Office in a Small City por Edward Hopper

Andante de um concerto barroco

A vida não é só para ser vivida, há algo mais que não compreendemos.
Mas nada tão sério que não se possa atingir pela música.

Como quando nos encontramos daquela vez, em casa de Ruth, sendo a noite a mesma, até a frequência da chuva parece reavivar minha memória daquela noite-hoje.

Sim, mas vamos para dentro, você disse, Miranda e os outros nos esperam, o que não se pode dizer da chuva.

Chegaram juntos como apostávamos, mas… Onde está Ruth afinal, que não mais tivemos notícias dela.

E como eles poderiam saber, tirem essas capas, vamos, Olavo, dê aqui seu guarda-chuva, que noite esta.

Obrigado, Ione, a chuva não é tão intensa, ao contrário, cai suavemente como se aspirasse a ser música.

Olá, Flávia, olá, Sílvio, que faz esse violino aqui, pensei que houvéssemos combinado, não traríamos os instrumentos.

Dê aqui, vou guardá-lo, Flávia o trouxe para que a ajudasse na afinação, de resto permanece o combinado, mas diga-me você, Renato, posso resistir, mesmo na minha idade, ao que me pede essa ninfa, diga-me.

Idade para meu pai, já vai alguém dizer, também vão dizer que Sílvio deveria me namorar só porque tem os meus vinte e um, não me olhe assim, Renato, você acabou de chegar, não se atreva.

Nem olhe para mim, você sabe perfeitamente que eu não suportaria as preferências musicais dela, além disso essa albina-prodígio nunca foi meu tipo, que sempre foram as morenas, cada vez mais raras em nosso mundo.

Ruth, ela sim, Sílvio, tenho certeza, sendo de sua idade e quem sabe não tendo os problemas que tem, essa sim faria você dobrar-se por ela, mas para sua má sorte ela nasceu uma geração antes, com isso fica adiado para outra sua vida esse encontro, outro tempo em que seja.

Ione com sua costumeira propensão a associar uns e outros, como se fôssemos peças de um jogo, sua estranha crença em outras vidas, como se a natureza não pudesse reciclar-se, reafirmar-se com outros indivíduos, mas falando em Ruth, o que ouvi foi que toda aquela situação se agravou de umas semanas para hoje, não me peçam detalhes, tais coisas não se leem nos jornais.

Mas não conte com tanto mistério, Olavo, Ruth sempre teve seus famosos problemas, a começar por aquele filho que sabemos, você é que escolheu mal sua profissão, que não lhe dá oportunidades de exercer esse seu talento natural para o suspense, a narrativa insinuante, a maneira como você nos prende entre duas palavras que quase lhe vêm ao acaso, talvez devesse escrever para o cinema ou quem sabe dedicar-se mesmo à literatura, que acha nosso velho Miranda.

Não faço ideia de que outra profissão um instrumentista com esse virtuosismo pudesse seguir, quanto a mim, nunca pensei ser outra coisa, sempre tive os compositores como ídolos, cheguei a cultivar a estranha mania de guardar de memória a idade em que morreram, aos trinta e um, por exemplo, pensava, sobrevivi a Schubert, aos trinta e quatro, Mozart, depois Chopin, sentia aquele alívio de quem acaba de escapar a um estranho perigo, ao mesmo tempo a impressão egoísta e confortável do sobrevivente, já sepultei Beethoven, mas ainda sou o irmão mais novo de Brahms, será que Lizst me espera, o caso é o mesmo ainda que dure cem anos, que importa haver-se o tempo dilatado, ao que tenho sobrevivido afinal.

Muito poético, mas enquanto vocês fazem desfilar associações numéricas inúteis, com biografias eruditas, pessoas de verdade morrem por pouco em muitos lugares do mundo, claro, nem todos tão longe daqui, nós sempre os situamos cada vez mais longe para podermos esquecê-los ou para fazer de conta que de fato não podemos fazer nada, não, tudo bem, não precisam me olhar assim que não vou fazer de nossa noite outro panfleto, só gostaria que todos sempre se lembrassem, só isso, mas parece que só Renato compartilha de minhas preocupações.

É verdade, mas no fundo todos concordamos um pouco, uns mais outros menos, Miranda está muito velho para se preocupar com a opressão exercida pelos políticos mais perigosos, ele que tem sobrevivido a tantos gênios e ainda não os levou de todo em conta, Ruth, como você sabe, tem necessidades mais urgentes e muito próximas, é preciso ser em parte ocioso para se preocupar um pouco mais com o mundo, por que essa cara, Olavo.

Estava pensando que também já pensei muito nisso, mas acho que agora devo me ocupar menos dessas grandes palavras abstratas, como povo, nação, futuro, o que não quer dizer que eu seja um fascista, Flávia e Ione não podem ser criticadas por não se interessarem, talvez haja em toda ideologia algum fator de desavença e desunião, uma em relação a outra, algo como se nunca falássemos uma mesma língua, ainda que os objetivos sejam idênticos, fale, Ione, já terminei.

Eu queria dizer que já encontramos a beleza, mas não alcançamos a justiça, também acho estranho que criaturas com capacidade para produzir música e poesia não se mostrem capazes de administrar o mundo com equidade, mas se ficarmos a noite toda revolvendo a História não estaremos sendo justos principalmente conosco, ou não é, menina Flávia.

Claro, mas nossos pianistas falam como se a injustiça fosse uma grande novidade, eu não sou tão sonhadora, vocês sabem, aliás, não acho que se deva levar a coisa toda tão a sério, quero dizer, não tenho certeza, às vezes eu penso, mas não sei, acho mesmo que o importante é amar a vida, amá-la com toda vontade, amá-la intensamente, se bem que esse nosso concertista-marxista nunca concorde comigo, eu sei.

Não mesmo, nem penso que a vida mereça ser amada com tanta convicção, só não acho que uma coisa possa diminuir a outra, você fala como se tivesse de escolher entre ser uma cidadã consciente e uma concertista de talento, acho sim é que valeria a pena tentarmos ser mais do que somos, em vez de aceitarmos tão facilmente certos limites, que aliás é no que nossos políticos mais apostam, que não poderemos jamais compreendê-los de todo.

Parece que também você, Sílvio, escolheu a profissão errada, eu quando penso no que a música significa para mim não vislumbro sequer uma alternativa, mas diga-me, em quantas casas você encontraria hoje o menino que eu era, regendo os trechos mais estrondosos de Wagner, as peças mais devastadoras de Mussorgski, os momentos mais ruidosos de Berlioz, sozinho em seu quarto, munido de um lápis, diga-me, mas espere antes que eu volte, vou buscar outra garrafa.

Renato dizia que eu talvez guardasse algum talento para a literatura de suspense, mas nunca cultivei a devida paciência com as palavras, nem creio que elas merecessem mais de meu tempo que o estritamente exigível, prova disso é minha caligrafia até hoje ruim, prefiro mil vezes a música que sopra e suavemente se dispersa à palavra que obscuramente perdura, portanto não seria essa minha vocação, agora, com relação ao cinema, seria desastroso.

A transcendência nunca é gratuita, exige de nós algum esforço, assim como não se pode entrar diretamente no trecho mais enfático da sinfonia sem antes termos conhecido o que a conduziu até seu ponto de revelação e, por favor, não deixem que essas ideias lindas caiam em mãos dos místicos, eles farão disso mais uma absurda religião.

Há algo em nós, mulheres, talvez tenhamos uma dose extra de transcendência e talvez não seja a nossa uma necessidade como a de vocês, cuja dose terrena ainda não lhes basta, eu me lembro, quando ainda vivíamos juntos, meu marido me pedia às vezes que eu demorasse a entrar no quarto onde me esperava, era uma brincadeira nossa, quase não nos víamos na penumbra, eu sabia que ele buscava em mim sua porção de fantasia, que nutria uma estranha esperança de que eu pudesse salvá-lo, levando-lhe minha nudez e minha sombra, para mim não havia ilusões desse tipo, mas tudo aumentava minha responsabilidade de amá-lo.

Falávamos em Ruth antes de transcendermos, Olavo parece estar sempre mais bem informado do que nós, há alguma coisa mais entre vocês ou estarei eu imaginando coisas.

Imaginando coisas, somos amigos tanto quanto o somos nós dois, menina Flávia, tanto quanto o somos todos aqui e nem é preciso que se repita isso.

Calma, não seja tão hostil, agora sim parece estar se denunciando, aliás, falando em descobertas, não me olhe assim, Olavo, já mudei de assunto, acabo de descobrir um músico que nem o Miranda conhece.

Que século, diga-me.

Não dou pistas.

Então não vou continuar desperdiçando minha sabedoria com tipos como vocês.

Mas foi discípulo de Respighi.

Vá você agora, Renato, outro vinho, vamos, parece que a noite promete alegres novidades na história muito conhecida e sempre tediosa da música.

Falando nisso, alguém se arrisca a compor outro prelúdio da gota d’água, tudo indica que essa chuva não esteja disposta a diminuir, pelo contrário, logo vai estar participando da conversa, deve ser por isso que Ruth se atrasou, é muito compreensível.

Já tivemos outras noites assim, não será este o motivo, aliás, nunca houve encontro a que algum de nós faltasse, como se estas noites tivessem algo de mágico ou sagrado, qual é a graça, Sílvio.

Nós, nossos encontros sagrados, essa deve ser a anedota do ano, menina Flávia, se quer saber o que penso, nada nunca foi sagrado ou tudo sempre o será, desde uma simples noite de chuva, afinal, quem mais inventaria um fenômeno climático tão poético e inspirador senão Deus Nosso-Senhor.

Deixe de gozação, todos nós sabemos que você é ateu, eu só não consegui ainda esclarecer se no seu caso se trata de uma coincidência de ordem filosófica ou somente uma obrigação de todo seguidor de ideologias ortodoxas, mas claro que você é brilhante demais para apenas defender ideias alheias, não acha, Ione.

Talvez sim, Olavo, que os ateus pensam ter a verdade e acusam os que creem justamente por isso, mas você também está ironizando, assim perde um pouco de razão, que tipos estranhos são vocês, acho mesmo que não conseguem viver muito bem a vida, pois pensam que só a ação determina o mundo, mas nem tudo depende de nós, é preciso que reconheçam isso, e a vida nos é dada antes de tudo para ser vivida, o mais é o que desejamos ver.

A vida não é só para ser vivida, há algo mais que não compreendemos, mas nada tão sério que não se possa atingir pela música, de novo se me perdoam o fanatismo, que sempre a música é a última face do que ainda podemos compreender, e quando não mais a compreendermos estaremos livres para ser outra coisa, mas acho que este vinho já me confunde a ideia, afinal não penso em ser outra coisa, ora essa, mas este vinho já vem me fazendo, ou terá sido o outro.

Quem trouxe o vinho que leva nosso mestre Miranda rumo à transcendência que se confesse de uma vez por todas antes que toda esta conversa acabe muito austera outra vez, mas quanto a mim, sinto que é difícil viver se a vida é só o que aparenta, contudo, sendo esta a verdade, que me seja difícil, mas que a aceite enfim, saúde.

Espere, Renato, a campainha, parece-me ter tocado a campainha, como não, ou estarei ouvindo demais, vocês não ouviram, você não ouviu, Ione.

Fique sentado, eu vou até a porta.

Ouvindo demais, Olavo, ouvindo Ruth onde ela não está.

Controle-se, menina Flávia, não é a primeira garrafa que você ajuda a esvaziar em poucos minutos.

Afinal, quem está à porta, Ione, diga-me, o que ela disse, Renato.

Nada, Miranda velho, talvez tenha sido só uma impressão, a chuva está muito forte.

Ninguém, de fato.

Estranho. Eu poderia jurar.

Sei o que vocês todos estão pensando, acham que ela vai aparecer como numa apoteose, sob o temporal, à luz de um relâmpago, só falta um estrondo wagneriano para tornar tudo isso ainda mais, ainda mais, não fique me fazendo sinais, Sílvio, estou perfeitamente sóbria do que estou bebendo e claro que naturalmente.

Perfeitamente sóbria do que está bebendo, outra que valeu a noite, não fosse sua incapacidade para fazer comédia eu diria que seu talento inventivo acaba de superar-se agora, mas como se percebe que já está misturando as coisas, se é que me entende, não precisa esconder de ninguém seu eterno receio de ver-se ofuscada pelo admirável violino de Ruth.

E tenta fazer de mim o centro da discórdia, apenas pensei ter ouvido a campainha, como poderia ter sido qualquer um de nós.

Flávia não chegou a tanto, vamos, contenham vocês também o exagero dessas impressões, ora, você fala, Sílvio, como se não fosse o dela um dos raros violinos à altura de Ruth, e sendo tão jovem, como se nunca houvesse você invejado alguém, você que por tanto tempo aspirou à vaga de nosso antigo colega e na verdade só a conseguiu porque ele se mudou do país.

Não pensei que pudesse me acusar assim, Ione, não você que é tão ponderada e observadora.

Justamente por isso.

Vamos, digam-me, de que serve nossa amizade se não pudermos ser sinceros uma vez ou outra, afinal o vinho, como vocês sabem, como aliás o velho verso latino que, bom, os latinos viviam dizendo aquilo tudo porque não tinham música, já acabou esta, ora, Renato, pois não é a sua vez, diga-me.

Não, mas me dê aqui, levo esta em troca de uma boa causa, que quer dizer uma boa outra cheia, já que não tivemos ainda uma boa nova.

Por que não têm todos o seu bom humor, Renato, às vezes acho que é o único que se salva desses machos todos, quero dizer, sua amante é que é uma mulher de sorte, aliás, quem é ela afinal, não quer nos apresentar, ou será também só mais uma mentira para nos impressionar, não me interrompa, Ione.

Tenho defendido você até agora, só espero que não cometa esse mesmo erro de começar a inventar coisas e distorcer o que quer só porque se sentiu atingida de alguma forma.

Sempre assim, não é, depois de uma certa hora, enquanto alguns estão dispostos a concordar com tudo, outros já não se dispõem a concordar com nada, a menina Flávia, por exemplo, sempre se posiciona com facilidade na ala dos últimos.

E você nem parece ter bebido, Olavo, suas observações continuam tão insípidas quanto antes, como quando filosofa sobriamente, mas, caso queira saber, ainda que não lhe interesse nada, já é noite alta, olhe só, e Ruth não virá mais.

Começo a não acreditar muito nesta comédia.

Onde está o seu cálice, Renato, tome aqui, este é aquele das vinhas do sul, não se pode resistir a algo tão, eu dizia algo assim tão, enfim, os adjetivos são por sua conta, sou um músico, nada tenho que ver com definições, descrições e, como mesmo é que se chama aquela figura de linguagem que, tome, viva esse prazer, depois me diga.

O que você disse sobre comédia, Renato, eu gostaria que não ficasse resmungando em voz baixa e nos participasse de seus tão apropriados comentários, você acha mesmo que eu sou jovem e imatura para compreender umas quantas ironias, aliás, de uma sutileza que impressionaria uma adolescente instruída.

Flávia, me desculpe, não estou rindo de você, eu só acho que você está buscando encontrar alguma coisa errada em tudo, querida, Renato não corresponde a tais exercícios de vaidade dos quais você o acusa.

Deixe, Ione, olhe só a cara do Renato, ele parece perturbadíssimo com essa acusação mortal, mais ainda com os vinhos do Miranda ao alcance das mãos, veja, nem o Olavo se incomoda mais, quem sabe o tempo ensine a nossa menina a ser menos impulsiva, mais civilizada, se é que eu não esteja agora empregando a palavra em vão.

Civilizado como você, meu colega de geração, jovem promissor, amarrado às ideologias que lhe impuseram, obrigado a sempre defender sua posição diante disto e daquilo, no fundo um reprimido azedo e sem saída, por isso é que não aprendeu ainda a sorrir, duvido que mantenha toda essa serenidade quando está sozinho, quando se masturba.

Você provocou, Sílvio.

Vamos, vamos, ou vou fechar à chave a minha adega.

Tudo bem, Flávia, sente-se, agora eu acho que.

Me solte, Ione, quero saber mesmo se são todos tão verdadeiros e sublimes, você acha então, Sílvio, que tem maturidade para considerar tudo sem se alterar, para formar a última opinião sobre mim, não é, pois eu duvido que não tenha alguma vez sonhado comigo e tenha se trancado sozinho em seu quarto e.

Agora sim você atingiu o ridículo, só me faltava essa, outra que valeu a noite, outra que.

Claro que não admite, porque quando venho de saia curta não tira os olhos de minhas pernas enquanto pensa essa albina-prodígio, essa alienada que, essa menina que, está vendo este botão e este outro aqui, olhe, são assim os meus seios, o que acha.

Flávia, pare com isso, você está se expondo inutilmente, venha cá, vamos, feche esse vestido.

Não se impressione, Ione, ela precisa disso para ser notada, alguma coisa com o ego, mas não entendo muito disso.

Claro que não entende e nem precisa dizer.

Deixem disso vocês dois, ou querem parecer sempre os mais jovens, o que esperam, que nós sempre apartemos essas discussões de meia-noite e vinho pela metade.

Já disse que vou trancar a adega, aos menores de quinze anos só serão permitidos sucos de laranja e refrigerantes do sul, quero dizer, se não se comportarem.

Agora sou eu quem lhes diz, senhores, não sejam implacáveis com nossos jovens amigos, todos nós já vivemos dessas fases, não adianta negar, estamos aqui porque temos um mesmo amor pela música, e qual de nós não provou durante o percurso surtos de ambição e vaidade, o que pensa, Renato.

Sem dúvida o pregador Olavo tem razão, portanto, que o saiba nosso velho Miranda, eis aqui o próximo homem a buscar na fonte a essência de nossos prazeres e dissabores, essas fatídicas garrafas do sul.

Que degradação, uma violinista de talento chegar a tal ponto com um pouco de vinho, já se viu uma baixeza dessas.

Sílvio, nosso jovem pianista, pronuncia-se frequentemente contra tais baixezas, embora sempre tenha escondido de nós sua verdadeira vocação para contrabaixista.

Anote em nosso infinito folclore de infâmias, Ione, não tenho condições agora.

Muito engraçado, mas ninguém fechou os olhos.

Não agora, Renato, descubra os olhos e deixe de canalhices, vejam, nosso amigo Miranda está perdendo o fôlego, parece que nunca ouviu um trocadilho na vida, vocês não passam de um bando de meninos, quem os vê ao fim do concerto agradecendo aos aplausos nem imagina, mas vamos lá, Flavinha, estamos todos tentando trazê-la de volta ao seu humor.

Está tudo bem, Ione, só pergunte ao meu velho amigo Miranda se ainda tenho direito a um pouco mais daquele vinho branco.

Saiam da frente, cavalheiros, eu mesmo vou, e digam-me se posso resistir ao que me pede essa fada.

Fada, ninfa, hoje ele passou da conta.

Não comece outra vez, Sílvio, que tipo de ciúmes são esses, ou admita por fim que está interessado.

Quem interessado em quem, não era Olavo quem estava ouvindo campainhas às três da manhã.

Você também, menina Flávia, não torne a isso, vamos, Ione parece cansada de bancar a madrinha, estou certo, minha amiga sóbria.

Vocês não me cansam, nem estou tão sóbria como pensam, quero apenas que nada disso nos faça mal, que nos encontremos muitas vezes ainda e nos olhemos de frente, que possamos nos reerguer de tudo que nos couber experimentar em cada vida, hoje como em tantas outras vezes e antes que o dia torne a acontecer.

Aceita esse brinde o nosso mestre de adega.

Como não, ergam aqui seus cálices, vamos, saúde a todos.

Ione sempre à nossa frente, é verdade, já amanhece e mal percebemos, e a chuva parou.

Também ouvi desta vez.

Você pode abrir, Flávia.

Claro.

E como quando nos encontramos daquela vez, sendo a noite a mesma, pela manhã já livre de relâmpagos, tormentas ou quaisquer outros sinais, Ruth entrou sem nada dizer, trazendo nos olhos e no rosto a expressão silenciosa e quase feliz de quem atravessara uma noite tão mais densa que a nossa, olhos de quem já não tinha pelo que sofrer, você está me ouvindo, Renato, que lhe parece, estou falando com você, o que pensa disso.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

35. Arca com retratos do pai. Parte 1 – próximo

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Guia de leitura

Imagem: Balthus (Baltusz Klossowski de Rola). Solitaire. 1943.

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