Office in a Small City por Edward Hopper

Perto daquela estátua estranha

“Também uma exposição retrospectiva de contemporâneos no outro pavilhão, olha só.”
“Estranho…”
“Estranho o quê?”
“Se são contemporâneos, como pode ser retrospectiva?”
“Que bobo. Nossa, mas que bobo. Não sei por que perco meu tempo com você.”

Lee Krasner. Sem título. 1949

“É a primeira vez que você me telefona no escritório. A que devo esse prazer?”

“Não seja cretino, é por uma boa causa.”

“Não posso fazer donativos no momento, moça. Deus a abençoe.”

“Escuta: acabei de ler sobre uma sessão, na tarde de sábado. O cineclube do Centro Cultural. Um daqueles filmes de que você tanto fala. Preto e branco.”

Cantou o nome do filme. Ele ficou excitado.

“Só lhe falei uma vez nesse filme.”

“E então? Ainda consegue ver uma fita até o fim?”

“Não sei.”

Preto e branco. Cinzento. Um homem cinzento por toda parte. Um homem cinzento vai ao cinema.

“Também uma exposição retrospectiva de contemporâneos no outro pavilhão, olha só. Vale a pena dar uma volta por lá, porque eu li uma matéria… Bom, você sabe que eu não resisto a uma mostra. Sou apaixonada por arte.”

“Estranho…”

“Estranho o quê?”

“Se são contemporâneos, como pode ser retrospectiva?”

“Que bobo. Nossa, mas que bobo! Não sei por que perco meu tempo com você.”

“Também não sei.”

“Ainda vou encontrar um jeito de te ofender de verdade, tenho certeza.”

“Não, por favor, sou um homem sensível, senhora. Vou definhar até morrer.”

“Quer ver o filme ou não?”

“Não. Digo, não, ainda não vi. Podemos nos encontrar de alguma forma? Quero dizer… Seu noivo não gostaria de ir conosco?”

“Não, ele está… Olha, tudo bem. Se você não quer…”

“Não, espera aí, só quero saber se nós podemos…”

“Deixa de canastrice. Olha, pode ter certeza: você não fica bem com isso. Por que tentar me irritar assim? Ele não vai voltar neste fim de semana, por isso estou convidando você.”

“Por isso?”

“Somos amigos, não somos? Que mal há nisso? Mesmo que ele viesse, sei que ele não iria querer ir. Ele nunca vai, nunca quer ir a uma coisa dessas.”

“Pobre rapaz.”

É sempre assim que as ciladas começam. Talvez um grande amor. Talvez um grande desastre.

“Ele tem mais de quarenta anos. E não se incomoda com pintura.”

“Com nenhuma outra arte, aposto. Vai acabar como eu.”

“Que bobo… Você ainda se lembra do meu horário de saída?”

Esforçavam-se para caminhar lado a lado, tendo de desviar-se todo o tempo de inúmeras pessoas, com sua pressa em sentido contrário. Tarde sem sol, ruas muito movimentadas à hora da saída.

“Devagar, calma”, ela pegando-lhe o ombro. “Por que a pressa? O dia já acabou.”

“Desculpe. É o hábito. Perdão, eu lhe imploro.”

Estela enlaçou-lhe o braço com o seu.

“Estes sapatos estão me torturando. E nós não precisamos correr como os outros. Por acaso você está atrasado pra alguma coisa?”

“Não. Nunca o suficiente.”

“Nem está preocupado em não perder a novela das sete.”

“Não me massacre. Tenha piedade. Já lhe pedi perdão”, ele com a estranha mas ligeira satisfação de ter o braço enlaçado por ela.

“E o mundo não vai acabar hoje.”

“Não. Também não vamos ter toda essa sorte.”

“Você vai de metrô?”

“Pego ônibus no Largo. Em frente àquela escultura estranha. Mas vou com você até a estação, posso?”

“Só se acompanhar meu passo. Isso. Assim…”

Júlio fechou os olhos por um instante, reviu, num agradável mas ainda angustiante relance, algo com que havia sonhado umas noites atrás: Quita, a eterna colega de infância, aproximando dele seu rosto na relva. Claro, Estela se parecia especialmente com ela. Tinham o mesmo tipo físico, rosto e cabelos. A expressão dos olhos, os olhos, sim, eram muito semelhantes. Vendo Estela com mais frequência, Quita também emergia com seu gesto lento – com ela, a incômoda impressão de que ele ainda vinha se resguardando para o futuro e por isso evitava qualquer variante que pudesse desviá-lo de seu grande destino, seu compromisso com o engrandecimento da raça humana. O futuro, imagine. Quase fez uma careta.

“Está me ouvindo? O que foi?”

“Não, nada. Quer que eu pegue você no sábado?”

“Melhor não. Vamos nos encontrar ali perto do Centro, pode ser?”

“Pode. Precisamos combinar uma senha. Vamos ver… Você irá de óculos escuros e dirá: ‘Getúlio não morreu!’ Eu: ‘Viva a revolução!’.”

“Fala baixo, que isso? O que tem uma coisa com a outra? Que tal aquela praça triangular, mais perto da saída lateral?”

“Aquela da estátua?”

“Aquela.”

“O monumento ao soldado anticonstitucionalista. Sei.”

Constitucionalista.”

Os últimos dias de agosto

105. A um passo de seu rosto – sequência

103. Um rosto aos 25 anos – anterior

Guia de leitura

 Imagem: Lee Krasner. Sem título. 1949.

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