Office in a Small City por Edward Hopper

Queijo, vinho e… “o disco novo dele”

Um ligeiro arrependimento de não ter sido um dia forte o bastante para lutar por Treze.
E logo afastou esse pensamento também, chegando a achá-lo engraçado, até mesmo sem sentido, que coisa estranha é o amor.

Este, o andar. Como um simples aviso pode me incomodar assim? Júlio comprimindo os lábios e girando a cabeça, como para espantar qualquer ideia nova. Sai do elevador. Será que não aprendo a ser um cidadão como os outros? É que estou doente, e qualquer coisa que… Não. Nada disso. Chega. Vou pensar nela. Pensar nela. Mesmo assim, sob as pressões de sua própria e frágil autodisciplina, tal uma memória fora de propósito, embora não o sendo, exceto para ele, estranhou um ligeiro arrependimento de não ter sido um dia forte o bastante para lutar por Treze. E logo afastou esse pensamento também, chegando a achá-lo engraçado, até mesmo sem sentido, que coisa estranha é o amor. Em frente, Júlio velho. É mais tarde do que você imagina.

A porta do apartamento, a campainha.

Ruído de chaves pelo lado de dentro.

O sorriso de Vanda.

“Oi.”

Ela o abraçou primeiro, estendendo-lhe a boca.

“Como conseguiu subir assim?”

“O porteiro deve estar cochilando em algum canto. Tem dias, parece que tudo dá certo.”

“Tudo, é?”

Vanda o encarou com uma centelha de malícia enquanto trancava a porta, o que Júlio não percebeu senão no último instante – o sinal de malícia, entenda-se, não ela com a porta. Um minuto antes, enquanto roía as unhas no elevador, surpreendera-se, contra qualquer lógica de seu tão autoestimado raciocínio, ideando com delícia enormes bobagens cinematográficas, o rosto de Vanda muito próximo, ela a dizer-lhe ofegante: “Júlio, nunca pensei que pudesse um dia conhecer alguém como você…”, se bem fosse a frase muito propensa às ironias e ao duplo sentido, enquanto ele, em troca, quem sabe após um beijo escandalosamente audacioso, ou audaciosamente escandaloso, o que faria do beijo o mesmo: “Vanda, minha linda! Case-se comigo…”, tão ofegante quanto ela e completamente perdido de amor. O elevador, muito eficiente, fez de sua ascensão mais uma brevíssima viagem. Esse minuto já passou.

“Que isso na sua mão?”

“Nada.”

“Na outra!”

“Tem que adivinhar.”

“Bom, é uma garrafa”, ela rasgando o papel com a unha. “Do quê? Champanhe? Que ótimo, eu adoro champanhe! Não… Vinho. Vinho branco.”

Vanda levou a mão à boca encobrindo uma risadinha aguda. No rótulo, a etiqueta adesiva destacava-se subitamente, contra a paisagem medieval.

“Você esqueceu de tirar o preço!”

Era verdade. Ali estava ele, junto à logomarca do supermercado. Vírgula, centavos.

“Merda…”

Camisa com estampas de moedas antigas (em frente, Júlio: a sorte está lançada!), mangas dobradas no cotovelo, saia branca e os mesmos sapatos de quando a conhecera. Lua crescente, metálica, pendendo de uma só orelha.

“Você está muito bonita.”

Viu seus olhos brilharem de vaidade.

“Brigada…”

Teve de ajudá-lo com o vinho.

“Não é assim, seu bobão. Tem que soltar aqui primeiro.”

Sempre fora inegável sua falta de jeito. Mesmo com saca-rolhas. A maneira como ela o chamava de bobão, uma menina travessa, tornando-o desprotegido e aprendendo coisas.

“Cortou o dedo?”

“Não foi nada.”

Desse, ele se lembraria. Costumava descobrir pequenos cortes e arranhões sem nunca se dar conta de como e onde os conseguira. Bobão.

Voltaram à sala, levando o vinho e um prato de queijo temperado que os esperava, na geladeira. Vanda apagou a luz do teto e acendeu outra, uma luminária cujo protetor fazia verter uma claridade amarelada como fogo sobre paredes, móveis, objetos. Separou um disco e o mostrou a Júlio. Na capa, o rosto surpreendentemente sério do cantor por pouco não o fez irromper numa gargalhada inconveniente e repentina. Pelo visto, não incomodava ao artista conservar-se assim, um imenso medíocre. Era famoso, e todos o ouviam por toda parte. Quanto a Júlio, a expressão compenetrada e profundamente grave com que ele se permitia fotografar, na capa em questão, parecia o golpe máximo e impagável de sua carreira.

“É o disco novo dele. Você gosta?”

“Gosto.”

Havia sempre um disco novo dele. Havia sempre o disco novo de alguém.

“Esse disco está ótimo!”

A primeira faixa faria dormir um cavalo. Todos a conheciam em sua versão de vinte anos atrás, e Júlio nunca entendeu por que se davam o trabalho de regravar a mesma canção, com outro intérprete, cuja voz nada tinha de especial. E mesmo que tivesse.

“Alguém conseguiu gostar disso?”

“Tá vendo essa foto aqui? Quando ele cantou na Itália. Aquele festival, sabe?”

É sempre tedioso que alguém se importe com isso e se atenha a tais repetições, mas o público é soberano. Por isso, os discos vendem. Por isso, há sempre o disco novo de alguém. Um público é sempre tedioso.

“Falta um disco dele na coleção da Neca. Ela e eu já rodamos a cidade, e nada de achar. Também não encomendamos. Deve ter no catálogo.”

“De quantas coisas precisamos pra viver, não é, Van?”

“É. Esse disco é um muito antigo, um dos primeiros da carreira dele. Quem tem, não empresta, já viu. Mas deve ter no catálogo.”

          Os últimos dias de agosto

52. À luz amarelada de Gauguin – sequência

50. Por sorte, algo sobre o sábado – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pablo Picasso. Natureza-morta com queijo. 1944.

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