pela morte. Morreram também seus amigos e conhecidos; novas gerações conduziam rebanhos nas colinas; outros casais construíam suas cabanas, e tudo isso se dava sem que se ouvisse mais falar dos dois jovens desaparecidos na mata.

Na clareira, longe do ruído de qualquer cidade, miravam-se os amantes de pedra, e seus maiores desejos realizavam-se dia a dia. Sentiam-se plenos, completos e felizes, especialmente por perceberem que seus sentimentos não seriam mais retidos pelo tempo, ao contrário, desenvolviam-se sempre mais e indefinidamente.

Passava a primavera com seus pássaros, o verão ressecava as árvores, o outono fazia dançar as folhas pelo bosque, o inverno trazia a gélida mensagem de orvalho e vento noturno, porém Maro e Sibelle, imunes ao mundo exterior, às transformações da natureza e ao tempo, deliciavam-se com a eternidade. Adoravam-se com os olhos, pressentiam-se constantemente apaixonados. No inverno, cintilavam com o brilho do orvalho em seus olhos; o outono trazia esquilos brincalhões, que lhes subiam aos ombros; no verão, eram a sombra da relva ressequida, que tornava a estender seu tapete ao redor deles na primavera. As águas da chuva os revestiam de musgo esverdeado, o que também era motivo de alegria.

Tanto as estações se revezaram que a aldeia mais próxima à antiga comunidade dos pastores já era uma cidade movimentada, com suas ruas de comércio e veículos de transporte. A região das colinas, por sua vez, foi aos poucos sendo abandonada. Os pastores deslocaram-se para as cidades ou para outras terras, buscando outro tipo de vida, de acordo com suas novas necessidades. A cidade se alastrou, alcançou as velhas cabanas, construiu-se de cimento e aço, nada poupando em nome de seu crescimento. A pequena ponte de pedra foi demolida para dar lugar a uma moderna construção de vigas, que lançava sua sombra sobre o regato canalizado em concreto.

Tanto e tanto os desbravadores penetraram a mata que finalmente deram com as estátuas na clareira, justamente no local onde, segundo seus projetos, deveria ser erguido o monumento a um famoso imperador que governava, com outro título e função, todas as regiões ao redor. Mesmo maravilhados com a estranha beleza das esculturas, engenheiros e operários procederam à demolição, conforme instruções de seus superiores. Com alguns golpes de marreta, partiram ao meio os ombros e a cabeça do jovem Maro, os braços e o colo da meiga Sibelle, que tivera parte de seu delicado nariz arrancado por uma pancada em falso. Os últimos golpes acabaram por reduzi-los a rochedos irreconhecíveis, que se espalharam desordenadamente pela clareira, até serem recolhidos a um monte de entulho ao lado das fundações.

Num dia de folga em que as obras estavam suspensas, duas crianças detiveram-se junto ao entulho para descansar de suas correrias. A garotinha curiosa agachou-se ao lado dos fragmentos que foram um dia os olhos de Sibelle e perguntou a seu companheiro:

“O que será que as pedras sentem?”

O garoto, enxugando o suor da testa, olhou por um instante o rochedo que a menina examinava entre as mãos e concluiu:

“Ora, as pedras não sentem nada.” E puxando-a pela mão: “Venha, vamos brincar.”

Prosseguia o tempo em sua marcha, arrastando consigo tudo o que existia. As estações se revezavam sobre as cidades, voltava a primavera sem pássaros ou flores, nem mesmo a lembrança dos amantes monumentais.

Este é o sexto conto da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1983. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: Sonhos alados

Imagem: José Antônio Turci. Bruma da manhã (detalhe superior).

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