Office in a Small City por Edward Hopper

Viagens

“Tudo o que pudeste acumular com tuas mesquinhas armadilhas, teu dinheiro e bens, teu falso poder, extinguiu-se, desnecessário, tua fortuna hoje decai, esquartejada, numa comunhão de abutres. Tua imagem e teu nome fazem-se gradualmente apagados na memória dos tempos. Tudo o que eras dissolveu-se.”

Desde que dera o último adeus a seu próprio corpo e partira aturdido de seu derradeiro dia no mundo, o velho Miguel lamentava ainda o que havia deixado entre os homens.

A princípio, julgou ser outro nebuloso pesadelo o fato de poder contemplar-se a si mesmo estirado na cama (imóvel, pálido) e voejou à altura do teto feito morcego sem rumo, ansiando pelo fim do transe e o consequente despertar, para outra chuvosa manhã urbana.

A manhã não veio, e o trem dos sonhos negou-se a partir, pondo-o a emitir desesperados gritos que ele próprio não ouvia. Quando por fim convenceu-se de que não era possível voltar, pesou o que seria essa estranha viagem a terra nenhuma, cheio de constrangimento. O que lhe havia sido outrora objeto de sarcasmo e inevitável conclusão de tudo revelava-se outra nova e cruel descoberta, em que tudo ou nada do que armazenara em seus dias infames parecia ter algum significado. Tentava reformular seus pensamentos em meio ao rápido remoinho do que não sabia: a viagem sugava seu ser nevoento por desconhecidos caminhos. Por vezes, matizes de cores inusitadas. Flocos e fragmentos. Trevas.

Muito vagou até que a escuridão gradualmente se dissipasse, descortinando, entre vaporosos arranjos azuis, um cenário harmonioso, colorido de flores, insetos e pássaros, como se fosse a residência da primavera com tudo o que comporta sua plenitude. Cético, como sempre fora diante do que lhe parecesse belo e sereno, observou por muito tempo, mas sem deslumbramento, a entorpecente miragem que o cercava. Percorreu, como uma sombra, a extensão dos jardins, até o ponto em que se desgarravam das aleias, fundindo-se com bosques de árvores frescas e esparsas, por onde corriam brisas aromáticas, ligeiras. Uma clareira. Depois uma colina. Uma cascata de vidro, caindo feito véu entre rochas limosas e entregando-se ao curso natural das águas. Viajou e não se deteve diante de nenhuma maravilha, até que algo o surpreendeu: a imensa piscina em que inúmeras pessoas brincavam era margeada por um estranho mármore muito claro, que se estendia até perder-se na relva. Era um lugar luminoso, e a água formava, em seus movimentos momentâneos, cristais de luz que o fascinaram. Miguel aproximou-se, viu que todas as pessoas se pareciam entre si e tornou a desconfiar de outro sonho ridículo, ainda que se sentisse estranho por não pertencer a nada daquilo e irritado porque ninguém percebera sua valiosa presença. Já se dispunha a partir, quando a invisível mão apertou-se à sua.

“Quem …?”, perguntou surpreso.

“Um amigo”, disse a voz de vento. “Estou aqui para te guiar entre os lugares maravilhosos, porque ainda, Miguel, és cego ante a luz óbvia da vida.”

Dizendo isto, levou-o dali, e juntos atravessaram uns bosques nublados após os quais descortinava-se um cenário de rochas. Detiveram-se diante de uma delas, e esta era escura e irregular, maior do que Miguel, e era como se estivesse absorta em pensamentos estranhos e graves.

“Esta, Miguel, é a rocha que se formou com os fragmentos de tua incompreensão. É mais alta que tua cabeça e verdadeiramente existe. Não desprezes com tuas ironias o que consideras tolo ou desnecessário, pois esta é a barreira que te separa da felicidade.”

E estava ali, à sua frente, embora ele sorrisse, sarcástico e incrédulo. Aproximou-se, tocou a face petrificada do monolito e sentiu a estranha certeza de que o conhecia, ou de que o havia esculpido de alguma forma. Reconheceu a pedra como sua, sabendo-se surpreendentemente ligado à forma silenciosa e rústica, como de olhos fechados, porém emitindo vibrações confusas no fundo, bem ao fundo de tudo.

“Estou aqui para te ouvir”, tornou a voz. “Que tens a dizer sobre o que te cerca?”

Miguel baixou a mão e perguntou com cinismo:

“Quando vou acordar?”

Pareceu-lhe que a rocha avolumava-se ainda, imperceptivelmente, logo após essas suas palavras.

“Teu coração ainda é rochoso”, lamentou-se a voz. “Que foi feita de tua chance terrena?”

Miguel achou estranha a pergunta e disse ainda, sem perder o fio de seu sarcasmo:

“Fiz o melhor para mim mesmo, do contrário, com que outro objetivo viveria? Só lamento não poder trazer comigo o que me pertencia por direito.”

Houve um silêncio incômodo, então a voz novamente:

“O que parecia ser teu”, explicou, “na verdade a ninguém pertencia, nem mesmo a ti. Não estava claro que passaria cada um pelas coisas até o dia de partir para sempre? Tudo o que pudeste acumular com tuas mesquinhas armadilhas, teu dinheiro e bens, teu falso poder, extinguiu-se, desnecessário. Tua fortuna hoje decai, esquartejada, numa comunhão de abutres. Tua imagem e teu nome fazem-se gradualmente apagados na memória dos tempos. Tudo o que eras dissolveu-se.”

Miguel aguardou que a voz prosseguisse. Mas tudo se resumia de maneira clara e cruel, como no fundo já surdamente suspeitava: não se tratava de um sonho. Subiu-lhe um forte sentimento de perda, confusão e angústia e, como respondendo à pergunta que ele desta vez não soubera formular, falou seguramente a voz:

“Não esperes por outra manhã. Já não é possível voltar.”

Presa de sua própria dor, súbita mas pungente, sentiu que haveria de prosseguir, ainda que nada soubesse, pois nada se detém no tempo, ao contrário, tudo se transforma com maior ou menor lentidão.

“Estou aqui para te ouvir”, repetiu a voz. “Que tens a dizer sobre o que te cerca?”

“Que será de mim, agora que sei sobre a pedra?”, disse Miguel, e sua voz se fazia cheia de angústia. “Que bálsamo poderá cicatrizar uma ferida assim, aberta na eternidade?”

“Tudo se transforma”, tornou a outra voz, trazendo-lhe o que há pouco surdamente pressentira.

Sentiu então que não poderia ficar. E a voz, como pudesse ler suas vontades, anunciou:

“Estarei aqui, junto à tua rocha, sempre que voltares.”

Miguel conheceu tantas e várias paisagens que alguma vez julgou que se houvesse perdido. Extensões de areia desértica e florestas enigmáticas revezavam-se no possível de suas viagens. Já não sabia calcular o tempo, apenas pressentia a proximidade de lugares menos ou mais habitados.

Numa dessas paragens, oculto por trás de umas árvores, cujas copas amenizavam um sol feito em focos suaves, Miguel surpreendera um grupo de meninos e meninas sentados em semicírculo na relva e atentos a um ancião que se sentava sobre uma rocha quase simétrica.

“Quando sentirem que o vento sopra com fúria”, dizia o homem com voz clara e serena, “não deixem que com ele se arrastem também seus sentimentos. É apenas o outono, e toda existência é impregnada de outonos. Ora, o outono é o prefácio do inverno. E o inverno, apenas a certeza da primavera, que voltará com as florações que pareciam perdidas. Pensem nisso e não se deixem nunca abater. Uma estação não existe sem a outra.”

De início, Miguel ouviu desconfiado o que há pouco considerava apenas tolices, ainda um resquício do velho Miguel irrecuperável.

“Às vezes o sofrimento é tanto que julgamos próxima nossa morte. Mas não. A vida é feita de mil mortes, como cada verdadeira morte é feita de mil vidas.”

O ancião falou por longo tempo ainda, e Miguel sentiu que, por trás de suas palavras, floresciam as estranhas e verdadeiras intenções da vida. Ouviu-o com crescente atenção, até que ele se levantou e partiu, entoando suaves cantigas contra o crepúsculo.

Supondo que voltaria no dia seguinte, Miguel tornou à mesma clareira onde outra vez o mesmo círculo de crianças se reuniu. Assim, no dia seguinte e no outro, e tantas vezes deu-se o dia que as crianças já não eram as mesmas: os jovens despediam-se do velho mestre, enquanto novos grupos de meninos e meninas formavam-se quase naturalmente ao seu redor. Nessa ocasião, Miguel entendeu que era também outra hora de partir.

Reencontrou sua rocha escura no mesmo lugar, onde, sem que o soubesse, o guia aguardava pacientemente, pois ali não havia o tempo, como não o há em parte alguma, onde não o inventam. A rocha havia se retraído de alguma forma, fizera-se menor e mais baixa, tinha agora a altura de seu queixo.

“Estou aqui para ouvir-te”, apresentou-se a voz. “Tens algo a dizer?”

Miguel, desta vez, esboçou um sorriso, que ainda não sabia de todo sorrir.

“Aprendi muito, sobre muitas coisas.”

“De fato aprendeste?”

“Sim. Compreendo agora que tudo se transforma, o que antes era para mim muito difícil vislumbrar. Que nada se detém no tempo, mesmo os valores que eu tinha como certos. Quero também prosseguir. Quero avançar. Mostra-me mais destes lugares, anseio por quaisquer novas viagens.”

O guia indicou-lhe o extremo oposto, onde se erguiam montanhas azuis, envoltas em névoa.

A neblina, que jamais se dissipava, não lhe permitia ver além de um pouco mais à frente, o que o fazia sentir-se frustrado e como retrocedendo, após haver percorrido tantos lugares amplos e estando ele próprio predisposto à expansão.

Num caminho, encontrou um jovem que chorava, rosto entre as mãos, sentado nuns degraus em ruínas, diante de um abismo. Ao seu lado, jazia uma flauta.

“Por que choras assim, rapaz?”, perguntou Miguel ao tocar-lhe o ombro. “Tão bela é a vida, tão belos estes lugares para que se desperdice uma lágrima.”

“Eu sei”, soluçou o jovem, erguendo a cabeça. “Não é por isso que choro. Eu era feliz e atravessava esta região por acaso, tocando, como em toda parte, minha flauta, espalhando música que celebrasse a vida. Então vi coisas tão tristes que não pude mais sorrir.”

Mostrou-lhe, mais à frente e abaixo, entre a neblina que se dissipava sob o abismo, conforme deixava ver porções de uma cidade cinzenta, um povo caminhando cabisbaixo e como enlutado.

“Todas essas pessoas são solitárias, apesar de estarem juntas, e padecem desde há muito tempo, por causa de uma existência sem sentido. Não há saída para eles, pois se recusam a acreditar que existam outros lugares além de sua cidade triste.”

Miguel observou seus rostos obscuros, lamentou sua condição, mas não via motivos para chorar.

“Não compreendes”, disse-lhe o flautista. “Não se pode ser inteiramente feliz se outros não o podem ser. Os que sorriem enquanto outros sofrem perderam também o sentido do mesmo sol que nos une.”

Miguel voltou-se novamente aos habitantes daquela estranha cidade sob o abismo, lembrou-se vagamente de que alguma vez fora um cidadão como eles em alguma parte, então era como se uma mão de ferro tentasse esmagar-lhe o coração.

Outras imagens substituíram a primeira, outros povos e outras angústias, injustiças desfilaram ante seus olhos, a intolerância, a incompreensão, a dor.

Muito se passou, e muito ele viu. Por fim, retornou à rocha e ao guia, desta vez amargurado como nunca antes. A rocha encontrava-se, agora, reduzida pela metade.

“Estou aqui para ouvir-te. Que tens a dizer?”

“Tenho convivido com a dor. Lamento ter sido tão mesquinho em minha primeira oportunidade.”

“De fato, muito já conheces”, disse a voz. “Mas resta ainda uma prova.”

Sem que o guia prosseguisse, Miguel adivinhava que ainda havia algo, um caminho pelo qual não passara ainda: restava sofrer. Estranhamente, desejou o sofrimento como um fruto amargo mas nutritivo, partiu para muitos lugares onde foi humilhado, espezinhado e desprezado, injustiçado e oprimido. Trabalhou arduamente sem recompensas, até sangrarem-lhe as mãos e os pés, porém, quanto mais sofria, mais se sentia forte. Conheceu a fome e o frio intenso, as agruras da solidão e a doença. Nas noites mais terríveis, rolou sobre seu próprio vômito e delirou até perder os sentidos. Então percebeu, como num sonho, que percorria uma costa deserta sob um céu cinzento, onde o vento das imensidões oceânicas açoitava-lhe o rosto e os cabelos com fúria, dificultando-lhe os passos. Caminhou longamente até divisar um ponto a distância, ao qual se dirigia. Viu que esse ponto era um homem e estava nu, sentado na areia, voltado ao mar e de costas para o andarilho que o buscava. Mais à frente, viu que era um jovem e aproximou-se até tocar-lhe o ombro com certo receio. O outro voltou-se, e Miguel reconheceu nele seu rosto e seu corpo em outra fase da vida.

“Não te assustes, Miguel”, disse o rapaz. E sua voz era a do guia que era e tinha sido todo o tempo. “Sou tua forma mais clara, nós dois somos um. Esperei enquanto viajavas. Estou aqui para ouvir-te.”

O viajante de olhar exausto, rosto contorcido pela estranha emoção que mal podia dominar, murmurou, num resto de voz:

“Eu sofri.”

O jovem empenhou-se a esclarecer-lhe dúvidas que ainda torturavam seu coração. O vento fustigava-lhes os corpos na praia abandonada.

“Sempre há algo pela frente”, disse-lhe o guia. “Ainda que o não queiras ou a tudo desprezes, em outra parte cantam pássaros desconhecidos. Mas não te desesperes. Tudo virá a seu tempo.”

Sobre os motivos de tantos caminhos, Miguel confundiu-se sem encontrar respostas, e finalmente recorreu ao outro.

“Por que devemos existir? Por que a dor ou a felicidade, se não nos seria necessária nem uma nem outra? Por que ajudar outros a que cheguem até aqui, se não saberão, como nós, por que devem existir?”

Seu duplo voltou os olhos ao oceano.

“Essas perguntas encontram em si mesmas suas respostas.”

Miguel percebeu que se tratava, antes de tudo, de existir, simplesmente. O prazer de existir e sentir-se pleno, ainda que não o pudesse dizer a si mesmo com palavras. Contemplou também o oceano. E ouviu quando o outro se manifestou numa ênfase entrecortada de encantamento e felicidade.

“É maravilhoso, Miguel. Sempre foi maravilhoso.”

Percebendo o tempo de partir, retornaram à rocha escura, agora um mísero rochedo quase oculto por umas ervas tímidas e pronto a ser esmagado na palma da mão.

Miguel já não enxergava seu guia, seu outro, pois eram agora um mesmo ser que voltava à piscina de mármore e nadava e brincava com todos, em quem todos se reconheciam e se realizavam de maneira recíproca, pois finalmente se integrara a tudo o que existia.

Deixando novamente as águas claras, conheceu jardins de vibrante floração, e tanto alcançou os mais altos picos do universo como mergulhou nas faixas abissais, para depois tornar à tona de oceanos inesgotáveis. Descansou nas ruínas dos arquipélagos, entre gaivotas que assentavam e alçavam voo, porém, quando se deu conta, já não estava ali mas em meio a uma nuvem de estrelas que o envolvia de maneira alentadora. Seus sentidos tornaram-se um, e ele pôde então sentir o gosto e o cheiro da vida, ouvir a música da imortalidade, enquanto em seus olhos se cristalizava uma primeira lágrima dessa espécie, feliz e comovida, entre as nuvens luminosas das constelações imensas.

Este é o último conto da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1983. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: Diversos caminhos do asfalto

Imagem: Ilustração da edição original (detalhe superior).

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