Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. Silene (6/13)

Sempre acreditei que a sensualidade se associasse mais às manhãs.
Sexo e beleza são o mesmo em meu espírito.

Lee Krasner. Serralhas (detalhe superior). 1955Uma única nuvem preenche o céu urbano, trazendo a todos uma manhã triste. “Não há manhãs que sejam tristes. Doença de poetas.” Silene esquiva-se de meu gesto e ergue-se da cama. Descalça, como se maior fosse o silêncio sob seus passos, move-se até a grande janela e olha obliquamente (o céu? a cidade?) através da vidraça, como protegida do foco de luz matinal. Não sei o que procura. O que quer. “Nada.” “Está com fome? Quer que eu desça e compre alguma coisa?” Não. Sinto que deseja apenas afastar-se de mim. Mais uma vez, ela, que pouco sorri, esconde na sombra o rosto cinzento de não sei que lembranças. Imóvel e imune à claridade que trespassa diretamente os vidros, seu corpo assume relevos e contornos como nas telas, uma nudez de braços e coxas roliças, como nas figuras de Hopper.

O ateliê, no último andar. Um prédio de apartamentos velhos onde as pessoas, aos poucos, apodrecem. Dividimos poesia, pintura e música. Schumann, Mozart: a que canção poderia associá-la, Silene? Em todas, um fundo de solidão. Trechos muito nítidos, vivazes e cristalinos, que primeiro parecem, por si sós, afugentar as sombras e elucidar, em teclados límpidos, os mistérios, no fundo contribuem para aprofundá-los.

Vou também à margem da janela, tenho Silene pelas costas. Mas evito tocá-la. A densa cabeleira separa-lhe os ombros, cai pelas costas. Cabelos que normalmente prende em rabos de cavalo e tranças, servindo-se de tiaras, presilhas, mesmo assim lançam finas mechas irregulares ao redor do pescoço, uns fios sobre a testa ou descendo em anéis sob a base do queixo, revelando, sob determinada luminosidade, uma penugem clara, como a de um recém-nascido, principalmente nas têmporas, na linha limítrofe entre a pele e as primeiras raízes, entre o que procura conter e o que se rebela. De outra maneira, os cabelos avançam pelo rosto. “Você está triste”, falo às suas costas. “Não é por sua causa”, diz ela me magoando. Por que então se rende a mim nas noites com música? Por que, conforme me aproximo e me entrego, mais se põe distante Silene, essa figura silenciosa e insondável? Entretenho-me a observá-la enquanto imagino que possa traduzi-la. De um lado, tenho as palavras, que podem decifrá-la. Do outro, está Silene. Que nada tem que ver com palavras. Outra vez o passado a atormenta, atenua sua coragem. Hesito entre abraçá-la, deixá-la na sombra. “Não sei o que sinto por meu passado. Ódio, mágoa ou desprezo.” Essa sombra, como seus cabelos, avança sobre seu rosto. A manhã nos vidros não a ilumina. Luz de nuvens, insuficiente. Corpos? Cristais? De seu passado, sempre sobe uma sombra.

Impressionou-me, quando a conheci, uma obstinação dissimulada, mas febril. Cabelos revoltos, longos e belos. Olhos cinzentos que eu queria crer azuis, ao menos gris.

Pela primeira vez, o ateliê. Dilênias, data. “Por que as dilênias?” Alva ou amarela, a dilênia é uma flor solitária. Silene, uma artista jovem, premiada e promissora, ainda assim voltava-se sempre mais ao isolamento. “A arte é um deus que se busca com artifícios racionais, mas que só se revela em momentos de fulgurante inspiração. Você… sente o mesmo?” “Não sei. Meus poemas são medíocres. Comuns.” “Mas têm bons momentos. Versos que brilham como…”, a mão e um gesto, “como cristais.” “Cristais?” “É isso o que você busca? Esses versos, essas gemas?” “Não, não. Nada disso. A literatura não pode me levar ao que procuro. Nenhuma outra arte. Menos ainda a ciência ou a religião.” “Interessante. Você sabe, ao menos, o que procura? Algo próximo à transcendência ou… Deus, o que é para você?” “Um personagem da literatura. Algo que sempre nos serve. Você, o que pensa?” “Deus, para mim, é a noite de um sol inconcebível. Então, não me respondeu quanto ao que procura, ou nem sabe ao certo.” “Não. Talvez possa identificar, no decurso da vida, uma pista, uma fresta. Creio que o que busco é a vida em si mesma, sem nenhum misticismo ou cálculo. Desde o que preenche o vazio do universo até o âmago insondável de nossa mente, no mais íngreme abismo da organização de seus átomos. Talvez seja tudo uma maneira de dizer. Palavras, por que não? Talvez não seja nada. Um impulso, só isso. Meu trabalho, Silene, é minha resposta ao tempo.”

Por fim, afago seus ombros, abraço sua nudez. Sim, um desejo latente de possuí-la pela manhã, para depois acariciá-la longamente no que reste do dia. Vejo, por sobre o ombro, o anel em sua mão direita, uma flor estilizada, metálica e minúscula. “Silene”, ouso dizer. “Fique comigo. Amo você.”

Ela usava uma camiseta negra, de alças, sob seu avental manchado de tinta. Seios redondos, tentadores. Eu disfarçava e fingia naturalidade, percorria aquarelas e óleos que admirava pela primeira vez. Um desses trabalhos atraiu-me especialmente: Silene dissimulara suas intenções, retratando uma morena de cabelos negros e muito lisos. Mas eu sabia – via ali o seu rosto, os seus olhos –, só eu sabia que se tratava de um autorretrato. Que aquela era ela. Quando vi essa tela (a jovem recostada no sofá, camisola curta e transparente, seios nublados pelo tecido, parcialmente a calcinha, mãos cruzadas sobre o apoio do móvel, rosto de lado, buscando a distância, audacioso e quase agressivo), pensei: se eu fosse uma mulher, seria essa mulher. Silene, às minhas costas: “Gosta desse? Eu também. Sempre acreditei que a sensualidade se associasse mais às manhãs. Sexo e beleza são o mesmo em meu espírito.”.

Livra-se de mim, determinada mas não indócil. A velha poltrona, rosto entre as mãos. Procuro seu rosto. Os olhos. “Não entendo você. O que quer de mim?” Olhos cinzentos fixando os meus (por que não azuis, gris?), fala segura, quase um silêncio. “Não quero você comigo, entende? Não quero ninguém.” Uma ferramenta aperta-me a garganta. “Mas se você acredita que algo restará disso tudo, então vou lhe dizer o que quero. Quero que me registre em suas cartas. Que escreva sobre mim. Vivo nas sombras, sem saber o que sou. Talvez um dia se descubra o que possa justificar-me e às minhas telas. Sempre tarde demais.”

Silene não despiu a camiseta negra, retendo, sem saber, uma amostra de sombra. Senti sob a palma da mão o relevo e o calor de sua intimidade, uma nascente de vermelhos. Por fim a alcancei, e meu corpo colou-se ao dela, pressionando-o sobre a lona suja de tinta. Conheci, assim, seu gemido de gozo e julguei que pudesse possuí-la.

Toma minha cabeça entre os seios, último silêncio que me proporciona antes que eu torne ao ateliê na manhã seguinte: uma jovem seminua, inacabada sobre o cavalete; um frasco de tranquilizantes quase vazio. Silene precipitada ao futuro que a justifique, talvez. Face e lábios frios. Cabelos avançando sobre o rosto.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

Estudo com cristais 7. Verdes renovam o silêncio – próximo

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Guia de leitura

Imagem: Lee Krasner. Serralhas (detalhe superior). 1955.

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Comentários

2 respostas para “Estudo com cristais. Silene (6/13)”

  1. Avatar de Perce Polegatto
    Perce Polegatto

    Luiz, apaixone-se por literatura sem moderação. Conheça clássicos, menos clássicos, modernos, inovadores… Há muita riqueza escondida em todos, como diamantes esperando por nossos olhos.

  2. Avatar de Luiz Silva

    Magnifica obra, li duas vezes. Assim como Silene, acredito não saber ainda o que quero da vida. Mas confesso! estou me apaixonando por literatura…
    Abraços: Perce.

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