Office in a Small City por Edward Hopper

Sem adeus

“Nosso pai nos deu os livros”, lembra o irmão. “Isso foi nosso.”
É verdade. Com isso, matamos os deuses. Roubamos o fogo. Pagamos o preço.

O pai está lá, pálido. Foi um bom homem. Nem tanto. Mas nessas horas só vale a pena concordar com tudo. A irmã chora muito, e isso o incomoda. Sai, volta. O mesmo pranto contagiante (não parou ainda?), entrecortado de murmúrios, frases mal construídas e, por sorte, quase incompreensíveis. Deixe, ela está vivendo sua natureza. É de sua natureza chorar assim, balbuciar, clamar sofridamente por justiça, faz bem. Você também chorou um dia (aliás, intensamente, exageradamente, lembre-se), já chorou antes, vai chorar depois. No momento, não: é de sua natureza. Sua irmã não está fingindo, nem você. O pai, ele próprio, ironizava velórios assim. Leitor de almanaques, filosofava à sua maneira sobre tudo que existe – que é só o que temos. Pegava-o sob a Lua: imagine, a mesma que aqueles egípcios viram há tanto tempo… Ele contemplava também, menino. Hoje pensa que ela continua aí, girando pesada, ao largo do nosso planeta. Quantos deuses e deusas foi a Lua antes que nos contassem que ela não passava de uma bola de sílica e cal, com crateras de impacto, desprovida até de atividade vulcânica, nada de vida, nem um micróbio, imagine. E era uma deusa.

“Nosso pai nos deu os livros”, lembra o irmão. “Isso foi nosso.”

Sim. É verdade. Com isso, matamos os deuses. Roubamos o fogo. Pagamos o preço. A mãe não pagou por nada: acreditava na Igreja, nas versões oficiais, nos textos sagrados, nas ideias fixas, e nunca lhe importaram as descobertas desconcertantes, sucessivas, espantosas, anunciadas ao longo das últimas décadas. Uma sóbria figura de cera, sentada e imóvel, algo alienada, mirando qualquer coisa à frente, o que pudesse ser filtrado sem nenhum esforço por suas lentes grossas e esverdeadas. “Seu filho chegou.” Ela parece não reconhecê-lo. Alguém tem que levar a mão dele até a dela, ela porque parece incapaz de se mover, ele porque não queria fazer isso. “Seu filho. Chegou.”

De que serviram todas as divagações e reflexões do pai, se ela continuava indo à igreja? De que serviu todo o bem-sucedido esforço humano de compreender a vida, se ela conservava seus deuses de cera? Que é a eletricidade contra o mau-olhado? Ou a psicanálise contra os espíritos da floresta? Ou todas as leis da física contra os alienígenas que aportam, dia sim, dia não, em qualquer região rural do perímetro urbano? E tudo isso, tragicamente, desembocando na repetição de alguns ditos famosos que o pai tinha gosto em reciclar, com certa afetação enfática. “Só sei que nada sei!” Referia-se a esses homens, autores de tais máximas, como os grandes. “Já diziam os grandes…”, “A obra dos grandes…” Os grandes, que haviam morrido antes dele. Os imortais. Os que morreram antes dele.

“Só sei… (uma calculada pausa) que nada sei!”

Oh, sim, que bela herança. Pregar às próximas gerações que nada sabe. Se ele nada sabe, como sabe que não sabe? Se não sabe nada, que autoridade de conhecimento pode ter sobre nós? O que pode nos ensinar? Espere, espere aí, quem você pensa que é? Você está se referindo aos grandes! Quem é você para contestá-los? Afinal, eles pensaram tanto. Foram filósofos. Imortais, entendeu? E você, o que sabe? Filósofos, ouviu? Ouvi. Disseram que não sabiam nada. Não quero contradizer ninguém. Estou aqui para aplaudir, só isso.

Ele vai fazer falta. Será? Lembre-se: concordar com tudo. Esse drama por vezes silencioso, por vezes altissonante, logo vai acabar. Aliás, de certa forma, já acabou. Mas isso que acabou dá origem a algo que continua. Que também terá de acabar, por lógica. E você voltará a ser você, aguente firme.

“Vai lá e conversa com ele”, aconselha o tio – ou sutilmente ordena.

Ele não costuma conversar com nada. Não fala com seus papéis. Não conversa com plantas. Às vezes fala sozinho, admite, mas é diferente. Ele sabe disso, não perde a consciência, não está perdido. Falar sozinho é falar consigo mesmo. E ele próprio está vivo, pode se ouvir. Pode responder. Até aplaudir. Mas uma planta?

Aproxima-se do caixão, fica ali, inerte. Finge estar pensando em algo, e está mesmo pensando em algo. Não conversando, como pensam. Está pensando que a morte sempre nos lembra de que seremos os próximos. Mesmo assim, não fazemos tudo que desejamos, não nos realizamos o bastante. É espantoso que ninguém reaja, e claro que ele se inclui nisso. Como pode estar ali, em silêncio, respeitando todas as convenções, quando sabe que não é diferente daquele homem morto, que foi seu pai um dia? Parece que, no máximo, alguém conseguiria gaguejar, absolutamente atordoado, com a certificação dos ciclos básicos, singulares e fascinantes por si sós, com a simples confirmação de que não podemos nunca evitar esse mesmo ciclo. Ninguém toma a palavra e confessa em voz alta. Ninguém toma a palavra e chora. Não: sempre se consolam. Não há um orador corajoso sequer (quase espera que isso apareça do nada, porque ele divide a mesma covardia de todos e também se cala). Por que não levantamos a voz? Não entrem dóceis nessa noite calma, aconselhava o poeta de Gales. Mas será que gritou, de verdade? Não há entre nós um Demóstenes, como nos conta a história e a lenda, que obstruía a língua com pedrinhas, treinando assim para ser o futuro orador que seria, postando-se diante do mar, tentando falar mais alto do que o poderoso trovejar das ondas, para que um dia, retiradas as pedras da boca e longe das majestosas vagas, proclamasse seus grandes discursos, alcançando, influenciando, impressionando toda a gente na praça grega. O que temos são essas pedrinhas sob a língua. Não podemos gritar. O mar da tradição troveja suavemente sob nossa saliva. Temos todos pedrinhas na boca. Podemos declamar poemas ou proclamar esperanças, ao gosto de todos. Mas temos de ser alinhados e contidos quando atinamos com alguma verdade. Não podemos insinuar essa verdade. Não podemos nos indignar com ela. Não podemos gritar.

“Está na hora. Seu irmão já sabe. Avisa os outros.”

“Algum de vocês quer vir comigo?”

“Não, obrigado.”

“Fica tranquilo, temos carona. A tia está de carro também.”

O campo santo é dividido em ruas, quadras, placas numeradas: tudo configurando endereços, uma cidade, um mapa – para que nenhum de nós se perca e não dirija preces, por engano, à alma errada. Mas é de se admitir alguma leveza, afinal: relva e flores, árvores de mais de uma espécie, ausentes as esculturas pesadas, tão solenes quanto assustadoras, com aqueles olhos cegos, só córneas, testas trincadas, anjos armados com espadas, em um gesto dúbio de ameaça ou proteção, e cuja expressão fisionômica não deixa claro o que pretendem, se defender ou punir – e a quem.

A chuva fina sempre participa de cenas assim, mas dessa vez é verdade. E não precisamos nos esquivar da verdade quando se trata mesmo da verdade. A chuva fina aconteceu. A tarde nublada se detém. Sem sol, não se percebe a mudança de horas. Sem mudanças, não há tempo. O fim dos tempos é também o fim do espaço, que um não existe sem o outro. Sem espaço, não há tempo. Sem tempo, não há espaço. Sem mudanças, não há vida. E sem a sua própria morte futura, o tempo não pode continuar. Aí está o preço, sem descontos. Só resta definir a data de vencimento, não há quem não seja vencido, quem não esteja vencido, temos todos um prazo, qualquer que seja – e sabemos disso. O que buscamos é o adiamento, o diluir-se o prazo. O objetivo da vida, em todos os níveis, é ganhar tempo. É permanecer, sempre mais. Podemos nos estender ainda um tanto, permanecer com certa calma até. Mas não haverá descontos.

Nada poderia lhe ocorrer de mais sombrio nesses minutos todos que se sucediam lentos, compondo essa tarde eterna. (Dias mais tarde, sua mãe iria se referir a isso como “aquele dia medonho” em que tudo aconteceu.)

“Veja se ela precisa de alguma coisa.”

“Não, pode deixar. Sua irmã está com ela.”

Isso o mantém outra vez ocioso para refletir, ainda que o tente evitar. Até que ponto terá absorvido ou herdado tais sombras do próprio pai? Até que ponto lhe serviam (e o destruíam por dentro) os almanaques e as histórias de vida, tão exemplares? Não se trata de gritar, não desta vez. Precisa apenas de uma melhor resposta. Os tais grandes, os pensadores imortais, só contribuem com a chuva fina, mais nada. Não trazem o sol. Ou tudo de que se lembra cai nisso, nessas frases solenes que nada lhe acrescentam. É como se já soubesse daquilo tudo que diziam, mas não como um sinal de arrogância (sinceramente não), do que o pai prontamente o acusaria. Quem você pensa que é? Não sei ao certo. Por enquanto, estou aqui para ouvir. Estou aqui para aplaudir.

“Pega a alça de trás. Isso. Vamos?”

“Pronto. Podemos ir.”

Os grandes, pai, talvez fossem apenas médios. Não, não me diga de novo que não sou ninguém. Estou aqui ao seu lado, não quero criar discussões desnecessárias. Estou caminhando, carregando seu peso. Parte dele, nessa alça da frente. Não pense que não sou grande a minha maneira. Tento ser humilde, tenho essa coragem. Busco respostas sem que o saibam, em meu silêncio triste. Não, pai, não me acuse de não ser ninguém sem antes considerar tudo. Não estou aqui para ironizá-lo. Você viveu sua natureza, eu vivo a minha. Estou aqui porque também não sei. Por isso, talvez, eu esteja agora… conversando.

“Vamos pôr no chão. Isso. Não, olha, nessa posição, entendeu? Mais perto desse lado aqui. Vamos lá.”

As paredes subterrâneas da sepultura estruturam-se, internamente, sobre prateleiras de alvenaria, próprias às dimensões de um esquife em cada uma, gente da família. Uma delas seria a sua, se ele não desaparecesse a tempo. Se não morresse no mar. Se não buscasse para si mesmo uma morte digna, transformando-se num mito de tempestade, um corpo jamais encontrado, para sempre perdido entre misteriosos recortes de jornais antigos, obituários incompletos, noites com essa eterna lua misteriosa. Essa pedra. Essa deusa.

Quando o funcionário, já dentro da cova, empurra com cuidado, num último gesto, o caixão para o fundo da estante lateral, de concreto cinza-claro, o filho assimila pesadamente o momento real que todos ali presenciam – de uma realidade espessa, umedecida pela chuva mansa e silenciosa, causando-lhe aquele arrepio singular que é a intuição ancestral de que o tempo nunca retorna. (Lembrou-se de como ele e o pai guardavam os livros na estante. Seu pai, guardado na estante.) Tudo, absolutamente tudo o que fazemos nos traz ao instante presente. De certo modo, nada pode ser mais inquietante do que isso. Mas pode ser que sim. Não sei. Pode haver alguma outra sorte de tormentos.

O que o interrompe agora é um gesto que autoriza a última tarefa. Assim que o caixão se faz em seu lugar, um primo, ao seu lado, murmura gentilmente: “Vai com Deus, tio.”.

Já deixaram as flores. Não há mais que fazer. E nesse momento – o eco meigo e quase imediato das palavras do primo ainda em sua memória de sons, mas com aparência de sonho, de um sonho vago e sem controle – nesse momento, precisamente, tem vontade de chorar. O pranto da irmã, que continua, talvez nem deixe ver o seu. Mas não, não se trata disso, não é o caso de esconder-se ou disfarçar a si mesmo. O problema é que ele não consegue identificar o motivo desse desejo súbito, sufocante, de chorar. Primeiro, sente-se surpreso pelas palavras sinceras do primo, que ele próprio não teve a prudente e bem-vinda iniciativa de dizer. Nem lhe ocorreu dizer algo, dar ao pai alguma voz de despedida. Tinha se esquecido de desejar qualquer coisa, tinha se esquecido de… gritar. Sente vontade de ceder ao pranto, porque agora está dito por outro. Não vale, não é mais a mesma coisa. Ele, o filho, poderia ter dito muitas outras coisas, sim, tantas outras coisas, afinal havia lido tanto, estudado tanto, quem sabe teria feito um discurso com voz triste e ponderada que todos admirariam e guardariam na lembrança. Não o fez. Sente-se esmagado por tudo. Pelo próprio silêncio. Pelo tempo, que não volta nunca.

“Vamos?”, dizem-lhe uns próximos, após uma prece, da qual ele não participa, porque está outra vez pensando. Também não percebe que já terminaram. Como sempre. Pensando enquanto o tempo o desafia, pensando enquanto os outros rezam e pedem, pensando enquanto existe ainda.

“Vamos.”

“Penso (a conhecida pausa), logo existo!”, a memória traz a voz do pai. Como? Quem era esse outro, pai? Pensa, existe, e daí? Uma árvore não pensa, e existe. Uma pedra não sonha, e permanece. (Só mais tarde compreenderá o contexto cartesiano, contrapondo-se à ideia, difundida por seus antecessores, de que a vida não passava de um sonho. Mas ainda é cedo, pode duvidar inocentemente, mesmo sem nenhum conhecimento específico, afinal a proposta dos filósofos não era justamente pensar, questionar, duvidar, enfim, filosofar?) O que você sabe para contestá-los? Quem você pensa que é? Não sei, não me importa responder a isso, compreender quem sou, essa coisa de sempre. Ao menos, gostaria de ter tido coragem de lhe pedir que deixasse de lado esses grandes, esses grãos de areia, esses sábios que não são nós, que não nos conheceram, esses fantasmas de almanaques que até hoje nos assombram, com sua luminosidade obscura. Quem você pensa que é? O que você pensa que sabe? Nada, desculpe. Não quero me defender, não quero mais pensar. Há um mar trovejando logo abaixo. Tenho pedras na língua. Estou aqui para aplaudir.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

38. O que fez com ela? – com o corpo dela? – sequência

36. Espirais desnecessárias – anterior

Sobre o mesmo tema: Arca com retratos do pai. Parte 1

Imagem: Käthe Kollwitz. O velho casal.

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