Office in a Small City por Edward Hopper

Só ela sabia

Tinha o bolso cheio de fichas, tinha certeza. Onde teriam ido parar? Cheio de datas e pessoas. Anos de sua vida, anotações. Ambições de poderosa modéstia, desejos de assustadora simplicidade, seus silêncios. Pedras polidas que guardara da infância.

Albert Kotin. Sem título (detalhe superior). 1966A loirinha acompanhava seus repentes. Olhava-o agora por baixo da manga do garçom que se inclinava, uma fresta momentânea entre a sombra do namorado e o interessante e imprevisível vizinho, essa moça curiosa e acidental, no fundo disposta a apostar o que tivesse na bolsa para ver que fim teria uma noite dessas. Em dado momento, Júlio considerou o cometa-bola-de-fogo que subia pela parede. Quase sem se dar conta, passou a imitar um ruído de trovão contínuo, algo em torno de um motor diabólico, devastador, enquanto erguia a mão esquerda numa simulação de decolagem ou… Deteve bruscamente o gesto quando deu de cara com sua observadora: a garota tinha os olhos muito abertos, parecia ter-se esquecido de tudo o mais. Júlio queria muito dizer-lhe: “Gostou desse, loirinha linda? Tenho outros, muitos outros. Vendavais, terremotos. Erupções!”. Claro, não disse nada. Voltou à adega, tornou a subir. O cometa lá, inerte e vibrante, vacilante mas implacável, nunca chegando, nunca partindo, sempre e nunca revendo sua apoteose. Logo estarei eu, pensou, subindo pelas paredes. Não sem alguma dificuldade. A loirinha iria gostar de ver. Ela, só ela sabia que ele estava ali. Só ela se comunicava, secretamente, com ele. A única em sua mesa que… – não, não, espere aí: o namorado também o encarava, hostil, nem era preciso dizer. Isso encheu Júlio Dias de uma felicidade agressiva – melhor seria uma agressividade feliz? Criava uma situação nova e estimulante, rica em animosidade. Também sem se forçar a isso, Júlio deu com a mão fechada sobre a mesa. Precisava de uma garrafa, o outro era maior do que ele. Vai querer destroncar-me o pescoço, pensou, se eu antes não lhe abrir a jugular com um caco bem afiado. Os outros também o olhavam, trocavam silêncios. Venham, venham todos. Hei de prostrá-los com meia dúzia de golpes, queimá-los como hoje me arde nas veias essa maldita bola de fogo! Quero todo o bar caindo aos pedaços: copos, garrafas, cadeiras, mesas, estantes de vidro, arrebento tudo com a ajuda de vocês, tenho certeza! Corto-lhes a garganta! Piso-lhes os colhões! Eu e minha garrafa implacável, minha… minha… Não dispunha de nenhuma garrafa. Estava embriagado, sozinho e indefeso. O inimigo e seus comparsas levantaram-se ao mesmo tempo, arrastando ruidosamente as cadeiras. Pareciam bem maiores, de pé. E foi tudo muito rápido: ainda rindo feito uns alucinados, seguiram com as garotas para a pista de dança, onde logo se dispersaram entre outros casais que, aparentemente, também apreciavam aquela música alegre e ridícula.

Um minuto depois, voltava à mesa a loirinha. Esquecida dos cigarros ou… Ainda preocupada comigo? Confesse, confesse: isso foi mesmo intencional, não foi? (Na hora, Júlio nem pensou, de maneira assim tão clara, em nada disso que supunha dizer a ela mentalmente. Seguia sua figura, apenas.) Ela tornou a observá-lo, atenta e furtiva, demorando-se no gesto de apanhar o que fosse seu pretexto. Júlio descia os olhos à sua cintura, aos seus quadris. Ela o flagrou sem sorrir, mas insinuante. No caminho, parou em frente à mesa dele.

“Você vai ficar aí?”

O namorado e os outros haviam sumido de vista.

“Vou”, ele correspondendo ao seu interesse.

Ela pareceu indecisa por um instante. Mas voltou à pista – e desapareceu. Júlio ergueu-se da cadeira quase sem perceber que o fazia, tornou a sentar-se. “Homem, você está em paz com sua consciência?” “Claro que não. Minha rotina é o conflito.” “Poético, hein? Você é mesmo muito estranho.” “Isso é o de menos. Sempre penso que há algo mais a fazer. Algo mais a viver. E nunca o bastante.” “Pena que Pablo e Cândido não estejam aqui para ouvi-lo, não é?” “Pois é.”

Escada da adega. Perspectiva sufocante. Tinha o bolso cheio de fichas, tinha certeza. Onde teriam ido parar? Cheio de datas e pessoas. Anos de sua vida, anotações. Ambições de poderosa modéstia, desejos de assustadora simplicidade, seus silêncios. Pedras polidas que guardara da infância. Quantas lhe restavam? Duas, três… Vamos, homem: outra dose. Aquele sujeito não se impressiona com nada. Serviria um defunto, se lhe passasse as fichas. Penso se ficará algo de tudo o que vivi, a imagem desse idiota inclusive. Tudo, força de expressão. Do que vivi está bem. Não mais. Por que seria mais? Os olhos de Júlio fitam longamente o líquido que tem em mãos. Pedras de gelo soando como sinos. Por que não subo? Não pode se mover. A escada à frente. Não consegue voltar. Tem a impressão de que vai cair. Tenho essa impressão. Ainda estou de pé, estou certo disso. Mas sempre estive tão certo de tanta coisa. Alguém esbarra nele por trás e o segura a tempo. Um braço o prende pela cintura, outra mágica mão salva o copo. Sei que é ela. Então, veio salvar-me? Confesse, está interessada, eu sei. Me acha divertido ou inteligente ou idiota, sempre me dizem isso. Sei que é você, loirinha branquela, anjo avulso de minha noite desastrada. Voltando para me salvar, mas que linda. Sei que é você – a que cuidava de mim em segredo.

“Solta o copo, eu seguro. O copo, não o corpo”, ela riu. “Quase me derruba…”

Onde estava a loirinha cacheada? Onde estava a que…

“Não sei quem é você, mas… por favor, não me solte.”

Ela sorriu, não o soltou.

“Você ainda está de pé.”

“Ainda estou. Tenho certeza. Ainda… Ainda…”

“Se quer subir, tem que me ajudar também.”

Apoiado nela, Júlio subiu o imenso primeiro degrau.

“Onde estão seus amigos?”

“Que amigos? Nunca tive amigos. São todos uns canalhas! Do que está rindo?”

“Não estou rindo. Você está indo bem. Outro.”

“Você também.”

“O que você faz? É estudante?”

“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada…”

“Pra quem não é nada, você está bem pesado.”

“Depois que tudo passar… será como se nada houvesse acontecido.”

“Claro. Você vai ficar bom. Outro…”

“Ainda estou vivo. Faço o melhor. Faço o que posso.”

“Sei disso… Ops! Calma. Não vai desanimar agora. Nem desmaiar, hein? Outro.”

“Os sábios nada te ensinaram. Dá-me um pouco de vinho. A noite já vai acabar.”

“Chega de vinho por hoje.”

“Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade.”

“Este quem?”

“Adeus. Fica-te aí com o abdômen largo… O corvo… que comer as tuas fibras… há de achar nelas um sabor amargo.”

“Que horror. Você é poeta?”

Os últimos dias de agosto

88. O azul-âmbar do dia seguinte – sequência

86. Pedras, cometas, fichas alucinantes – anterior

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Imagem: Albert Kotin. Sem título (detalhe superior). 1966.

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