Office in a Small City por Edward Hopper

Arca com retratos do pai. Parte 1

Sei que somos, também entre os ancestrais, muito parecidos.
E carregamos, como um vírus, essa necessidade de interpretação da vida, a todos tão estranha.

Cerveja nos fundos de casa, sozinho. Noite de grilos, luz pálida do quintal. Desde então, passei a assimilar a melancolia dessas lâmpadas tênues e muito me defrontei com tal sentimento, suas variações de sombra e silêncio, à luz impessoal de outras cidades. Da última vez que eu o vira dormindo, passara a pressentir a respiração difícil da morte, a aura amarelada de seus cinquenta anos, como a claridade que atravessava o estreito ângulo da porta entreaberta. Havia chegado o tempo em que mal nos falávamos. Eu mesmo deixara de avaliar o ritmo de nossos passos, jovens os meus, abreviando distâncias; os dele esforçando-se por mostrarem-se vigorosos. Mas sei de ele ter sido jovem e eu, criança. Sei do horizonte encantado e eterno que hoje me revela bifurcações no que eu julgava retilíneo, certo e definitivo. Conto isto para que talvez me compreendam, ao menos em parte. Para que não se perca de vista o fato de que eu, hoje o malicioso, hoje o sarcástico, também perdi, por vias do tempo, meu pequeno mundo.

Meus avós morreram em minha infância. Tenho alguma consciência de origens remontando até eles. Mas sei que somos, também entre os ancestrais, muito parecidos. E carregamos, como um vírus, essa necessidade de interpretação da vida, a todos tão estranha. Considero certos sentimentos, legados geração após outra, entre o folclore familiar e os arrepios sinceros, ao tempo em que me pergunto: até onde sou hereditário? Haverá em minha pessoa um ponto qualquer, seja um átomo, uma região em minha essência, a que caiba existir por si própria, alheia às cadeias da herança? Uma nódoa minúscula em minha intuição ou inteligência à qual (ou a quem) possa chamar, seguramente, eu?

Penso em meu pai e no que viveu em sua memória. Um dia se fechariam os olhos de alguém que, pela última vez, teria visto este ou aquele antigo parente ainda aqui, entre os outros, sob a pesada condição da realidade, à luz do dia ou na incerteza das noites. Revejo o movimento dessas vidas que não prosseguem em meu tempo, mas que integravam essencialmente seu universo original. Entre as sombras, uma sombra: sua avó agonizante, anos de cama e câncer, orando aos deuses católicos para que a auxiliassem, sem jamais perder a fé nesses que supostamente a haviam destinado a definhar até a morte.

Tudo isso não passava de alucinação para mim – essa infância que eu ouvia dele, seus pais e avós, a quem mal ou não conheci. Só em minha fantasia podia vislumbrar os funerais dessa ancestral, quando iam todos a pé, trajando a indumentária da colônia e portando archotes no inverno. A vegetação do vale, os caminhos de terra, a neblina. Sua neblina. Seu cortejo de fantasmas.

A madrinha, carinhosa e cara. Ainda um menino quando ela teve de submeter-se à cirurgia que lhe extraísse um tumor. Apareceu-lhe sob a claridade dos vidros, bem vestida para ir ao hospital, encontrou-o brincando no tapete da sala, inclinou-se a beijar-lhe a testa.

“Fica com Deus, querido. A madrinha volta logo.”

Não o levaram ao enterro. Lembra-se das roupas, da maneira como ela surgira na sala, especialmente a claridade dessa manhã de vidro, uma claridade ofuscante, mas suave, que a tudo intensificava, pondo a brilhar com mais vida, como se a própria luz, à sua maneira, alongasse a existência da sala e de cada objeto. Das coisas que ele revia com espantosa nitidez. De tudo o que se destinasse a permanecer.

Sonho com a santa do chafariz, aonde o mandavam buscar água, por ser benta. Vejo que ele se detém e se volta, ainda com o jarro nas mãos, um primeiro olhar de dúvida. Algo parecido com meu medo. Sonho com o repuxo de superfície espessa: no fundo, encontro o rosto dos mortos. Sonho com essas escadas que dão para o vazio e trilhas de pedras irregulares que não me fornecem pistas de como cheguei até ali. Corro à cama de meus pais, os olhos remelentos, a testa gelada de suor. Alguns anos antes, eu nem existia. Agora, sinto medo. As trilhas iludem meus sentidos e, da mesma maneira como no sonho, não me deixam ver como cheguei até ali. O aroma morno do quarto recém-amanhecido, quando me misturam às cobertas. Cada um de nós tem de contar o que sonhou. O mais engraçado vence.

Ele às vezes ria, em sua idade, como ria aos vinte ou aos quarenta, e o tempo com suas tardes parecia o mesmo, como jamais fosse outro. Um sorriso mais – e o leito estaria pronto. Um limpar de óculos – e a cova aberta. Uma tossida deflagrando cada minuto de toda viagem ao esquecimento.

Começa a anoitecer na calçada de casa. Meu pai leva-me a montar seu pescoço e seus ombros para que eu ultrapasse sua altura e veja a luzinha vermelha que já se acende em outra parte da cidade, outro país talvez. Uma de minhas tias mora perto da torre. Anoitece, e o pontinho vermelho vive. Tenho uma crença secreta de que o pequeno rubi pulsante serve a zelar por minha tia, por seu bem. Que protege as pessoas honestas. E os que sabem que dormem. Nunca mais dissociei a minúscula lâmpada da lembrança dessa carinhosa mulher. No cerne de minhas noites, na fronteira entre a prece e o sono, havia sempre uma luzinha a cada um da família. E aos vizinhos que me sorriam. Uma lâmpada vermelha e tímida. Um rubi a cada um que me conhecesse sem mágoa.

Mesmo a preocupação que lhes proporciona a minha saúde frágil, as febres frequentes, é para mim algo natural. O estampado de meu pijama de inverno, o médico robusto e seu bigode negro, o paladar e o indefinido matiz dos remédios que amargo, tudo tão natural quanto despertar e adormecer, natural como as manhãs, o vento, o outono. E o outono, como hoje sei, é o que mais se parece com a minha infância.

Chegando do trabalho, ele me traz lápis de cor. Sabe que fico desenhando quando estou de cama. No estojo de madeira, a tosca ilustração da lenda oriental em que o jovem aventureiro transpõe certos rios proibidos em busca do que não mais me ocorre, mas que ele considera ser sua missão. Sempre que o herói chega à outra margem, uma cadeia de montanhas ergue-se na paisagem atrás dele, impedindo-o de voltar. Vejo meu pai chegando, com meus lápis de cor, revejo nitidamente o estojo, seu sorriso e meu sorriso, atravessados de cordilheiras. Também não me ocorre, nem mesmo agora, qual seja minha missão.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

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Imagem: Walt Disney Productions. Fantasia. 1940.

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Comentários

2 respostas para “Arca com retratos do pai. Parte 1”

  1. Avatar de Tania Melo
    Tania Melo

    Perce, mesmo tendo teu livro, emociono-me ao reler este texto tão tocante.
    Desde que recebi tua primeira mensagem (enviada por terceiros) eu percebi que estava diante de alguém que tinha muito a ver comigo naquilo que escrevia. Parabéns. Realmente fiquei emocionada.
    abraços grandes

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Tânia, fico feliz (e triste) com os efeitos desse texto. Ele é produto de imagens muito íntimas, acrescidas de alguma ficção, como sempre faço. Uma curiosidade: eu o escrevia ouvindo o Adágio de Barber, testando ao máximo minha capacidade de vencer umas sombras profundas que precisavam rastrear alguma luz. Outras tentativas de resgate desse tipo geraram obras inesquecíveis comoPinóquio, surgido da necessidade pessoal do dedicado Carlo Collodi, e, ainda que indiretamente, A metamorfose, de Franz Kafka.
      Além de Barber, tentei também o Concerto No. 5 de Beethoven (Imperador). Gosto de inventar experiências.
      No próximo final de semana vou publicar a segunda e última parte dessa… arca.

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