Office in a Small City por Edward Hopper

Tag: contos

  • Vida nova, sangue novo

    Não, não sou audacioso, sei disso. Não tenho certos valores apreciados pela maioria. Mas não estou vencido. Tenho planos subversivos para mim mesmo. Há quase um ano, trabalho num escritório de cobranças e tenho me aguentado. Hoje eu me sinto à vontade com os colegas, e eles também fingem que nos gostamos. Quase um ano…


  • A Lanchonete Mangueira

    A história é contada pelo vencedor. Não. Nem sempre. Esta história será contada por mim. A manchete era praticamente a mesma, quase a mesma de um ano atrás, pouco antes do choque econômico. GOVERNO GARANTE QUE NÃO HAVERÁ CHOQUE Segui pela galeria que me encurtava o caminho e refugiei-me no salãozinho sossegado, silencioso, da Lanchonete…


  • Que sonhos teriam valido a pena?

    Alguma coisa com sua própria consciência, ela me contou. Portanto, parecia inevitável que que tudo acabasse assim. Tornei a encontrá-lo no dia seguinte, tornou a falar no Delfino. “E o Delfino, hein?” “Pois é.” Delfino, como pudera entregar-se assim? Sem um gesto. Sem um grito. Na verdade, eu não queria pensar mais nisso. Há pouco…


  • Vina entre os morcegos. Abertura

    Medina, seu santo sorriso. Não se aborrece com nada, não desconfia de nada. Nunca reagiu, nunca agrediu, nunca namorou. A maneira trágica, brutal e bizarra com que nosso amigo Delfino tratou de resolver todos os seus problemas e livrar-se do mundo foi confirmada por Medina em um de nossos desastrados encontros de rua. “Soube do…


  • Sonho 3402. Voos noturnos

    Nossa casa, para efeitos noturnos, é um avião. Voando sobre certas regiões da Europa, podemos ver sinais dos festins das bruxas. Nossa casa, para efeitos mágicos, é um avião. À noite, depois de fecharmos tudo, a jovem nobre Dona Isaura de Bor e eu, depois de trancarmos a porta envernizada da sala, que separa de nós o…


  • Era ela, ela mesma

    A esquina, a avenida arborizada, mesas ao ar livre de um conhecido café. Eu a vi como num sonho, um sonho inesperado e arrebatador. Minha vida tem poucos atrativos, quase nada acontece, e só me é permitido escrever isto, dizer o que penso e assim expressar-me, porque sou inofensivo. Um jovem solitário, pouco atraente, sem…


  • O que tenho em comum com os tiranossauros

    Ante a nudez da menina rendida, a saliva escorre-me entre os dentes afiados. A fome e a sede forçam-me a dominar essa adolescente frágil a quem não resta senão sucumbir às vontades que amplamente se desenvolvem na penumbra do predador lascivo, poderoso, efêmero. Lisette Maris em seu endereço de inverno 53. Antropologia aplicada – próximo…


  • O caminho das ruas de flores vermelhas

    Se lhes digo “Olá!”, então passa um silêncio. Se me aproximo calado, ouço que murmuram entre si segredos inacessíveis. Ignoram-me. Mas estão ali. Eu as reconheço, sem dúvida, mas elas não a mim. Peço-lhes que me escutem ou devolvam um sinal que me permita compreender. Algo, o que finalmente me faça compreender. Depressa, antes que…


  • Braile contra a luz

    Admirava-me que as palavras estivessem presas às coisas e não caíssem como um ramo seco de uma árvore. Que um vento não as embaralhasse e uma árvore não passasse a se chamar poste ou cavalo. Um cão, menino. Uma casa, ratoeira. Um homem, pedra. A literatura não é outra coisa que um sonho dirigido. […]…


  • Os amantes das irmãs Novaes

    Os amantes das irmãs Novaes

    Recordações autônomas, indesejadas mas inevitáveis, como a gaveta do criado-mudo em que seu pai guardava o revólver. Entre eles, também havia o predileto. Elas o dividiam. Nunca houve questão quanto a isso. De resto, não era de se esperar que duas estudantes vindas da capital, hoje ocupando um discreto apartamento na parte alta do bairro…


  • À beira de um ataque de abismos

    À beira de um ataque de abismos

    Claro que não sou o que normalmente chamam um homem de boa vontade, nunca fui. Mas nesse dia, especialmente, eu me acreditava a criatura mais desprovida de vontade do mundo. No centro da cidade, entrei por uma galeria que me serve de atalho e, com isso, ganhei algum tempo. Quero dizer, não perdi tempo. Quero…


  • Arremessando a bola para bem alto

    Afinal, o que vale viver de uma maneira ou de outra? Às vezes passo por ali, outras vezes não, o que não faz nenhuma diferença. Logo acima, na travessa onde moro, abre-se uma entrada sinuosa a partir da qual a rua se bifurca e onde moram muitas pessoas, quase se esbarrando de tão juntas, num…


  • Aperfeiçoamento no processo de derrubar coisas

    Aperfeiçoamento no processo de derrubar coisas

    Dificilmente leio alguma coisa até o fim. Meus livros são todos interrompidos por papéis avulsos, que enfio neles como marcadores, e páginas dobradas com orelhas nada exemplares. Eu tinha ainda uns dez minutos, à toa. Duraram uma eternidade. Caberia minha vida inteira nesses dez minutos. À toa. Abri o periódico literário que havia chegado na…


  • Pensamentos preguiçosos e pequenos sustos

    Pensamentos preguiçosos e pequenos sustos

    Afinal, o que vejo mais do que esta manhã? O que vejo além do que apenas me cerca, excluindo-se o que tendenciosamente imagino? A primeira coisa que vi nesse dia, ainda pela janela, foi o vizinho da casa em frente, que acabava de chegar com seu carro meio engasgado de frio. Fiquei ali, sem pensar…


  • Mas hoje era outro dia

    Mas hoje era outro dia

    Pensei ter sentido um novo calafrio, não tinha certeza. Teria sido talvez um último resquício daqueles tremores e impulsos febris. Ou uma febre menor. Ou um princípio de… Não, não era nada. À noite, subi ao quarto não pretendendo mais do que deitar e dormir. Estava frio. Como não havia jantado, a febre alastrara-se por…


  • Febre – e outras emoções em cores

    Febre – e outras emoções em cores

    Tudo o que existia participava de alguma forma do calidoscópio de surpresa. A essa altura, eu já sentia a minha febre. Hoje acordei muito cedo, antes mesmo do despertador. Isso não é normal, pois geralmente tenho um sono de pedra e duvido até que conhecesse o sol da manhã, caso não houvesse despertadores. Mas algum…


  • Como se nunca eu me conhecesse

    Como se nunca eu me conhecesse

    O maior herói é o homem comum, no dia qualquer. A maior aventura, a que não acontece. Embora a primavera se abrisse em sua plenitude, e embora eu não encontrasse um início menos arcaico para esta narrativa, poucos eram os jardins e canteiros de calçada onde umas pequenas flores desabrochavam, sem alarde, sua beleza. É…


  • O inverno segundo teu semelhante

    O inverno segundo teu semelhante

    Em um mundo onde as coisas tendem à dissolução, onde o tempo e a morte minam o rosto das pessoas e as arrastam em seu torvelinho cotidiano de estranhas situações, no meio de tudo, um menino pede socorro. Não há nada e nem pode haver algo mais caro ao ser pensante do que a vida.…


  • Serviço de rua

    Serviço de rua

    Não, não sou audacioso, sei disso. Não tenho certos valores apreciados pela maioria. Mas não estou vencido. Tenho planos subversivos para mim mesmo. Há quase um ano trabalho num escritório de cobranças, e tenho me aguentado. Hoje sinto-me à vontade com os colegas, eles também fingem que nos gostamos. Quase um ano nos separa de…


  • Correspondência

    Correspondência

    1 Chega uma carta com vapores de além-mar e bandeiras enigmáticas – dentro dela e deste mundo, outro mundo se constrói. Claro envelope, mensagem das sombras. Dentro dele, tudo se resume: a terra e seus escravos, as despedidas nas estações, os pássaros e o sangue, as pontes com seus suicidas, as manhãs, os sinos fúnebres,…


  • Estudo com cristais. O réquiem das crianças (13/13)

    Estudo com cristais. O réquiem das crianças (13/13)

    Penso ver em seu rosto todos os rostos. Em todos, o preço da paz. Em todos, o impulso da vida. Em todos, a face da morte. A trilha de lajes hexagonais atravessa a noite – e a tormenta. Leva-me a essa manhã de árvores que, aos poucos, se dividem e se alinham entre alamedas, muretas…


  • Estudo com cristais. Marina (12/13)

    Estudo com cristais. Marina (12/13)

    Não há linha do horizonte, sim um cinturão de neblina sobre um oceano de cobre. A tarde lenta e real, desde já perdida. Sentado sobre a rocha mais ampla, entre outras que formam o semicírculo irregular nesse extremo da praia, diviso, a distância, o vulto em movimento, uma mulher. Esse corpo, conforme se aproxima, ultrapassa…


  • Estudo com cristais. A tormenta (11/13)

    Estudo com cristais. A tormenta (11/13)

    Amo os castelos porque são definitivos. Cada grande bloco mantém-se ali, desde um dia antigo, algo semelhante às esculturas milenares, que o tempo sinaliza, mas não arrasta. Os cristais de gelo, embora ostentando formas simples, têm a alma intrincadamente ramificada. Não cai a neve, e não a espero. Volto-me ao céu, aos cristais que o tornam…


  • Estudo com cristais. Criptógamas (9/13)

    Estudo com cristais. Criptógamas (9/13)

    A multidão, cidade refletida, o ponto de ônibus, o ponto. Então eu a vi. Nesse dia, eu a vi. A flor de seis pétalas pode ocorrer em qualquer estação. Qualquer parte. Mesmo onde não se supõe um jardim. Ela é rara e efêmera. Dá-se a todos, ainda que poucos a apreciem em seu esplendor momentâneo,…


  • Estudo com cristais. Carina (8/13)

    Estudo com cristais. Carina (8/13)

    Rosto atrevido, gestos audaciosos. E tem medo. Frágil, como todos os fortes. “Você nem olha pra mim. Será que é homossexual?” “Quem sabe?” “É ou não?” “Se fizer meu tipo…” “Chegue mais perto.” Carina me parece próxima à geometria: rosto anguloso, realçado por cabelos curtos, queixo em linha reta e lábios finos, de corte preciso.…


  • Estudo com cristais. Verdes renovam o silêncio (7/13)

    Estudo com cristais. Verdes renovam o silêncio (7/13)

    Pressinto que as respostas estejam por toda parte. Aqui mesmo. Na água que verte. O jardim que me cerca. O relógio de sol. O labirinto de pedras. Clave de Sol talvez seja a versão flutuante do que, nas abelhas do alvéolo, múltiplas de seis, é consistente e carnal. Quero que saiba, Clave de Sol: somente…


  • Estudo com cristais. Cristal quase um relógio (3/13)

    Em outro quadrante eu a encontrei, num quarto sem endereço. Tentarei adivinhar seu nome, seu verdadeiro nome, antes que o hexágono torne a girar, quase um relógio. Registrar a palavra diamante é quase cristalizá-la – e cristalizá-lo –, cristalizar o hexágono bidimensional, plano e limitado, símile do papel que o comporta e da palavra que…


  • Estudo com cristais. Clara (2/13)

    Estudo com cristais. Clara (2/13)

    Os carrilhões da catedral mais próxima situam-nos à meia-noite. Cabe a nós agora recriar nossa parcela de noite, a noite que perpassa o mundo. O odor característico que emana dos bastidores, tenho certeza, para sempre há de tornar-me a esta furtiva impressão de clandestinidade. Clara fecha a última porta. Acende uma luz tênue que mais…


  • Estudo com cristais. O prisma e a pirâmide (1/13)

    Estudo com cristais. O prisma e a pirâmide (1/13)

    Há algum calor em sua figura distraída, dispersa. Uma fragilidade que qualquer palavra pronunciada violentará como se trinca um espelho. A feira de artesanato me lembra que toda paz tem seu preço. Desde os primeiros ourives e os artistas rudimentares, a colmeia humana tem sofrido toda sorte de flagelos e tumultos que, de certa forma, se…


  • Lisette Maris. A oitava noite mais fria de todas (15/15)

    Lisette Maris. A oitava noite mais fria de todas (15/15)

    Voltarei a vê-los sob outras neblinas, que eles talvez não se impressionem muito com meu relato inverossímil. Minha história é só mais uma história entre muitas. Dalma surge à entrada da barraca, vem até mim. “Então? Trouxe algo para eu ler?” “Não trouxe nada”, respondo. “Não tenho nada.” Dalma percebe que estou prestes a chorar.…


  • Lisette Maris. Um sonho afundando em sangue (14/15)

    Lisette Maris. Um sonho afundando em sangue (14/15)

    Outra vez parece sorrir entre as presas, como saboreando minha impotência. Quer apenas assistir à minha confusão e com isso enriquecer seu ódio. Volto-me ao caminho. Vou me encontrar com Damares. Aperto a gola do casaco contra a brisa glacial, sigo por minha rua, de árvores esparsas, gramados das casas confundindo-se e repetindo-se até o…


  • Lisette Maris. Um silêncio de grandes ventos (13/15)

    Lisette Maris. Um silêncio de grandes ventos (13/15)

    Faço um sinal para que embarquem enquanto é tempo. Mas já não podem ouvir nem se mover. São agora formações de gelo presas à paisagem da estação. E nada esperam. E nada desejam. Do alto de meu posto, dou as últimas ordens para que Lisette Maris ponha-se a caminho. Damares, tão bela quanto no sonho…


  • Lisette Maris. Sinais sutis e sinais gritantes (12/15)

    Lisette Maris. Sinais sutis e sinais gritantes (12/15)

    Tudo que eu queria esta noite era contar a ele. Agora eu o sinto como um espião disfarçado entre os mortos. Um animal mitológico que guarda em seu íntimo uma brecha entre as últimas árvores do inverno. Peço ao gigante Diego que a chame na barraca. “Então? Parece que veio correndo, que foi? Quer um…


  • Lisette Maris. A sala (quase) secreta das almofadas (11/15)

    Lisette Maris. A sala (quase) secreta das almofadas (11/15)

    Ela ouve também, fecha o casaco, recompõe-se. Seu pai parece próximo. Tornará a passar por aqui em breve. Estará de óculos. Quando vi Damares pela primeira vez, ela não tinha nome. E hoje me atrevo, quem diria!, a confessar-lhe, na sala das almofadas, meu sonho ridículo com o capitão Newman, especialmente detalhando a sequência em…


  • Lisette Maris. A viagem improvável do capitão Newman (10/15)

    Lisette Maris. A viagem improvável do capitão Newman (10/15)

    Todos os ruídos que produz essa partida espetacular são devastadores. Ao mesmo tempo, incrivelmente suaves. – 57 – _________________________________________________ Capítulo XIII A DESCOBERTA O escaler aportou no flanco norte, oposto à rota da baía. O capitão Newman mediu com os olhos a distância da nau ancorada, girou o rosto bem barbeado, de queixo intrépido, e…


  • A cor intensa que nasce e morre com os humanos

    A cor intensa que nasce e morre com os humanos

    A era geológica presente terá mais um nome no futuro. Todos os crimes irão prescrever. O tempo esmagará os discos rígidos. Não haverá nada escrito nas nuvens. Dorme. Tenta dormir, por enquanto. Acompanhado, como sempre, como se dá com todos, de imagens e sons outra vez imaginados, a conhecida miscelânea que se vai confundindo nas…


  • Lisette Maris. Seus olhos estreitos, sem se desviar das cinzas (9/15)

    Lisette Maris. Seus olhos estreitos, sem se desviar das cinzas (9/15)

      Olha as cinzas como fixando um ponto para além do que vê. Sinto que vou me engasgar não com a saliva, mas com o silêncio. “Essa moça acredita em Deus?” “Não sei. Ela parece ser muito inteligente.” “Como? Ainda não perguntou isso a ela? O que tanto vocês conversam então?” “Ora, mãe. Você nem…


  • Lisette Maris. Mapas e diários de não viajar (8/15)

    Lisette Maris. Mapas e diários de não viajar (8/15)

    Entre outras considerações, esse meu ancestral remoto acreditava, aliás, que os homens necessitavam dos diários de bordo, não tanto como um relatório de viagem, mas como um registro da solidão. Amanhã encontrarei Dalma e Diego junto ao fogo brando, contarei a ela de como levei Damares pela cintura sob os arcos do bairro velho, de…


  • Sonho 1664. Hotel em outro lugar

    Sonho 1664. Hotel em outro lugar

    Não sou dado a sinais misteriosos ou aparentemente sinistros. Considero a realidade como ela se apresenta, com praticidade, sensatez – por vezes, até com bom humor. Agradou-me a primeira sala, onde se dispunham um sofá, mesa de centro, duas poltronas convidativas e umas plantas artificiais. Estranhei o aviso pregado à porta pelo lado de dentro,…


  • Lisette Maris. O doce ferrão de sua primavera secreta (7/15)

    Lisette Maris. O doce ferrão de sua primavera secreta (7/15)

    Ofereço-me ao que quer que faça, sinto-me capaz do que não posso, por ela. Seus olhos esperançosos lançam-me centelhas e cristais marinhos. Diário de bordo. De acordo com a posição do Sol e a fase dos calendários, Lisette Maris atravessa agora a última etapa desta estação glacial. Damares não me pergunta sobre o inverno, talvez…


  • Lisette Maris. Caminhar, como faço agora (6/15)

    Lisette Maris. Caminhar, como faço agora (6/15)

    Às vezes é preciso viver sem esperanças, sem esperanças mesmo, continuar. Caminhar, como faço agora. Crescer, fatalmente. Gosto de acordar muito cedo e flagrar as casas fechadas, dentro das quais as pessoas se encontram ainda na faixa nevoenta que separa do sono os calendários. A manhã mal instalada, focos frescos e sombras remanescentes, tudo se…


  • Lisette Maris. Enquanto temos carne, ossos… e sangue (5/15)

    Lisette Maris. Enquanto temos carne, ossos… e sangue (5/15)

    Os cabelos soltos escondem-lhe o rosto de perfil, cílios trazendo um último reflexo da íris. É mesmo o que vejo? Damares é especial, e isso me corrompe. “Compreendo que poucos podem ser livres dos Evangelhos, menos ainda poderiam considerar a vida com outra maturidade. Mas Karl Allen não ajuda muito, se é que me entende.…


  • Evolução dos ideais clandestinos

    Evolução dos ideais clandestinos

    Mas por que esse pânico, que isso? Milhares de pessoas são cadastradas naquela arapuca. Basta trabalhar pela justiça. Basta denunciá-los. Basta ter consciência. E quanto aos que estão sendo torturados e mortos? Não pensou nisso? Então, podemos continuar sendo covardes? (Hélio) … foi fuzilado há uma semana. Fuzilado? (Valéria) Quando enviamos as cartas (Caio), ele…


  • Eco, a cidade dos demônios

    Esses tais demônios vinham de uma estirpe que fora gerada entre velhos espelhos de um sótão, assimilando desde cedo travessuras desse tipo, brincando de refletir uns e outros em cacos irrecuperáveis. Como parte da rotina e invariavelmente, qualquer morador podia ver o senhor Antão Antônio de Deus pintando o muro de sua casa pela manhã,…


  • O beija-flor de Ruschi

    O beija-flor de Ruschi

    Não era meu o pecado, era dele, mas eu estava junto.Segunda-feira Desde que me dou por gente sou tratada que nem filha nessa casa. Porque nunca tive pai nem mãe e ninguém eles me criaram me deram roupa e comida e me ensinaram ler e escrever. Nunca me deram dinheiro mas nem nunca eu precisei.…


  • Lisette Maris. Objetos que se movem (4/15)

    Minha mãe, como os outros, impressiona-se muito com esses truques vagabundos que não nos ajudam em nada. Ela me abraça como há muito não faz, realizada e nervosa, contagiada pela euforia reinante, com o veneno do triunfo. Um casal de mesma estatura, ambos exageradamente polidos e atentos às normas da boa educação. Muitos anos de…


  • Lisette Maris. Persistência do inverno (3/15)

    A bruma que nos envolve é a mesma que nubla seu silêncio. Olhos muito claros, azuis e intensos, ela parece atrair luz. O inverno já dura treze anos. Ninguém sabe por que isso acontece, e também não se sabe quando vai acabar. Mas ninguém se espanta, ninguém nada pergunta. Nosso velho vizinho, em sua ronda…


  • Lisette Maris. Damares (2/15)

    Seria capaz de qualquer sacrifício para que essa manhã jamais terminasse. Damares olha-me de frente, e seus olhos atiram-me uma lâmina de luz. A gárgula de caninos dourados prenuncia as presas ruidosas que investem contra a grade do jardim. Uma criada inexpressiva aconselha que eu entre pelo portão lateral. Damares mora nesse sobrado razoavelmente luxuoso,…


  • Lisette Maris. A escuna ancorada (1/15)

    Lisette Maris. A escuna ancorada (1/15)

    Volto-me ao caminho, quero esquecer esse endereço por enquanto. Vou me encontrar com Damares. Tive sempre o gosto por estas histórias. Tanto e tão bem que finalmente perdi todo poder sobre mim mesmo.          – Fiódor M. Dostoiévski, Memórias do subsolo A casa onde moro é uma escuna, mas poucos compreendem. Uma fragata, já disseram.…


  • Diversos caminhos do asfalto

    Diversos caminhos do asfalto

    Jegue não pôde dormir nessa noite. Tentou passar ao cão, em sua linguagem simplória, toda a felicidade que sentia, sabendo que terminaria seus dias em paz, antes de partir para o novo mundo. Jegue vivia só para trabalhar. Condenado a conduzir uma velha carroça pelas ruas da cidade muito movimentada, escravizado por seu proprietário, homem…